OBRAS
DE
J. B. DE A. GARRETT.
VIII.
(PRIMEIRO DAS VIAGENS)
VIAGENS NA MINHA TERRA
POR J. B. DE ALMEIDA-GARRETT.
I
LISBOA
NA TYPOGRAPHIA DA GAZETA DOS TRIBUNAIS.
1846.
Qu' il est glorieux d'ouvrir une nouvelle carrière, et de paraitre tout-à-coup dans le monde savant un livre de découvertes à la main, comme une cométe inattendue étincelle dans l'espace!
X. DE MAISTRE.
CAPITULO I
De como o auctor d'este erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu immortalizar-se escrevendo éstas suas viagens. Parte para Santarem. Chega ao Terreiro-do-Paço, imbarca no vapor de Villa-Nova; e o que ahi lhe succede. A Deducção-Chronologica e a Baixa de Lisboa. Lord Byron e um bom charuto. Travam-se de razões os Ilhavos e os Bordas-d'agua: os da calça larga levam a melhor.
Que viage á roda do seu quarto quem está á beira dos Alpes, de hynverno, em Turim, que é quasi tam frio como San'Petersburgo -- intende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o proprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.
Eu muitas vezes, n'estas suffocadas noites d'estio, viajo até á minha janella para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me inganar com uns verdes de árvores que alli vegetam sua laboriosa infancia nos intulhos do Caes-do-Sodré. E nunca escrevi éstas minhas viagens nem as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha penna: pobre e suberba, quer assumpto mais largo. Pois hei de dar-lh'o. Vou nada menos que a Santarem: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se hade fazer chronica.
Era uma idea vaga, mais desejo que tenção, que eu tinha ha muito de ir conhecer as riccas varzeas d'esse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais historica e monumental das nossas villas. Aballam-me as instancias de um amigo, decidem-se as tonterias de um jornal, que por mexeriquice quiz incabeçar em designio politico determinado a minha visita.
Pois por isso mesmo vou: -- pronunciei-me.
São 17 d'este mez de julho, anno de graça de 1843, uma segunda-feira, dia sem nota e de boa estrea. Seis horas da manham a dar em San'Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro-do-Paço. Chego muito a horas, invergonhei os meus madrugadores dos meus companheiros de viagem, que todos se prezam de mais matutinos homens que eu. Ja vou quasi no fim da praça, quando oiço o rodar grave mas pressuroso de uma carroça d'ancien règime: é o nosso chefe e commandante, o capitão da impreza, o Sr. C. da T. que chega em estado.
Tambem são chegados os outros companheiros: o sino dá o último rebate.
Partimos.
N'uma regata de vapores o nosso barco não ganhava decerto o premio. E se, no andar do progresso, se chegarem a instituir alguns isthmicos ou olympicos para este genero de carreiras -- e se para ellas houver algum Pindaro ancioso de correr, em strophes e antistrophes, atraz do vencedor que vai coroar de seus hymnos immortaes -- não cabe nem um triste minguado epodo a este cançado corredor de Villa-nova. É um barco serio e sizudo que se não mette n'essas andanças.
Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e pittoresco amphitheatro de Lisboa oriental, que é, vista de fóra, a mais bella e grandiosa parte da cidade, a mais characteristica, e onde, aqui e alli, algumas raras feições se percebem, ou mais exactamente se adivinham, da nossa velha e boa Lisboa das chronicas. Da Fundição para baixo tudo é prosaico e burguez, chato, vulgar e semsabor como um periodo da Deducção Chronologica, aqui e alli assoprado n'uma tentativa ao grandioso do mau gôsto, como alguma oitava menos rasteira do Oriente.
Assim o povo, que tem sempre melhor gôsto e mais puro do que essa escuma descórada que anda ao decima das populações, e que se chama a si mesma por excellencia a Sociedade, os seus passeios favoritos são a Madre-de-Deus e o Beato e Xabregas e Marvilla e as hortas de Chellas. A um lado a immensa majestade do Tejo em sua maior extensão e podêr, que alli mais parece um pequeno mar mediterraneo; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores, palacios, mosteiros, sitios consagrados todos a recordações grandes ou queridas. Que outra sahida tem Lisboa que se compare em belleza com ésta? Tirado Bellem, nenhuma. E ainda assim, Bellem é mais arido.
Já saudámos Alhandra, a toireira; Villa-franca, a que foi de Xira, e depois da Restauração, e depois outra vez de Xira, quando a tal restauração cahiu, como a todas as restaurações sempre succede e hade succeder, em odio e execração tal que nem uma pobre villa a quiz para sobrenome.
-- 'A questão não era de restaurar nem de não restaurar, mas de se livrar a gente de um govérno de patuscos, que é o mais odioso e ingulhoso dos governos possiveis.'
É a reflexão com que um dos nossos companheiros de viajem accudiu ao princípio de ponderação que eu ia involuntariamente fazendo a respeito de Villa-franca.
Mas eu não tenho odio nenhum a Villa-franca, nem a esse famoso cirio que lá foi fazer à velha monarchia. Era uma coisa que estava na ordem das coisas, e que por fôrça havia de succeder. Este necessario e inevitavel reviramento por que vai passando o mundo, hade levar muito tempo, hade ser contrastado por muita reacção antes de completar-se...
No entretanto vamos accender os nossos charutos, e deixemos os precintos aristocraticos da ré: á proa, que é paiz de cigarro livre!
Não me lembra que lord Byron celebrasse nunca o prazer de fummar a bórdo. È notavel esquecimento no poeta mais imbarcadiço, mais marujo que ainda houve, e que até cantou o injôo, a mais prosaica e nauseante das miserias da vida! Pois n'um dia d'estes, sentir na face e nos cabellos a brisa refrigerante que passou por cima da agua, em quanto se aspiram mollemente as narcoticas exhalações de um bom cigarro da Havana, é uma das poucas coisas sinceramente boas que ha n'este mundo.
Fummemos!
Aqui está um campino fummando gravemente o seu cigarro de papel, que me vai imprestar lume.
'Dou-lh'o eu, senhor...' accode cortezmente outra figura mui diversa, cujas feições, trajo e modos singularmente contrastam com os do musarabe ribatejano.
Accenderam-se os charutos, e attentámos mais de vagar na companhia em que estavamos.
Era com effeito notavel e interessante o grupo a que nos tinhamos chegado, e destacava pittorescamente do resto dos passageiros, mistura hybrida de trajos e feições descharacterizadas e vulgares -- que abunda nos arredores de uma grande cidade maritima e commercial. -- Não assim este grupo mais separado com que fomos topar. Constava elle de uns dôze homens; cinco eram d'esses famosos athletas da Alhandra que vão todos os domingos colher o pulverem olympicum da praça de Sanct'Anna, e que, á voz soberana e irresistivel de: á unha, á unha, á cernelha!.... correm a arcar com mais generosos, não mais possantes, animaes que elles, ao som das immensas palmas, e a trôco dos raros pintos por que se manifesta o sempre clamoroso e sempre vazio enthusiasmo das multidões. Voltavam á sua terra os meus cinco luctadores ainda em trajo de praça, ainda esmurrados e cheios de glória da contenda da vespera. Mas aopé d'estes cinco e de altercação com elles -- ja direi porquê -- estavam seis ou sette homens que em tudo pareciam os seus antipodas.
Emvez do calção amarello e da jaqueta de ramagem que caracterizam o homem do forcado, estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos, e o tabardo arrequifado siciliano de panno de varas. O campino, assim como o saloio, tem o cunho da raça africana; estes são da familia pelasga: feições regulares e moveis, a fórma agil.
Ora os homens do norte estavam disputando com os homens do sul: a questão fôra interrompida com a nossa chegada á proa do barco. Mas um dos Ilhavos -- bella e poetica figura de homem -- voltando-se para nós, disse n'aquelle seu tom accentuado: -- 'Ora aqui está quem hade decidir: vejam-n'os senhores. Elles, por agarrar um toiro, cuidam que são mais que ninguem, que não ha quem lhes chegue. E os senhores, a serem ca de Lisboa, hãode dizer que sim. Mas nós...'
-- Nenhum de nós é de Lisboa: so este senhor que aqui vem agora.
Era o C. da T. que chegava.
-- 'Este conheço eu; este é dos nossos (bradou um homem de forcado, assim que o viu). Isto é um fidalgo como se quer. Nunca o vi n'uma ferra, isso é verdade; mas aqui de Vallada a Almeirim ninguem corre mais do que elle por sol e por chuva, e hade saber o que é um boi de lei, e o que é lidar com gado.'
-- 'Pois oiçamos lá a questão.'
-- 'Não é questão' -- tornou o Ilhavo: 'mas se este senhor fidalgo anda por Almeirim, para Almeirim vamos nós, que era uma charneca o outro dia, e hoje é um jardim, benza-o Deus! -- mas não foram os campinos que o fizeram, foi a nossa gente que o sachou e plantou, e o fez o que é, e fez terra das areas da charneca.'
-- 'Lá isso é verdade'.
-- 'Não, não é! Que está forte habilidade fazer dar trigo aqui aos nateiros do Tejo, que é como quem semeia em manteiga. É uma lavoira que a faz Deus por sua mão, regar e adubar e tudo: e o que Deus não faz, não fazem elles, que nem sabem ter mão n'esses monchões c'o plantio das arvores: so lá por cima é que algumas teem mettido, e é bem pouco para o rio que é, e as riccas terras que lhes levam as inchentes. -- Mas nós, pe no barco pe na terra, tam depressa estamos a sachar o milho na charneca, como vimos por ahi abaixo com a vara no peito, e o saveiro a pegar n'area por não haver agua... mas sempre labutando pela vida'.
-- 'A fôrça é que se falla' -- tornou o campino para estabelecer a questão em terreno que lhe convinha. -- 'A fôrça é que se falla: um homem do campo que se deita alli á cernelha de um toiro que uma companha inteira de varinos lhe não pegava, com perdão dos senhores pelo rabo!..'
E reforçou o argumento com uma gargalhada triumphante, que achou echo nos interessados circumstantes que ja se tinham apinhado a ouvir os debates.
Os Ilhavos ficaram um tanto abatidos; sem perderem a consciencia da sua superioridade, mas acanhados pela algazarra.
Parecia a esquerda de um parlamento quando ve sumir-se, no borburinho acintoso das turbas ministeriaes, as melhores phrases e as mais fortes razões dos seus oradores.
Mas o orador ilhavo não era homem de se dar assim por derrotado. Olhou para os seus, como quem os consultava e animava, com um gesto expressivo, e voltando-se a nós, com a direita estendida aos seus antagonistas:
-- 'Então agora como é de fôrça, quero eu saber, e estes senhores que digam, qual é que tem mais fôrça, se é um toiro ou se é o mar'.
-- 'Essa agora!..'
-- 'Queriamos saber'.
-- 'É o mar'.
-- 'Pois nós que brigâmos com o mar, oito e dez dias a fio n'uma tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um toiro, qual é que tem mais fôrça?'
Os campinos ficaram cabisbaixos; o publico imparcial applaudiu por ésta vez a opposição, e o Vouga triumphou do Tejo.
CAPITULO II
Declaram-se typicas, symbolicas e mythicas éstas viagens. Faz o A. modestamente o seu proprio elogio. Da marcha da civilização; e mostra-se como ella é dirigida pelo cavalleiro da Mancha D. Quixote, e por seu escudeiro Sancho Pança. -- Chegada a Villa-Nova-da-Rainha, Supplicio de Tantalo. -- A virtude galardão de si mesma; e sophisma de Jeremias Bentham. -- Azambuja.
Éstas minhas interessantes viagens hãode ser uma obra prima, erudita, brilhante de pensamentos novos, uma coisa digna do seculo. Preciso de o dizer ao leitor, paraque elle esteja previnido; não cuide que são quaesquer d'essas rabiscaduras da moda que, com o titulo de Impressões de Viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas da Europa sem nenhum proveito da sciencia e do adiantamento da especie.
Primeiro que tudo, a minha obra é um symbolo... é um mytho, palavra grega, e de moda germanica, que se mette hoje em tudo e com que se explica tudo... quanto se não sabe explicar.
É um mytho porque -- porque... Ja agora rasgo o veo, e declaro abertamente ao benevolo leitor a profunda idea que está occulta debaixo d'esta ligeira apparencia de uma viagemzita que parece feita a brincar, e no fim de contas é uma coisa séria, grave, pensada com um livro novo da feira de Leipsick, não das taes brochurinhas dos boulevards de Paris.
Houve aqui ha annos um profundo e cavo philosopho d'alêm Rheno, que escreveu uma obra sôbre a marcha da civilização, do intellecto -- o que diriamos, para nos intenderem todos melhor, o Progresso. Descobriu elle que ha dois principios no mundo: o espiritualista, que marcha sem attender á parte material e terrena d'esta vida, com os olhos fittos em suas grandes e abstractas theorias, hirto, sêcco, duro, inflexivel, e que póde bem personalizar-se, symbolizar-se pelo famoso mytho do cavalleiro da Mancha, D. Quixote; -- o materialista, que, sem fazer caso nem cabedal d'essas theorias, em que não crè, e cujas impossiveis applicações declara todas utopias, póde bem representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho Pança.
Mas, como na historia do malicioso Cervantes, estes dois principios tam avessos, tam desincontrados, andam comtudo junctos sempre; ora um mais atraz, ora outro mais adiante, impecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se poucas, mas progredindo sempre.
E aqui está o que é possivel ao progresso humano.
E eisaqui a chronica do passado, a historia do presente, o programma do futuro.
Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que domina elrei Sancho.
Depois hade vir D. Quixote.
O senso commum virá para o millenio: reinado dos filhos de Deus! Está promettido nas divinas promessas... como elrei de Prussia prometteu uma constituição; e não faltou ainda, porque -- porque o contracto não tem dia; prometteu mas não disse para quando.
Ora n'esta minha viagem Tejo-a-riba está symbolizada a marcha do nosso progresso social: espero que o leitor intendesse agora. Tomarei cuidado de lh'o lembrar de vez em quando, porque receio muito que se esqueça.
Somos chegados ao triste desimbarcadoiro de Villa-Nova-da-Rainha, que é o mais feio pedaço de terra alluvial em que ainda poisei os meus pés. O sol arde como ainda não ardeu este anno.
Um immenso arraial de caleças, de machinhos, de burros e arrieiros, nos espera n'aquelle descampado africano. É forçoso optar entre os dois martyrios da caleça ou do macho. Do mal o menos... seja este.
E acolá -- oh supplício de Tantalo! -- vejo duas possantes e nedeas mulas castelhanas jungidas a um vehiculo que, n'estas paragens e ao pé d'aquell'outros, me parece mais esplendido do que um landaw de Hyde-Park, mais elegante que um caleche de Long-champs, mais commodo e elastico do que o mais acrio briska da princeza Hellena. E com tudo -- oh magico podêr das situações! -- elle não é senão, uma substancial e bem apessoada traquitana de cortinas.
Togados manes dos antigos desimbargadores, venerandas cabelleiras de anneis e castanhola, que direis, ó respeitadas sombras, se d'esse limbo onde estais esperando pela resurreição do Pêgas... e do livro quinto -- vêdes este degenerado e espurio successor vosso, em calças largas, frak verde, chapeu branco, gravata de côr, chicotinho de caoutchouc na mão, prompto a cavalgar em mulinha de Palito-Metrico como um garraio estudantinho do segundo anno, e deitando olhos invejosos para esse natural, proprio e adscripticio modo de conducção desimbargatoria? Oh que direis vós! Com que justo desprêzo não olhareis para tanta degradação e derogação!
Eu commungava silenciosamente commigo n'estas graves meditações, e revolvia incertamente no ânimo a ponderosa dúvida: -- se o administrar justiça direita aos povos valia a pena de andar um desimbargador a pé!... Luctava no meu ser o Sancho Pança da carne com o D. Quixote do espirito -- quando a Providencia, que nos maiores apertos e tentações nos não abandona nunca, me trouxe a generosa offerta de um amigo e companheiro do vapor, o Sr. L. S.: era sua a invejada carroça, e n'ella me deu logar até á Azambuja.
A virtude é o galardão de si mesma, disse um philosopho antigo; e eu não creio no famoso ditto de Bentham, que sabedoria antiga seja um sophisma. O mais moderno é o mais velho, não ha dúvida; mas o antigo que dura ainda, é porque tem achado na experiencia a confirmação que o moderno não tem. Jeremias Bentham tambem fazia o seu sophisma como qualquer outro.
Vamos percorrendo lentamente aquelle mal-composto marachão que poucos palmos se eleva do nivel baixo e salgadiço do solo: de hynverno não se passará sem perigo; ainda agora se não anda sem incómmodo e receio. Estamos em Villa-Nova e ás portas do nojento caravanseray, unico asylo do viajante n'esta, hoje, a mais frequentada das estradas do reino.
Parece-me estar mais deserto e sujo, mais abandonado e em ruinas este asqueroso logarejo, desde que alli aopé tem a estação dos vapôres, que são a commodidade, a vida, a alma do Ribatéjo. Imagino que uma aldeia de Alarves nas faldas do Atlas deve ser mais limpa e commoda.
Oh! Sancho, Sancho, nem siquer tu reinarás entre nós! Cahiu o carunchoso throno de teu predecessor, antagonista e ás vezes amo; açoitaram-te essas nadegas para desincantar a formosa del Toboso, proclamaram-te depois rei em Barataria, e n'esta tua provincia lusitana nem o paternal govêrno de teu estupido materialismo póde estabelecer-se para commodo e salvação do corpo; ja que a alma... oh! a alma...
Fallemos n'outra coisa.
Fujamos depressa d'este monturo. -- É monótona, arida e sem frescura de árvores a estrada: apenas alguma rara oliveira mal-medrada, a longos e desiguaes espaços, mostra o seu tronco rachitico e braços contorcidos, ornados de ramusculos doentes, em que o natural verde-alvo das folhas é mais alvacento e desbotado que o costume. O solo porêm, com raras excepções, é optimo, e a trôco de pouco trabalho e insignificante despeza, daria uma estrada tam boa como as melhores da Europa.
Dizia um secretario d'Estado meu amigo que para se repartir com egualdade o melhoramento das ruas por toda Lisboa, deviam ser obrigados os ministros a mudar de rua e bairro todos os tres mezes. Quando se fizer a lei de responsabilidade ministerial, para as kalendas gregas, eu heide propor que cada ministro seja obrigado a viajar por este seu reino de Portugal ao menos uma vez cada anno, como a desobriga.
Ahi está a Azambuja, pequena mas não triste povoação, com visiveis signaes de vida, aceadas e com ar de confôrto as suas casas. É a primeira povoação que dá indicio de estarmos nas ferteis margens do Nilo portuguez.
Corrémos a apear-nos no elegante estabelecimento que ao mesmo tempo cumulla as tres distinctas funcções, de hotel, de restaurant e de café da terra.
Sancto Deus! que bruxa que está á porta! que antro lá dentro!... Cai-me a penna da mão.
CAPITULO III
Acha-se desappontado o leitor com a prosaica sinceridade do A. d'estas viagens. O que devia ser uma estalagem nas nossas eras de litteratura romantica? -- Suspende-se o exame d'esta grave questão para tractar, em prosa e verso, um mui difficil ponto de economia-politica e de moral social. -- Quantas almas é preciso dar ao diabo, e quantos corpos se teem de intregar no cemiterio para fazer um ricco n'este mundo. -- Como se veio a descobrir que a sciencia d'este seculo era uma grandessissima tola. -- Rei de facto, e rei de direito. -- Belleza e mentira não cabem n'um sacco. -- Põe-se o A. a caminho para o pinhal da Azambuja.
Vou desappontar decerto o leitor benevolo; vou perder, pela minha fatal sinceridade, quanto em seu conceito tinha adquirido nos dois primeiros capitulos d'esta interessante viagem.
Pois que esperava elle de mim agora, de mim que ousei declarar-me escriptor n'estas eras de romantismo, seculo das fortes sensações, das descripções a traços largos e incisivos que se intalham n'alma e entram com sangue no coração?
No fim do capitulo precedente parámos á porta de uma estalagem: que estalagem deve ser ésta, hoje no anno de 1843, ás barbas de Victor Hugo, com o Doutor Fausto a trotar na cabeça da gente, com os Mysterios de Paris nas mãos de todo o mundo?
Ha paladar que supporte hoje a classica posada do Cervantes com o seu mesonero gordo e grave, as pulhas dos seus arrieiros, e o mantear de algum pobre lorpa de algum Sancho! Sancho, o invisivel rei do seculo, aquelle por quem hoje os reis reinam e os fazedores de leis decretam e afferem o justo! Sancho manteado por vis muleteiros! Não é da epocha.
Eu coroarei de trevo a minha espada,De cenoiras, luzerna e betarrava,Para cantar Harmódios e Aristógilons,Que do tyranno jugo vos livraramDa sciencia velha, inutil carunchosa,Que elevava da terra, erguia, alçavaO que no homem ha de Ser divino,E para os grandes feitos e virtudesLhe despegava o espirito da carne...
Não: plantae batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamisae estradas, fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Icaro, para andar a qual mais depressa, éstas horas contadas de uma vida toda material, massuda e grossa como tendes feito ésta que Deus nos deu tam differente do que a hoje vivemos. Andae, ganha-pães, andae; reduzi tudo a cifras, todas as considerações d'este mundo a equações de interêsse corporal, comprae, vendei, agiotae. -- No fim de tudo isto, o que lucrou a especie humana? Que ha mais umas poucas de duzias de homens riccos. E eu pergunto aos economistas-politicos, aos moralistas, se ja calcularam o número de individuos que é forçoso condemnar á miseria, ao trabalho desproporcionado, á desmoralização, á infamia, á ignorancia crapulosa, á desgraça invencivel, á penuria absoluta, para produzir um ricco? -- Que lh'o digam no Parlamento inglez, onde, depois de tantas commissões de inquérito, ja deve de andar orçado o número de almas que é preciso vender ao diabo, o número de corpos que se tem de intregar antes do tempo ao cemiterio para fazer um tecelão ricco e fidalgo como Sir Robert Peel, um mineiro, um banqueiro, um grangeeiro -- seja o que for: cada homem ricco, abastado, custa centos de infelizes, de miseraveis.
Logo a nação mais feliz não é a mais ricca. Logo o princípio utilitario é a mamona da injustiça e da reprovação. Logo...
There are more things in heaven and earth, Horatio, Than are dreamt of in your philosophy.
A sciencia d'este seculo é uma grandessissima tola.
E como tal, presumpçosa e cheia do orgulho dos nescios.
Vamos á descripção da estalagem. Não póde ser classica; assoviam-me todos esses rapazes de pera, bigode e charuto, que fazem litteratura cava e funda desde a porta do Marrare até ao café de Moscow...
Mas aqui é que me apparece uma incoherencia inexplicavel. A sociedade é materialista; e a litteratura, que é a expressão da sociedade, é toda excessivamente e absurdamente e despropositadamente espiritualista! Sancho rei de facto, Quixote rei de direito!
Pois é assim; e explica-se. -- É a litteratura que é uma hypocrita: tem religião nos versos, charidade nos romances, fé nos artigos de jornal -- como os que dão esmolas para pôr no Diario, que amparam orphans na Gazeta, e sustentam viuvas nos cartazes dos theatros.
E fallam no Evangelho! Deve ser por escarneo. Se o leem, hãode ver lá que nem a esquerda deve saber o que faz a direita...
Vamos á descripção da estalagem; e acabemos com tanta digressão.
Não póde ser classica, está visto, a tal descripção. -- Seja romantica. -- Tambem não póde ser. Porque não? É pôr-lhe lá um Chourineur a amolar um facão de palmo e meio para espatifar rez e homem, quanto incontrar, -- uma Fleur-de-Marie para dizer e fazer pieguices com uma rozeirinha pequenina, bonitinha, que morreu, coitadinha! -- e um principe allemão incoberto, forte no sôcco britannico, immenso em libras sterlinas, profundo em gyria de cegos e ladrões... e ahi fica a Azambuja com uma estalagem que não tem que invejar á mais pintada e da moda n'este seculo elegante, delicado, verdadeiro, natural!
É como eu devia fazer a descripção: bem o sei. Mas ha um impedimento fatal, invencivel -- egual ao d'aquella famosa salva que se não deu... é que nada d'isso lá havia.
E eu não quero calumniar a boa gente da Azambuja. Que me não leam os taes, porque eu heide viver e morrer na fé de Boileau:
Rien n'est beau que le vrai.
Ja se diz ha muito anno que honra e proveito não cabem n'um sacco; eu digo que belleza e mentira tambem lá não cabem: e é a mais portugueza traducção que creio que se possa fazer d'aquelle ímmortal e evangelico hemystichio. A maior parte das bellezas da litteratura actual fazem-me lembrar aquellas formosuras que tentavam os sanctos eremitas na Thebaida. O pobre de Sancto Antão ou de S. Pacomio (Pacomio é melhor aqui) ficavam imbasbacados ao princípio; mas dava-lhe o coração uma pancada, olhavam-lhe para os pés... -- Cruzes maldicto! Os pés não podia elle incobrir. E ao primeiro abrenuntio do sancto, dissipava-se a belleza em muito fummo de inxofre, e ficava o diabo negro feio e cabrum como quem é, e sempre foi o pae da mentira.
Nada, nada, verdade e mais verdade. Na estalagem da Azambuja o que havia era uma pobre velha a quem eu chamei bruxa, porque emfim que havia de eu chamar á velha suja e maltrapida que estava á porta d'aquella asquerosa casa?
Havia lá ésta velha, com a sua môça mais môça mas não menos nojenta de ver que ella, e um velho meio paralytico meio demente que alli estava para um canto com todo o geito e traça de quem vem folgar agora na taberna porque ja bebeu o que havia de beber n'ella.
Matava-nos a sêde; mas a agua alli é beber quartans. O vinho era atroz. Limonada? Não ha limões nem assucar. -- Mandou-se um proprio á tenda no fim da villa. Vieram tres limões que me pareceram de uns que pendiam, quando eu vinha a férias, á porta do famoso botequim de Leiria.
O assucar podia servir na última scena de M. de Pourceaugnac muito melhor que n'uma limonada. Mas misturou-se tudo com a agua das sezões, bebémos, pozemo-nos em marcha, e até agora não nos fez mal, com ser a mais abominavel, antipathica e suja beberagem que se póde imaginar.
Caminhámos na mesma ordem até chegar ao famoso pinhal da Azambuja.
CAPITULO IV
De como o A. foi pensando e divagando, e em que pensava e divagava elle, no caminho da villa da Azambuja até o famoso pinhal do mesmo nome. -- Do poeta grego e philosopho Démades, e do poeta e philosopho inglez Addison, da casaca de penneiros e do palio atheniense, e de outros importantes assumptos em que o A. quiz mostrar a sua profunda erudição. -- Discute-se a materia gravissima se é necessario que um ministro d'estado seja ignorante e leigarraz. -- Admiraveis reflexões de zigzag em que se tracta de re politica e de re amatoria. -- Descobre-se porfim que o A. estivera a sonhar em todo este capitulo, e pede-se ao leitor benevolo que volte a folha e passe ao seguinte.
Eu darei sempre o primeiro logar á modestia entre todas as bellas qualidades. -- Ainda sôbre a innocencia? -- Ainda sim. A innocencia basta uma falta para a perder, da modestia so culpas graves, so crimes verdadeiros podem privar. Um accidente, um acaso podem destruir aquella, a ésta so uma acção propria, determinada e voluntaria.
Bem me lembram ainda os dois versos do poeta Démades que são forte argumento de auctoridade contra a minha theoria; cuidei que tinha mais infeliz memoria. Heide pô-los aqui para que não falte a ésta grande obra das minhas viagens o merito da erudição, e lhe não chamem livrinho da moda: estou resolvido a fazer a minha reputação com este livro.
Aid ôs te kalle ka aretês polis, Prôtoê sgathis hamartia deuteron de ais chunê.
Da belleza e virtude é a cidadellaA innocencia primeiro -- e depois ella.
Mas a auctoridade responde-se com auctoridade, e a texto com texto. E eu trago aqui na algibeira o meu Addison -- um dos poucos livros que não largo nunca -- e atiro com o philosopho inglez ao philosopho grego e fico triumphante: porque Addison não põe nada acima da modestia; e Addison, apezar da sua casaca de penneiros, é muito maior philosopho do que foi Démades com a sua tunica e o seu palio atheniense.
O erudito e amavel leitor escapará d'ésta vez a mais citações: compre um Spectator, que é livro sem que se não póde estar, e veja passim.
Eu gósto, bem se ve, de ir ao incôntro das objecções que me podem fazer; lembro-as eu mesmo paraque depois me não digam: -- 'Ah, ah! vinha a ver se pegava!' -- Não senhor, não é o meu genero esse.
Francamente pois... eis-ahi o que poderão dizer: -- 'Addison foi secretario d'Estado, e então...' -- Então o quê? Não concebem um secretario d'Estado philosopho, um ministro poeta, escriptor elegante, cheio de graça e de talento? Não, bem vejo que não: teem a idea fixa de que um ministro d'Estado hade ser por fôrça algum semsaborão, malcriado e petulante. Mas isto é nos paizes adiantados em que ja é indifferente para a coisa-pública, em que povo nem principe lhes não importa ja, em que mãos se intregam, a que cabeças se confiam. Em Inglaterra não é assim, nem era assim no tempo de Addison. Fossem lá á rainha Anna que deixasse entrar no seu gabinete quatro calças de coiro sem criação nem instrucção, e não mais senão so porque este sabía jogar nos fundos, aquelle tinha boas tretas para o canvassing de umas eleições, o outro era figura importante no Freemasson's-hall!
Ja se ve que em nada d'isto ha a minima allusão ao feliz systema que nos rege: estou fallando de modestia, e nós vivemos em Portugal.
A modestia comtudo quando é excessiva e se aproxima do acanhamento, do que no mundo se chama falta de uso -- póde ser n'um homem quasi defeito inteiro. Na mulher é sempre virtude, realce de belleza ás formosas, disfarce de fealdade ás que o não são.
Por mim, não conheço objecto mais lindo em toda a natureza, mais feiticeiro, mais capaz de arrebatar o espirito e inflammar o coração do que é uma joven donzella quando a modestia lhe faz subir o rubor ás faces, e o pejo lhe carrega brandamente nas palpebras... Pouco lume que tenha nos olhos, pouco regular que seja o semblante, menos airosa que seja a figura, parecer-vos-ha n'esse momento um anjo. E anjo é a virgem modesta, que traz no rosto debuxado sempre um ceo de virtudes... -- De alguma belleza sei eu cujos olhos côr da noite ou de saphyra (dialec. poet. vet.), cujas faces de leite e rosas, dentes de pérolas, collo de marfim, transas de ebano (a allusão é surtida, ha onde escolher) davam larga materia a boas grozas de sonetos -- no antigo regimen dos sonetos, e hoje inspirariam myriadas de canções descabelladas e vaporosas, choradas na harpa ou gemidas no alahude. Comtanto que não seja lyra, que é classico, todo o instrumento, inclusivamente a bandurra, é egual deante da lei romantica.
Ora pois, mas a tal belleza, por certo ar ala-moda, certo não-sei-quê de atrevido nos olhos, de deslavado na cara, e de descomposto nos ademanes, perde toda a graça e quasi a propria formosura de que a dotára a natureza...
Vêde-me aquelles labios de carmim. Ha maio florido que tam lindo botão de rosa apresente ao alvorecer da madrugada?... Mas olhae agora como o riso da malicia lh'o desfolha tam feiamente n'uma desconcertada risada...
Desvaneceu-se o prestigio.
Não havia moço nem velho, homem do mundo ou sabio de gabinete que não désse metade dos seus prazeres, dos seus livros, da sua vida por um so beijo d'aquella bôcca... Agora talvez nem repetidos avances lhe façam obter um namorante de profissão e officio... E hade pagá-lo adeantado, e porque preço!...
Mas o que terá tudo isto com a jornada da Azambuja ao Cartaxo? A mais íntima e verdadeira relação que é possivel. É que a pensar ou a sonhar n'estas coisas fui eu todo o caminho, até me achar no meio do pinhal da Azambuja.
Ahi parámos, e acordei eu.
Sou sujeito a éstas distracções, a este sonhar acordado. Que lhe heide eu fazer? Andando, escrevendo, sonho e ando, sonho e fallo, sonho e escrevo. Francamente me confesso de somnambulo, de somniloquo, de... Não, fica melhor com seu ar de grego (tenho hoje a bossa hellenica n'um estado de tumescencia pasmosa!); digamos somnilogo, somnigrapho...
A minha opinião sincera e conscienciosa é que o leitor deve saltar éstas folhas, e passar ao capitulo seguinte, que é outra casta de capitulo.
CAPITULO V
Chega o A. ao pinhal da Azambuja, e não o acha. Trabalha-se por explicar este phenomeno pasmoso. Bello rasgo de stylo romantico. -- Receita para fazer litteratura original com pouco trabalho. -- Transição classica: Orpheu e o bosque do Ménalo. -- Desce o A. d'estas grandes e sublimes considerações para as realidades materiaes da vida: é desamparado pela hospitaleira traquitana e tem de cavalgar na triste mula de arrieiro. -- Admiravel choito do animal. Memorias do marquez do F. que adorava o choito.
Este é que é o pinhal da Azambuja?
Não póde ser.
Ésta, aquella antiga selva, temida quasi religiosamente como um bosque druidico! E eu que, em pequeno, nunca ouvia contar historia de Pedro de Mallas-artes, que logo, em imaginação, lhe não pozesse a scena aqui perto!... Eu que esperava topar a cada passo com a cova do capitão Roldão e da dama Leonarda!... Oh! que ainda me faltava perder mais ésta illusão...
Por quantas maldicções e infernos adornam o stylo d'um verdadeiro escriptor romantico, digam-me, digam-me: onde estão os arvoredos fechados, os sitios medonhos d'esta espessura. Pois isto é possivel, pois o pinhal da Azambuja é isto?... Eu que os trazia promptos e recortados para os collocar aqui todos os amaveis salteadores de Schiller, e os elegantes facinorosos do Auberge-des-Adrets, eu heide perder os meus chefes-d'obra! Que é perdê-los isto -- não ter onde os pôr!..
Sim, leitor benevolo, e por ésta occasião te vou explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa litteratura. Ja me não importa guardar segredo, depois d'esta desgraça não me importa ja nada. Saberás pois, ó leitor, como nós outros fazemos o que te fazemos ler.
Tracta-se de um romance, de um drama -- cuidas que vamos estudar a historia, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulchros, os edificios, as memorias da epocha? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar characteres e situações do vivo da natureza, collori-los das côres verdadeiras da historia... isso é trabalho difficil, longo, delicado, exige um estudo, um talento, e sôbretudo um tacto!... Não senhor: a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico.
Todo o drama e todo o romance precisa de:
Uma ou duas damas,
Um pae,
Dois ou tres filhos, de dezanove a trinta annos,
Um criado velho,
Um monstro, incarregado de fazer as maldades,
Varios tractantes, e algumas pessoas capazes para intermedios.
Ora bem; vai-se aos figurinos francezes de Dumas, de Eug. Sue, de Victor-Hugo, e recorta a gente, de cadaum d'elles, as figuras que precisa, gruda-as sôbre uma folha de papel da côr da moda, verde, pardo, azul -- como fazem as raparigas inglezas aos seus albums e scrapbooks; fórma com ellas os grupos e situações que lhe parece; não importa que sejam mais ou menos disparatados. Depois vai-se ás chronicas, tiram-se uns poucos de nomes e de palavrões velhos; com os nomes chrismam-se os figurões, com os palavrões illuminam-se... (stylo de pintor pinta-monos). -- E aqui está como nós fazemos a nossa litteratura original.
E aqui está o precioso trabalho que eu agora perdi!
Isto não póde ser! Uns poucos de pinheiros raros e infezados atravez dos quaes se estão quasi vendo as vinhas e olivedos circumstantes!.. É o desapontamento mais chapado e solemne que nunca tive na minha vida -- uma verdadeira logração em boa e antiga phrase portugueza.
E comtudo aqui é que devia ser, aqui é que é, geographica e topographicamente fallando, o bem conhecido e confrontado sitio do pinhal da Azambuja...
Passaria por aqui algum Orpheu que, pelos magicos podêres da sua lyra, levasse atraz de si as árvores d'este antigo e classico Menalo dos salteadores lusitanos?
Eu não sou muito difficil em admittir prodigios quando não sei explicar os phenomenos por outro modo. O pinhal da Azambuja mudou-se. Qual, de entre tantos Orpheus que a gente por ahi ve e ouve, foi o que obrou a maravilha, isso é mais difficil de dizer. Elles são tantos, e cantam todos tão bem! Quem sabe? Juntar-se-hiam, fariam uma companhia por acções, e negociariam um emprestimo harmonico com que facilmente se obraria então o milagre. É como hoje se faz tudo; é como se passou o thesoiro para o banco, o banco para as companhias de confiança... porque se não faria o mesmo com o pinhal da Azambuja?
Mas aonde está elle então? faz favor de me dizer...
Sim senhor, digo: está consolidado. E se não sabe o que isto quer dizer, leia os orçamentos, veja a lista dos tributos, passe pelos olhos os votos de confiança; e se depois d'isto, não souber aonde e como se consolidou o pinhal d'Azambuja, abandone a geographia que visivelmente não é a sua especialidade, e deite-se a finança, que tem bossa; -- fazemo-lo eleger ahi por Arcozello ou pela cidade eterna -- é o mesmo -- vai para a commissão de fazenda -- depois lord do thesoiro, ministro: é escalla, não offendia nem a rabujenta constituição de 38, quanto mais a carta...
O peior é que no meio d'estes campos onde Troia fôra, no meio d'estas areias onde se acoitavam d'antes os pallidos medos do pinhal da Azambuja, a minha querida e bemfazeja traquitana abandonou-me; fiquei como o bom Xavier de Maistre quando, a meia jornada do seu quarto, lhe perdeu a cadeira o equilibrio, e elle cahiu -- ou ia caindo, ja me não lembro bem -- estatellado no chão.
Ao chão estive eu para me atirar, como criança amuada, quando vi voltar para a Azambuja o nosso commodo vehiculo, e deante de mim a infezada mulinha asneira que -- ai triste! -- tinha de ser o meu transporte d'alli até Santarem.
Emfim o que hade ser, hade ser, e tem muita fôrça. Consolado com este tam verdadeiro quanto elegante proverbio, levantei o ânimo á altura da situação e resolvi fazer próva de homem forte e supportador de trabalhos. Bifurquei-me resignadamente sôbre o cilicio do esfarrapado albardão, tomei na esquerda as impermeaveis redeas de coiro cru, e lancei o animalejo ao seu mais largo trote, que era um confortavel e amenissimo choito, digno de fazer as delicias do meu respeitavel e excentrico amigo, o marquez do F.
Tinha a bossa, a paixão, a mania, a furia de choitar aquelle notavel fidalgo -- o último fidalgo homem de lettras que deu ésta terra. Mas adorava o choito o nobre marquez. Conheci-o em París nos ultimos tempos da sua vida, ja octogenario ou perto d'isso: deixava a sua carruagem ingleza toda mollas e confortos para ir passear n'um certo cabriolet de praça que elle tinha marcado pelo sêcco e duro movimento vertical com que sacudia a gente. Obrigou-me um dia a experimenta-lo: era admiravel. Communicava-se da velha horsa normanda aos varaes, e dos varaes á concha do carro, tam inteiro e tam sem diminuição, o choito do execravel Babiéca! Nunca vi coisa assim. O marquez achava-lhe propriedades toni-purgativos, eu classifiquei-o de violentissimo drastico.
Foi um dos homens mais extraordinarios e o portuguez mais notavel que tenho conhecido, aquelle fidalgo.
Era feio como o peccado, elegante como um bugio, e as mulheres adoravam-n'o. Filho segundo, vivia de seus ordenados nas missões por que sempre andou, tractava-se grandiosamente, e legou valores consideraveis por sua morte. Imprimia uma obra sua, mandava tirar um unico exemplar, guardava-o e desmanchava as fòrmas.... -- Não acabo se coméço a contar historias do marquez do F.
Piquemos para o Cartaxo, que são horas.
CAPITULO VI
Próva-se como o velho Camões não teve outro remedio senão misturar o maravilhoso da mythologia com o do christianismo. -- Da-se razão, e tira-se depois, ao padre José Agostinho. -- No meio d'estas disceptações academico-litterarias vem o A. a descobrir que para tudo é preciso ter fé n'este mundo. Diz-se n'este mundo, porque, quanto ao outro ja era sabido. -- Os Lusíadas, Fausto e a Divina-Comedia. -- Desgraça do Camões em ter nascido antes do romantismo. -- Mostra-se como a Styge e o Cocyto sempre são melhores sitios que o Inferno e o Purgatorio. -- Vai o A. em procura do marquez de Pombal, e dá com elle nas ilhas Beatas do poeta Alceu. -- Partida de Whist entre os illustres finados. -- Compaixão do marquez pelos pobres homens de Ricardo Smith e J. B. Say. -- Resposta d'elle e da sua luneta ás perguntas peralvilhas do A. -- Chegada a este mundo e ao Cartaxo.
O mais notavel, e não sei se diga, se continuarei aomenos a dizer, o mais indesculpavel defeito que até aqui esgravataram criticos e zoilos na Iliada dos povos modernos, os immortaes Lusiadas, é sem-dúvida a heterogenea e heterodoxa mistura da theologia com a mythologia, do maravilhoso allegorico do paganismo, com os graves symbolos do christianismo. A fallar a verdade, e por mais figas que a gente queira fazer ao padre José Agustinho -- ainda assim! ver o padre Baccho revestido in pontificalibus deante de um retabulo, não me lembra de que sancto, dizendo o seu dominus vobiscum provavelmente a algum acholyto bacchante ou corybante, que lhe responde o et cum spiritu tuo!.. não se póde; é uma que realmente... E então aquelle famoso conceito com que elle acaba, digno da Phenix-Renascida:
O falso deus adora o verdadeiro!
Desde que me intendo, que leio, que admiro os Lusiadas; interneço-me, chóro, insuberbeço-me com a maior obra de ingenho que ainda appareceu no mundo, desde a Divina-Comedia até ao Fausto...
O italiano tinha fé em Deus, o allemão no scepticismo, o portuguez na sua patria. É preciso crer em alguma coisa para ser grande -- não so poeta -- grande seja no que for. Uma Brizida velha que eu tive, quando era pequeno, era famosa chronista de historias da carochinha, porque sinceramente cria em bruxas. Napoleão cria na sua estrella, Lafayette creu na republica-rei de Luiz-Philippe; e, para que ousemos tambem celebrare domestica facta, todos os nossos grandes homens ainda hoje creem, um na juncta do crédito, outro nas classes inactivas, outro no mestre Adonirão, outro finalmente na belleza e realidade do systema constitucional que felizmente nos rege.
Mas essas crenças são para os que se fizeram grandes com ellas. A um pobre homem o que lhe fica para crer? Eu, apezar dos criticos, ainda creio no nosso Camões: sempre cri.
E comtudo, desde a edade da innocencia em que tanto me divertiam aquellas batalhas, aquellas aventuras, aquellas historias d'amores, aquellas scenas todas, tam naturaes, tam bem pintadas -- até ésta fatal edade da experiencia, edade prosaica em que as mais bellas creações do espirito parecem macaquices deante das realidades do mundo, e os nobres movimentos do coração chymeras de enthusiastas -- até ésta edade de saudades do passado e esperanças no futuro, mas sem gosos no presente -- em que o amor da patria (tambem isto será phantasmagoria?), e o sentimento intimo do bello me dão na leitura dos Lusiadas outro deleite diverso, mas não inferior ao que n'outro tempo me deram -- eu senti sempre aquelle grande defeito do nosso grande poema: e nunca pude, por mais que buscasse, achar-lhe, justificação não digo -- nem siquer desculpa.
Mas até morrer aprender, diz o adagio: e assim é. E tambem é aphorismo de moral, applicavel outrosim a coisas litterarias: que para a gente achar a desculpa aos defeitos alheios, é considerar -- é pôr-se uma pessoa nas mesmas circumstancias, ver-se involvido nas mesmas difficuldades.
Aqui estou eu agora dando toda a desculpa ao pobre Camões, com vontade de o justificar, e prompto (assim são as charidades d'este mundo) a sahir a campo de lança em reste e a quebrá-la com todo o antagonista que por aquelle fraco o atacar. -- E porque será isto? Porque chegou a minha hora; e -- si parva licet componnere magnis (a bossa proeminente hoje é a latina), aqui me acho eu com este meu capitulo nas mesmas difficuldades em que o nosso bardo se viu com o seu poema.
Ja preveni as observações com o texto acima: bem sei quem era Camões, e quem sou eu; mas tracta-se da intalação, que é a mesma apezar da differença dos intalados. O auctor dos Lusiadas viu-se intalado entre a crença do seu paiz e as brilhantes tradições da poesia classica que tinha por mestra e modêlo.
Não havia ainda então romanticos nem romantismo, o seculo estava muito atrazado. As odes de Victor-Hugo não tinham ainda desbancado as de Horacio; achavam-se mais lyricos e mais poeticos os esconjurios de Canidia, do que os pesadelos de um inforcado no oratorio; chorava-se com os Tristes de Ovidio, porque se não lagrimejava com as meditações de Lamartine. Andromacha despedindo-se de Heitor ás portas de Troia, Priamo supplicante aos pés do matador do seu filho, Helena luctando entre o remorso do seu crime e o amor de Páris, não tinham ainda sido eclipsados pelas declamações da mãe Eva ás grades do paraizo terreal. O combate de Achilles e Heitor, das hostes argivas com as troianas, não tinha sido mettido n'um chinello pelas batalhas campaes dos anjos bons e dos anjos maus á metralhada por essas nuvens. Dido chorando por Eneas não tinha sido reduzida a donzella choramigas d'Alfama carpindo pelo seu Manel que vae para a India...
Realmente o seculo estava muito atrazado: Milton não se tinha ainda sentado no logar de Homero, Shakspeare no de Euripedes, e lord Byron acima de todos: emfim não estava ainda anglizado o mundo, portanto a marcha do intellecto no mesmo terreno, é tudo uma miseria.
Ora pois, o nosso Camões, creador da epopea, e -- depois do Dante -- da poesia moderna, viu-se atrapalhado; misturou a sua crença religiosa com o seu credo poetico e fez, tranchons le mot, uma semsaboria.
E aqui direi eu com o vate Elmano:
Camões, grande Camões, quam similhanteAcho teu fado ao meu quando os cotejo!
Vou fazer outra semsaboria eu, n'este bello capitulo da minha obra-prima. Que remedio! Preciso fallar com um illustre finado, preciso de evocar a sombra de um grande genio que hoje habita com os mortos. E onde irei eu? Ao inferno? Espero que a divina justiça se apiedasse d'elle na hora dos ultimos arrependimentos. Ao purgatorio, ao empyreo? Apezar do exemplo da Divina Comedia, não me atrevo a fazer comedias com taes logares de scena, -- e não sei, não gósto de brincar com essas coisas.
Não lhe vejo remedio senão recorrer ao bem parado dos Elysios, da Styge, do Cocyto e seu termo: são terrenos neutros em que se póde parlamentar com os mortos sem compromettimento serio, e....
Eis-me ahi no êrro de Camões -- e nas unhas dos criticos; e as zagunchadas a ferver em cima de mim, que fiz, que aconteci....
Mas, senhores, ponderem, venham ca: o que hade um homem fazer? O Dante não sei que gyria teve que baptisou Publio Virgilio Marão para lhe servir de cicerone nas regiões do inferno, do paraizo e do purgatorio christão, e teve tam boa fortuna que nem o queimou a Inquisição nem o descompoz a Crusca, nem siquer o mutilaram os censores, nem o perseguiram delegados por abuso de liberdade de imprensa, nem o mandaram para os dignos pares... Não se tinham ainda descoberto as mangações liberaes que se usam hoje: e as cartas que o povo tinha era a liberdade ganha e sustentada á ponta da espada, com muito coração e poucas palavras, muito patriotismo, poucas leis... e menos relatorios. Não havia em Florença nem gazeta para louvar as tolices dos ministros, nem ministros para pagar as tolices da gazeta.
O Dante foi proscripto e exilado, mas não se ficou a escrever, deu catanada que se regallou nos inimigos da liberdade da sua patria.
Quem dera ca um batalhão de poetas como aquelle!
Que fosse porêm um triste vate de hoje escrever no seculo das luzes o que escrevia o Dante no seculo das trevas! Os proprios philosophos gritavam: Que escandalo! Atheus professos clamavam contra a irreverencia; gentes que não teem religião, nem a de Mafoma, bradavam pela religião: entravam a pôr carapuças nas cabeças uns dos outros, cahiam depois todos sôbre o poeta, e -- se o não podessem inforcar, pelo menos declaravam-n'o republicano, que dizem elles que é uma injúria muito grande.
Nada! viva o nosso Camões e o seu maravilhoso mistiforio; é a mais commoda invenção d'este mundo: vou-me com ella, e ralhe a crítica quanto quizer.
Quero procurar no reino das sombras não menor pessoa que o marquez de Pombal: tenho que lhe fazer uma pergunta séria antes de chegar ao Cartaxo. E nós ja vamos por entre as riccas vinhas que o circundam com uma zona de verdura e alegria. Depressa o ramo de oiro que me abra ao pensamento as portas fataes -- depressa a unctuosa sopetarra com que heide atirar ás tres gargantas do canzarrão. Vamos...
Mas em que districto d'aquellas regiões acharei eu o primeiro ministro d'elrei D. José? Por onde está Ixion e Tantalo, por onde demora Sysipho e outros maganões que taes? Não; esse é um bairro muito triste, e arrisca-se a ter por administrador algum escandecido que me atice as orelhas.
Nos Elysios com o pae Anchises e outros barbaças classicos do mesmo jaez? Eu sei? tambem isso não. Hade ser n'aquellas ilhas bemaventuradas de que falla o poeta Alceu e onde elle poz a passear, por eternas verduras, as almas tyrannicidas de Harmódio e Aristógiton...
Oh! ésta agora!... Sebastião José de Carvalho e Mello, conde de Oeiras, marquez de Pombal, de companhia com os seus inimigos politicos!... Ahi é que se ingánam; não ha amigos nem inimigos politicos em se largando o mando e as pretenções a elle. Ora, passados os umbraes da eternidade, é de fé que se não pensa mais n'isso. C. J. X., que morreu a assignar uma portaria, ja tinha largado a penna quando chegou alli pelos Prazeres; quanto mais!...
O homem hade estar nas ilhas beatas. Vamos lá...
E ei-lo alli: lá está o bom do marquez a jogar o whist com o barão de Bidefeld, com o imperador Leopoldo e com o poeta Diniz. A partida deve de ser interessante, talvez aposta essa gente toda -- esses manes todos que estão á roda. Que cara que fez o marquez a um finadinho que lhe foi metter o nariz nas cartas! Quem havia de ser! O intromettido de M. de Talleyrand. Estava-lhe cahindo. Mas não viu nada: o nobre marquez sempre soube esconder o seu jôgo.
A mim é que elle ja me viu. 'Que diz? Ah!.. Sim senhor, sou portuguez; e venho fazer uma pergunta a V. Exa., esclarecer-me sôbre um ponto importante.'
Deitou-me a tremenda luneta.
-- 'Para que mandou V. Exa. arrancar as vinhas do Ribatejo?'
Apertou a luneta no sobrôlho e sorriu-se.
-- 'Ellas ahi estão centuplicadas, que até ja invadiram o pinhal de
Azambuja. Fez V. Exa. um despotismo inutil; e agora...'
'Agora quem bebe por lá todo esse vinho?'
Não sabía o que lhe havia de responder. Elle sacudiu a cabelleira de anneis, virou-me as costas, deu o braço a Colbert, passou por-pé de Ricardo Smith e de J. Baptista Say, que estavam a disputar, incolheu os hombros em ar de compaixão, e foi-se por uma alameda muito viçosa que ia por aquelles deliciosos jardins dentro, e sumiu-se da nossa vista.
Eu surdi ca n'este mundo, e achei-me emcima da azemola, aopé do grande café do Cartaxo.
CAPITULO VII
Reflexões importantes sôbre o Bois-de-Boulogne, as carruagens de mollas, Tortoni, e o café do Cartaxo. -- Dos cafés em geral, e de como são o characteristico da civilização de um paiz. -- O Alfageme. -- Hecatombe involuntaria immolada pelo A. -- Historia do Cartaxo. -- Demonstra-se como a Gran'-Bretanha deveu sempre toda a sua fôrça e toda a sua glória a Portugal. -- Shakspeare e Laffitte, Milton e Chateaumargot, Nelson e o principe de Joinville. -- Próva-se evidentemente que M. Guizot é a ruina de Albion e do Cartaxo.
Voltar á meia-noite do Bois-de-Boulogne -- o bosque por excellencia, descer, entre nuvens de poeira, o longo stadio dos Campos-Elysios, entrever, na rapida carreira, o obelisco de Luxor, as árvores das Tulherias, a columna da praça Vandomma, a magnificencia heteroclyta da 'Magdalena', e emfim sentir parar, de uma soffreada magistral, os dois possantes inglezes que nos trouxeram quasi de um folego até ao 'boulevard de Gand'; ahi entreabrir mollemente os olhos, levantando meio corpo dos regallados cochins de seda, e dizer: 'Ah! estamos em Tortoni... que delicia um sorvete com este calor!' -- é seguramente, é dos prazeres maiores d'este mundo, sente-se a gente viver; é meia hora de existencia que vale dez annos de ser rei em qualquer outra parte do mundo.
Pois acredite-me o leitor amigo, que sei alguma coisa dos sabores e dissabores d'este mundo, fie-se na minha palavra, que é de homem experimentado: o prazer de chegar por aquelle modo a Tortoni, o apear da elegante caleche balançada nas mais suaves mollas que fabricasse arte ingleza do puro aço de Suecia, não alcança, não se compara ao prazer e consolação de alma e corpo que eu senti ao apear-me de minha choiteira mula á porta do grande café do Cartaxo.
Fazem idea do que é o café do Cartaxo? Não fazem. Se não viajam, se não sahem, se não vêem mundo ésta gente de Lisboa! E passam a sua vida entre o Chiado, a rua do Oiro e o theatro de San'Carlos, como hãode alargar a esphera de seus conhecimentos, desinvolver o espirito, chegar á altura do seculo?
Coroae-vos de alface, e ide jogar o bilhar, ou fazer sonetos á dama nova, ide, que não prestais para mais nada, meus queridos Lisboetas; ou discuti os deslavados horrores de algum mellodrama velho que fugiu assoviado da 'Porte-Saint Martin' e veio esconder-se na Rua-dos-Condes. Tambem podeis ir aos Toiros -- estão imbolados, não ha perigo...
Viajar?.. qual viajar! até á Cova-da-Piedade, quando muito, em dia que lá haja cavallinhos. Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças d'este mundo são como a do Terreiro-do-Paço, todas as ruas como a rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare.
Pois não são, não: e o do Cartaxo menos que nenhum.
O café é uma das feições mais characteristicas de uma terra. O viajante experimentado e fino chega a qualquer parte, entra no café, observa-o, examina-o, estuda-o, e tem conhecido o paiz em que está, o seu govêrno, as suas leis, os seus costumes, a sua religião.
Levem-me de olhos tapados onde quizerem, não me desvendem senão no café; e protesto-lhe que em menos de dez minutos lhe digo a terra em que estou se for paiz sublunar.
Nós entrámos no café do Cartaxo, o grande café do Cartaxo; e nunca se incruzou turco em divan de seda do mais splendido harem de Constantinopla com tanto gôso de alma e satisfacção de corpo, como nós nos sentámos nas duras e asperas tábuas das esguias banquetas mal sarapintadas que ornam o magnífico estabelecimento bordalengo.
Em poucas linhas se descreve a sua simplicidade classica: será um parallelogrammo pouco maior que a minha alcova; á esquerda duas mezas de pinho, á direita o mostrador invidraçado onde campeam as garrafas obrigadas de liquor de amendoa, de canella, de cravo. Pendem do tecto, laboriosamente arrendados por não vulgar tesoira, os pingentes de papel, convidando a lascivo repouso a inquieta raça das moscas. Reina uma frescura admiravel n'aquelle recinto.
Sentámo-nos, respirámos largo, e entrámos em conversa com o dono da casa, homem de trinta a quarenta annos, de physionomia experta e sympathica, e sem nada do repugnante villão-ruim que é tam usual de incontrar por similhantes logares da nossa terra.
-- 'Então que novidades ha por ca pelo Cartaxo, patrão?'
-- 'Novidades! Por aqui não temos senão o que vem de Lisboa. -- Ahi está a
'Revolução' de hontem...'
-- 'Jornaes, meu caro amigo! Vimos fartos d'isso. Diga-nos alguma coisa da terra. Que faz por ca o...'
-- 'O mestre J. P., o 'Alfageme?''
-- 'Como assim o Alfageme?'
-- 'Chamam-lhe o Alfageme ao mestre J. P.: pois então! Uns senhores de Lisboa que ahi estiveram em casa do Sr. D. poseram-lhe esse nome, que a gente bem sabe o que é; e ficou-lhe, que agora ja ninguem lhe chama senão o Alfageme. Mas quanto a mim, ou elle não é Alfageme, ou não o hade ser muito tempo. Não é aquelle, não. Eu bem me intendo.'
A conversação tornava-se interessante, especialmente para mim: quizemos profundar o caso.
-- 'Muito me conta, Sr. patrão! Com que isto de ser Alfageme, parece-lhe que é coisa de?..
-- 'Parece-me o que é, e o que hade parecer a todo o mundo. E alguma coisa sabemos, ca no Cartaxo, do que vai por elle. O verdadeiro Alfageme diz que era um espadeiro ou armeiro, cutileiro ou coisa que o valha, na Ribeira de Santarem; e que foi um homem capaz, e que tinha pelo povo, e que não queria saber de partidos, e que dizia elle: 'Rei que nos inforque, e papa que nos excommungue, nunca hade faltar. Assim, deixar os outros brigar, trabalhemos nós e ganhemos a nossa vida.' Mas que extrangeiros que não queria, que ésta terra que era nossa e co'a nossa gente se devia de governar. E mais coisas assim: e que porfim o deram por traidor e lhe tiraram quanto tinha. -- Mas que lhe valeu o Condestavel e o não deixou arrazar, por que era homem de bem e fidalgo ás direitas. Pois não é assim que foi?'
-- 'É, sim, meu amigo. Mas então d'ahi?'
-- 'Então d'ahi o que se tira, é que quando havia fidalgos como o sancto
Condestavel tambem havia Alfagemes como o de Santarem. E mais nada.'
-- 'Perfeitamente. Mas porque chamaram ao mestre P. o Alfageme do
Cartaxo?'
-- 'Eu lhe digo aos senhores: o homem nem era assim nem era assado. Fallava bem, tinha sua labia com o povo. D'ahi fez-se juiz, pôs por ahi suas coisas a direito -- Deus sabe as que elle intortou tambem!.. ganhou nome no povo, e agora faz d'elle o que quer. Se lhe der sempre para bem, bom será. -- Os senhores não tomam nada?'
O bom do homem visivelmente não queria fallar mais: e não deviamos importuná-lo. Fizemos o sacrificio de bom número de limões que expremémos em profundas taças -- vulgo, copos de canada -- e com agua e assucar, offerecemos as devidas libações ao genio do logar.
Infelizmente o sacrificio não foi detodo incruento. Muitas hecatombes de myrmidões cahiram no holocausto, e lhe deram um cheiro e sabor que não sei se agradou á divindade, mas que injoou terrivelmente aos sacerdotes.
Sahimos a visitar o nosso bom amigo, o velho D., a honra e a alegria do Ribatejo. Ja elle sabía da nossa chegada, e vinha no caminho para nos abraçar.
Fomos dar, junctos, uma volta pela terra.
É das povoações mais bonitas de Portugal, o Cartaxo, aceada, alegre; parece o bairro suburbano de uma cidade.
Não ha aqui monumentos, não ha historia antiga: a terra é nova, e a sua prosperidade e crescimento datam de trinta ou quarenta annos, desde que o seu vinho começou a ter fama. Ja descahida do que foi, pela estagnação d'aquelle commercio, ainda é comtudo a melhor coisa da Borda-d'agua.
Não tem historia antiga, disse; mas tem-n'a moderna e importantissima.
Que memorias aqui não ficaram da guerra peninsular! Que espantosas borracheiras aqui não tomaram os mais famosos generaes, os mais distinctos militares da nossa antiga e fiel alliada, que ainda então, ao menos, nos bebia o vinho!
Hoje nem isso!.. hoje bebe a jacobina zurrapa de Bordeos, e as acerbas limonadas de Borgonha. Quem tal diria da conservativa Albion! Como póde uma leal goella britannica, rascada pelos acidos anarchicos d'aquellas vinagretas francezas, intoar devidamente o God-save-the-King em um toast nacional! Como, sem Porto ou Madeira, sem Lisboa, sem Cartaxo, ousa um subdito britannico erguer a voz, n'aquella harmoniosa desafinação insular que lhe é propria e que faz parte de seu respeitavel character nacional -- faz; não se riam: o inglez não canta senão quando bebe... alias quando está BEBIDO. Nisi potus ad arma ruisse. Inverta: Nisi potus in cantum prorumpisse... E pois, como hade elle assim bebido erguer a voz n'aquelle sublime e tremendo hymno popular Rulle-Britannia!
Bebei, bebei bem zurrapa franceza, meus amigos inglezes; bebei, bebei a pêso de oiro, essas limonadas dos burgraves e margraves de Allemanha; chamae-lhe, para vos illudir, chamae-lhe hoc, chamae-lhe hic, chamae-lhe o hic haec hoc todo, se vos dá gôsto... que em poucos annos veremos o estado de acetato a que hade ficar reduzido o vosso character nacional.
Oh gente cega a quem Deus quer perder! pois não vêdes que não sois nada sem nós, que sem o nosso alchool, d'onde vos vinha espirito, sciencia, valor, ides cahir infallivelmente na antiga e priguiçosa rudeza saxonia!
D'essas traidoras praias da França donde vos vai hoje o veneno corrosivo da vossa indole e da vossa fôrça, não tardará que tambem vos chegue outro Guilherme bastardo que vos conquiste e vos castigue, que vos faça arrepender, mas tarde, do criminoso êrro que hoje commetteis, ó insulares sem fe, em abandonar a nossa alliança. A nossa alliança sim, a nossa poderosa alliança, sem a qual não sois nada.
O que é um inglez sem Porto ou Madeira... sem Carcavellos ou Cartaxo?
Que se inspirasse Shakspeare com Lafitte, Milton com Chateaumargot -- o chanceller Bacon que se dilluisse no melhor Borgonha... e veriamos os acidulos versinhos, os destemperados raciocininhos que faziam.
Com todas as suas dietas, Newton nunca se lembrou de beber Johannisberg; Byron antes beberia gin, antes agua do Thamisa, ou do Pamiso, do que essas escorreduras das areias de Bordeos.
Tirae-lhe o Porto aos vossos almirantes, e ninguem mais teme que torneis a ter outro Nelson. Entra nos planos do principe de Joinville fazer-vos beber da sua zurrapa: são tantos pontos de partido que lhe dais no seu jôgo.
É M. Guizot quem perde a Inglaterra com a sua alliança; e tambem perde o
Cartaxo. Por isso eu ja não quero nada com os doutrinarios.
Ha dôze annos tornou o Cartaxo a figurar conspicuamente na historia de
Portugal. Aqui, nas longas e terriveis luctas da última guerra de
successão, esteve muito tempo o quartel-general do marquez de
Saldanha.
Alguns dythirambos se fizeram; alguns echos das antigas canções bacchicas do tempo da guerra peninsular ainda acordaram ao som dos hymnos constitucionaes.
Mas o systema liberal, tirada a epocha das eleições, não é grande coisa para a indústria vinhateira, dizem. Eu não o creio porém; e tenho minhas boas razões, que ficam para outra vez.
CAPITULO VIII
Sahida do Cartaxo -- A charneca. Perigo imminente em que o A. se acha de dar em poeta e fazer versos. -- Ultima revista do imperador D. Pedro ao exército liberal. -- Batalha de Almoster. -- Waterloo. -- Declara o A. solemnemente que não é philosopho e chega á ponte da Asseca.
Eram dadas cinco da tarde, a calma declinava; montámos a cavallo, e cortámos por entre os viçosos pampanos que são a glória e a e tomado ânimo; breve, nos achámos em plena charneca.
Bella e vasta planicie! Desafogada dos raios do sol, como ella se desenha ahi no horisonte tam suavemente! que delicioso aroma selvagem que exhalam éstas plantas, acres e tenazes de vida, que a cobrem, e que resistem verdes e viçosas a um sol portugez de julho!
A doçura que mette n'alma a vista refrigerante de uma joven seara do Ribatejo nos primeiros dias de abril, ondulando lascivamente com a brisa temperada da primavera, -- a amenidade bucolica de um campo minhoto de milho, á hora da rega, por meados de agosto, a ver-se-lhe pullar os caules com a agua que lhe anda por pé, e á roda as carvalheiras classicamente desposadas com a vide cuberta de racimos pretos -- são ambos esses quadros de uma poesia tam graciosa e cheia de mimo, que nunca a dei por bem traduzida nos melhores versos de Theocrito ou de Virgilio, nas melhores prosas de Gesner ou de Rodrigues-Lobo.
A majestade sombria o solemne de um bosque antigo e copado, o silencio e escuridão de suas moitas mais fechadas, o abrigo solitario de suas clareiras, tudo é grandioso, sublime, inspirador de elevados pensamentos. Medita-se alli por fôrça; isola-se a alma dos sentidos pelo suave adormecimento em que elles cahem... e Deus, a eternidade -- as primitivas e innatas ideas do homem -- ficam unicas no seu pensamento...
É assim. Mas um rochedo em que me eu sente ao pôr do sol na gandra erma e selvagem, vestida apenas de pastio bravo, baixo, e tosqueado rente da bôcca do gado -- diz-me coisas da terra e do ceo que nenhum outro espectaculo me diz na natureza. Ha um vago, um indeciso, um vaporoso n'aquelle quadro que não tem nenhum outro.
Não é o sublime da montanha, nem o augusto do bosque, nem o ameno do valle. Não ha ahi nada que se determine bem, que se possa definir positivamente. Ha a solidão que é uma idea negativa...
Eu amo a charneca.
E não sou romanesco. Romantico, Deus me livre de o ser -- ao menos, o que na algaravia de hoje se intende por essa palavra.
Ora a charneca d'entre Cartaxo e Santarem, áquella hora que a passámos, começava a ter esse tom, e a achar-lhe eu esse incanto indefinivel.
Sentia-me disposto a fazer versos... a quê? Não sei.
Felizmente que não estava so; e escapei de mais essa caturrice.
Mas foi como se os fizesse, os versos, como se os estivesse fazendo, porque me deixei cahir n'um verdadeiro estado poetico de distracção, de mudez -- cessou-me a vida toda de relação, e não me sentia existir senão por dentro.
Derepente acordou-me do lethargo uma voz que bradou: -- 'Foi aqui!... aqui é que foi, não ha dúvida'.
-- 'Foi aqui o quê?'
-- 'A última revista do imperador'.
-- 'A última revista! Como assim a última revista! Quando? Pois?...'
Então cahi completamente em mim, e recordei-me, com amargura e desconsolação, dos tremendos sacrificios a que foi condemnada ésta geração, Deus sabe para quê -- Deus sabe se para expiar as faltas de nossos passados, se para comprar a felicidade de nossos vindouros...
O certo é que alli comeffeito passára o imperador D. Pedro a sua última revista ao exército liberal. Foi depois da batalha d'Almoster, uma das mais lidadas e das mais insanguentadas d'aquella triste guerra.
Toda a guerra civil é triste.
E é difficil dizer para quem mais triste, se para o vencedor ou para o vencido.
Ponham de parte questões individuaes, e examinem de boa fé: verão que, na totalidade de cada facção em que a nação se dividiu, os ganhos, se os houve para quem venceu, não balançam os padecimentos, os sacrificios do passado, e menos que tudo, a responsabilidade pelo futuro...
Eu não sou philosopho. Aos olhos do philosopho, a guerra civil e a guerra extrangeira, tudo são guerras que elle condemna -- e não mais uma do que a outra... a não ser Hobbes o ditto philosopho, o que é coisa muito differente.
Mas não sou philosopho, eu: estive no campo de Waterloo, sentei-me aopé do Leão de bronze sôbre aquelle monte de terra amassado com o sangue de tantos mil, vi -- e eram passados vinte annos -- vi luzir ainda pela campina os ossos brancos das victimas que alli se immolaram a não sei quê... Os povos disseram que á liberdade, os reis que á realeza... Nenhuma d'ellas ganhou muito, nem para muito tempo com a tal victoria...
Mas deixemos isso. Estive alli, e senti bater-me o coração com essas recordações, com essas memorias dos grandes feitos e gentilezas que alli se obraram.
Porque será que aqui não sinto senão tristeza?
Porque luctas fratricidas não podem inspirar outro sentimento e porque...
Eu moía comigo so éstas amargas reflexões, e toda a belleza da charneca desappareceu deante de mim.
N'esta desagradavel disposição de ânimo chegámos á ponte d'Asseca.
CAPITULO IX
Prologomenos dramatico-litterarios, que muito naturalmente levam, apezar de alguns rodeios, ao retrospecto e reconsideração do capitulo antecedente. -- Livros que não deviam ter titulo, e titulos que não deviam ter livro. -- Dos poetas d'este seculo. Bonaparte, Rotchild e Silvio-Péllico. -- Chega-se ao fim d'estas reflexões e á ponte da Asseca. -- Traducção portugueza de um grande poeta. -- Origem de um dictado. -- Junot na ponte da Asseca. -- De como o A. d'este livro foi jacobino desde pequeno. -- Inguiço que lhe deram. -- A duqueza de Abrantes. -- Chega-se emfim ao val de Santarem.
Vivia aqui ha coisa de cinquenta para sessenta annos, n'esta boa terra de Portugal, um figurão exquisitissimo que tinha inquestionavelmente o instincto de descobrir assumptos dramaticos nacionaes -- ainda, ás vezes, a arte de desenhar bem o seu quadro, de lhe grupar, não sem mérito, as figuras: mas ao pô-las em acção, ao collori-las, ao fazê-las fallar... boas noites! era semsaboria irremediavel.
Deixou uma collecção immensa de peças de theatro que ninguem conhece, ou quasi ninguem, e que nenhuma soffreria, talvez, representação; mas rara é a que não poderia ser arranjada e appropriada á scena.
Que mina tam ricca e fertil para qualquer mediano talento dramatico! Que bellas e portuguezas coisas se não podem extrahir dos treze volumes -- são treze volumes e grandes! -- do theatro de Ennio-Manuel de Figueiredo! Algumas d'essas peças, com bem pouco trabalho, com um dialogo mais vivo, um stylo mais animado, fariam comedias excelentes.
Estão-me a lembrar éstas:
'O Casamento da Cadea' -- ou talvez se chame outra coisa, mas o assumpto é este; comedia cujos characteres são habilmente esboçados, funda-se n'aquella nossa antiga lei que fazia casar da prisão os que assim se suppunha podêrem reparar certos damnos de reputação feminina.
'O fidalgo de sua casa', satyra mui graciosa de um tam commum ridiculo nosso.
'As duas educações', bello quadro de costumes: são dois rapazes, ambos extrangeiramente educados, um francez, outro inglez, nenhum portuguez. É eminentemente comico, frisante, ou, segundo agora se diz á moda, 'palpitante de actualidade.'
'O cioso', comedia ja remoçada da antiga comedia de Ferreira e que em si tem os germens todos da mais ricca e original composição.
'O avaro dissipador', cujo so titulo mostra o ingenho e invenção de quem tal assumpto concebeu: assumpto ainda não tractado por nenhum de tantos escriptores dramaticos de nação alguma, e que é todavia um vulgar ridiculo, todos os dias incontrado no mundo.
São muitas mais, não fica n'estas, as composições do fertilissimo escriptor que, passadas pelo crivo de melhor gôsto, e animadas sôbretudo no stylo, fariam um razoavel repertorio para acudir á mingua dos nossos theatros.
Uma das mais semsabores porêm, a que vulgarmente se haverá talvez pela mais semsabor, mas que a mim mais me diverte pela ingenuidade familiar e sympathica de seu tom magoado e melancholicamento chocho, é a que tem por titulo 'Poeta em annos de prosa'.
E foi por ésta, foi por amor d'esta que me eu deixei descahir na digressão dramatico-litteraria do princípio d'este capitulo; pegou-se-me á penna porque se me tinha pregado na cabeça; e ou o capitulo não sabia, ou ella havia de sahir primeiro.
Poeta em annos de prosa! Oh Figueiredo, Figueiredo, que grande homem não foste tu, pois imaginaste este titulo que so elle em si é um volume! Ha livros, e conheço muitos, que não deviam ter titulo, nem o titulo é nada n'elles.
Faz favor de me dizer o de que serve, o que significa o 'Judeu errante' pôsto no frontispicio d'esse interminavel e mercatorio romance que ahi anda pelo mundo, mais errante, mais sem fim, mais immorredoiro que o seu prototypo?
E ha titulos tambem que não deviam ter livro, porque nenhum livro é possivel escrever que os desimpenhe como elles merecem.
'Poeta em annos de prosa' é um d'esses.
Eu não leio nenhuma das raras coisas que hoje se escrevem verdadeiramente bellas, isto é, simples, verdadeiras, e por consequencia sublimes, que não exclame com sincero pesadume ca de dentro: 'Poeta em annos de prosa!'
Pois este é seculo para poetas? ou temos nós poetas para este seculo?..
Temos sim, eu conheço tres: Bonaparte, Silvio-Péllico e o barão de
Rotchild.
O primeiro fez a sua Iliada com a espada, o segundo com a paciencia, o último com o dinheiro.
São os tres agentes, as tres entidades, as tres divindades da epocha.
Ou cortar com Bonaparte, ou comprar com Rotchild, ou soffrer e ter paciencia com Silvio-Péllico.
Todo o que fizer d'outra poesia -- e d'outra prosa tambem -- é tolo...
Vieram-me éstas mui judiciosas reflexões a proposito do capitulo antecedente d'esta minha obra prima; e lancei-as aqui para instrucção e edificação do leitor benevolo.
Acabei com ellas quando chegámos á ponte da Asseca.
Esquecia-me dizer que d'aquelles tres grandes poetas so um está traduzido em portuguez -- o Rotchild: não é litteral a traducção, agallegou-se e ficou muito suja de erros de imprensa mas como não ha outra...
Ora d'onde veio este nome da Asseca? Algures aqui perto deve de haver sitio, logar ou coisa que o valha, com o nome de Meca; e d'ahi talvez o admiravel rifão portuguez que ainda não foi bem examinado como devia ser, e que decerto incerra algum grande dictame de moral primitiva: 'andou por Secca (Asseca?) e Meca e olivaes de Santarem.' -- Os taes olivaes ficam logo adiante. É uma ethymologia como qualquer outra.
A ponte da Asseca corta uma varzea immensa que hade ser um vasto pahul de hynverno: ainda agora está a desangrar-se em agua por toda a parte.
É notavel na historia moderna este sítio. Aqui n'um recontro com os nossos, foi Junot gravemente ferido, ferido na cara. 'Il ne sera plus beau garçon' disse o parlamentario francez que veio, depois da acção, tractar, creio eu, de troca de prisioneiros ou de coisa similhante. Mas inganou-se o parlamentario; Junot ainda ficou muito guapo e gentil homem depois d'isso.
Tenho pena de nunca ter visto o Junot nem o Maneta, as duas primeiras notabilidades que ouvi aclamar como taes e cujos nomes conhecí... Ingano-me: conheci primeiro o nome de Bonaparte. E lembra-me muito bem que nunca me persuadi que elle fossa o monstro disforme e horroroso que nos pintavam frades e velhas n'aquelle tempo. Imaginei sempre que, para excitar tantos odios e malquerenças, era necessario que fosse um bem grande homem.
Desde pequeno que fui jacobino; ja se ve: e de pequeno me custou caro. Levei bons puchões de orelhas de meu pae por comprar na feira de San'Lazaro, no Porto, em vez das gaitinhas ou dos registos de sanctos, ou das outras bogigangas que os mais rapazes compravam... não imaginam o quê... um retrato de Bonaparte.
Foi 'inguiço' -- diria uma senhora do meu conhecimento que accredita n'elles: foi inguiço que aínda se não desfez e que toda a vida me tem perseguido.
Quem me diria quando, por esse primeiro peccado politico da minha infancia, por esse primeiro tractamento duro, e -- perdoe-me a respeitada memoria de meu sancto pae! -- injustissimo, que me trouxe o mero instincto das ideas liberaes, quem me diria que eu havia de ser perseguido por ellas toda a vida! que apenas sahido da puberdade havia de ir a essa mesma França, á patria d'esses homens e d'essas ideas com quem a minha natureza sympathysava sem saber porquê, buscar asylo e guarida?
Não vi ja quasi nenhum d'aquelles que tanto desejára conhecer; as ruinas do grande imperio estavam dispersas; os seus generaes mortos, desterrados, ou trajavam interesseiros e covardes as librés do vencedor...
De todas as grandes figuras d'essa epocha, a que melhor conheci e tractei foi uma senhora, typo de graça, de amabilidade e de talento. Pouco foi o nosso tracto, mas quanto bastou para me incantar, para me formar no espirito um modêllo de valor e merecimento feminino que me veio a fazer muito mal.
Custa depois a encher aquella altura que se marcou...
Eis aqui como eu fiz esse conhecimento.
Inda o estou vendo, coitado! o pobre C. do S., nobre, espirituoso, cavalheiro, fazendo-se perdoar todos os seus prejuizos de casta, que tinha como ninguem, por aquella polidez superior e affabilidade elegante que distingue o verdadeiro fidalgo (stylo antigo); inda o estou vendo, ja sexagenario, ja mais que 'ci-devant jeun'homme', o pescoço intallado na inflexivel gravata, os pés pegando-se-lhe, como os de Ovidio, ao limiar da porta -- não que lh'os prendessem saudades, senão que lh'os paralysava a cakexia incipiente -- mas o espirito joven a reagir e a teimar.
-- 'Vamos!' disse elle 'hoje estou bom, sinto-me outro: quero apresentá-lo a madame de Abrantes. Está tam velha! Isto de mulheres não são como nós, passam muito depressa.'
E o desgraçado tremiam-lhe as pernas, e suffocava-o a tosse.
Tomámos uma 'citadine', e fomos comeffeito á nova e elegante rua chamada não impropriamente a rua de Londres, onde achámos rodeada de todo o esplendor do seu occaso aquella formosa estrella do imperio.
Não quero dizer que era uma belleza; longe d'isso. Nem bella nem môça, nem airosa de faser impressão era a duqueza d'Abrantes. Mas em meia hora de conversação, de tracto, descubriam-se-lhe tantas graças, tanto natural, tanta amabilidade, um complexo tam verdadeiro e perfeito da mulher franceza, a mulher mais seductora do mundo, que involuntariamente se dizia a gente no seu coração: 'Como se está bem aqui!'
Fallámos de Portugal, de Lisboa, do imperio -- da restauração, da revolução de julho (isto era em 1831), de M. de Lafayette, de Luiz-Philippe, de Chateaubriand -- o seu grande amigo d'ella -- do Sacré-Coeur e das suas elegantes devotas -- fallámos artes, poesia, politica... e eu não tinha ânimo para acabar de conversar...
Benevolo e paciente leitor, o que eu tenho decerto ainda é consciencia, um resto de consciencia: acabemos com éstas digressões e perennaes divagações minhas. Bem vejo que te deixei parado á minha espera no meio da ponte d'Asseca. Perdoa-me por quem es, dêmos d'espora ás mulinhas, e vamos que são horas.
Ca estâmos n'um dos mais lindos e deliciosos sitios da terra: o valle de Santarem, patria dos rouxinoes e das madresilvas, cincta de faias bellas e de loureiros viçosos. D'isto é que não tem París, nem França nem terra alguma do occidente senão a nossa terra, e vale bem por tantas, tantas coisas que nos faltam.
CAPITULO X
Valle de Santarem -- Namora-se o A. de uma janella que ve por entre umas árvores. -- Conjecturas várias a respeito da ditta janella. -- Similhança do poeta com a mulher namorada, e inquestionavel inferioridade do homem que não é poeta. -- Os rouxinoes. Reminiscencia de Bernardim Ribeiro e das suas saudades. -- De como o A. tinha quasi completo o seu romance, menos um vestido branco e uns olhos pretos. -- Sahem verdes os olhos com grande admiração e pasmo seu. -- Verificam-se as conjecturas sôbre a mysteriosa janella. -- A menina dos rouxinoes. -- Censura das damas muito para temer, crítica dos elegantes muito para rir. -- Começa o primeiro episodio d'esta Odyssea.
O valle de Santarem é um d'estes logares privilegiados pela natureza, sitios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está n'uma harmonia suavissima e perfeita: não ha alli nada grandioso nem sublime, mas ha uma como symetria de côres, de sons, de disposição em tudo quanto se ve e se sente, que não parece senão que a paz, a saude, o socêgo do espirito e o repouso do coração devem viver alli, reinar alli um reinado de amor e benevolencia. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pezares e as villezas da vida não podem senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Eden que o primeiro homem habitou com a sua innocencia e com a virgindade do seu coração.
Á esquerda do valle, e abrigado do norte pela montanha que alli se corta quasi a pique, está um masisso de verdura do mais bello viço e variedade. A faia, o freixo, o alamo enterlaçam os ramos amigos; a madresilva, a musqueta penduram de um a outro suas grinaldas e festões; a congossa, os fettos, a malva-rosa do vallado vestem e alcatifam o chão.
Para mais realçar a belleza do quadro, ve-se por entre um claro das árvores a janella meia aberta de uma habitação antiga mas não dilapidada -- com certo ar de confôrto grosseiro, e carregada na côr pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janella é larga e baixa; parece mais ornada e tambem mais antiga que o resto do edificio que todavia mal se ve...
Interessou-me aquella janella.
Quem terá o bom gôsto e a fortuna de morar alli?
Parei e puz-me a namorar a janella.
Incantava-me, tinha-me alli como n'um feitiço.
Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por de traz...
Imaginarão decerto! Se o vulto fosse feminino!.. era completo o romance.
Como hade ser bello ver pôr o sol d'aquella janella!..
E ouvir cantar os rouxinoes!..
E ver raiar uma alvorada de maio!..
Se haverá alli quem a aproveite, a deliciosa janella?.. quem apprecie e saiba gosar todo o prazer tranquillo, todos os sanctos gosos de alma que parece que lhe andam esvoaçando em tôrno?
Se fôr homem é poeta; se é mulher está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada: vêem, sentem, pensam, fallam como a outra gente não ve, não sente, não pensa nem falla.
Na maior paixão, no mais acrysolado affecto do homem que não é poeta, entra sempre o seu tanto da vil prosa humana: é liga sem que se não lavra o mais fino de seu oiro. A mulher não; a mulher apaixonada devéras sublima-se, idealiza-se logo, toda ella é poesia; e não ha dor physica, interêsse material, nem deleites sensuaes que a façam descer ao positivo da existencia prosaica.
Estava eu n'estas meditações, começou um rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga que ha muito tempo me lembra de ouvir.
Era aope da ditta janella!
E respondeu-lhe logo outro do lado opposto; e travou-se entre ambos um desafio tam regular, em strophes alternadas tam bem medidas, tam accentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro do meu romance, esqueci-me de tudo o mais.
Lembrou-me o rouxinol de Bernardim-Ribeiro, o que se deixou cahir n'agua de cançado.
O arvoredo, a janella, os rouxinoes... áquella hora, o fim da tarde... que faltava para completar o romance?
Um vulto feminino que viesse sentar-se áquele balcão -- vestido de branco -- oh! branco por fôrça... a frente descahida sôbre a mão esquerda, o braço direito pendente, os olhos alçados ao ceo... De que côr os olhos? Não sei, que importa! é amiudar muito demais a pintura, que deve ser a grandes e largos traços para ser romantica, vaporosa, desenhar-se no vago da idealidade poetica...
-- 'Os olhos, os olhos...' disse eu pensando ja alto, e todo no meu extasi, 'os olhos... pretos.'
-- 'Pois eram verdes!'
-- 'Verdes os olhos... d'ella, do vulto da janella?'
-- 'Verdes como duas esmeraldas orientaes, transparentes, brilhantes, sem preço.'
-- 'Quê! pois realmente?.. É gracejo isso, ou realmente ha alli uma mulher, bonita, e?..'
-- 'Alli não ha ninguem -- ninguem que se nomeie hoje, mas houve... oh! houve um anjo, um anjo, que deve de estar no ceo.'
-- 'Bem dizia eu que aquella janella...'
-- 'É a janella dos rouxinoes.'
-- 'Que lá estão a cantar.'
-- 'Estão, esses lá estão ainda como ha dez annos -- os mesmos ou outros, mas a menina dos rouxinoes foi-se e não voltou.'
-- 'A menina dos rouxinoes! que historia é essa? Pois devéras tem uma historia aquella janella?'
-- 'É um romance todo inteiro, todo feito como dizem os francezes e conta-se em duas palavras.'
-- 'Vamos a elle. A menina dos rouxinoes, menina com olhos verdes! Deve ser interessantissimo. Vamos á historia ja.'
-- 'Pois vamos. Apeemo'-nos e descancemos um bocado.'
Ja se ve que este dialogo passava entre mim e outro dos nossos companheiros de viagem.
Apeámo'-nos comeffeito; sentamo'-nos; e eisaqui a historia da menina dos rouxinoes como ella se contou.
É o primeiro episodio da minha Odyssea: estou com medo de entrar n'elle porque dizem as damas e os elegantes da nossa terra que o portuguez não é bom para isto, que em francez que ha outro não-sei-quê...
Eu creio que as damas que estão mal informadas, e sei que os elegantes que são uns tolos; mas sempre tenho meu receio, porque emfim, enfim, d'elles me rio eu, mas poesia ou romance, musica ou drama de que as mulheres não gostem, é porque não presta.
Ainda assim, bellas e amaveis leitoras, intendamo'nos: o que eu vou contar não é um romance, não tem aventuras inredadas, peripecias, situações e incidentes raros; é uma historia simples e singella, sinceramente contada e sem pretenção.
Acabemos aqui o capitulo em fórma de prologo, e a materia do meu conto para o seguinte.
CAPITULO XI
Tracta-se do unico privilegio dos poetas que tambem os philosophos quizeram tirar, mas não lhes foi concedido; aos romancistas sim. -- Exemplo de Aristoteles e Anacreonte. -- O A., tendo declarado no capitulo nono d'esta obra que não era philosopho, agora confessa, quasi solemnemente, que é poeta, e pretende manter-se, como tal, em seu direito. -- De como S. M. elrei de Dinamarca tinha menos juizo do que Yorick, seu bobo. -- Doutrina d'este. Funda n'ella o A. o seu admiravel systema de physiologia e pathologia transcendente do coração. Por uma deducção appertada e cerrada da mais constrangente logica vem a dar-se no motivo porque foi concedido aos poetas o direito indefinido de andarem sempre namorados. -- Applicam-se todas éstas grandes theorias á posição actual do A. no momento de entrar no episodio promettido no capitulo antecedente. -- Modestia e reserva delicada o obrigam a duvidar da sua qualificação para o desimpenho: pede votos ás amaveis leitoras. Decide-se que a votação não seja nominal, e porquê. -- Dido e a mana Annica. -- Entra-se emfim na prometida historia. -- De como a velha estava á porta a dobar, e imbaraçando-se-lhe a meada, chamou por Joaninha, sua neta.
Este é o unico privilegio dos poetas: que até morrer podem estar namorados. Tambem não lhes conheço outro. A mais gente tem as suas epochas na vida, fóra das quaes lhes não é permittido apaixonarem-se. Pretenderam accolher-se ao mesmo beneficio os philosophos, mas não lhes foi consentido pela rainha Opinião, que é soberana absoluta e juiz supremo de que se não appella nem aggrava ninguem.
Anacreonte cantou, de cabellos brancos, os seus amores, e não se extranhou. Aristoteles mal teria a barba russa quando foi d'aquelle seu último namôro porque ainda hoje lhe apouquentam a fama.
Ora eu philosopho, seguramente não sou, ja o disse; de poeta tenho o meu pouco, padeci, a fallar a verdade, meus ataques assás agudos d'essa molestia, e bem podéra desculpar-me com elles de certas fragilidades de coração... Mas não senhor, não quero desculpar-me como quem tem culpa senão defender-me como quem tem razão e justiça por si.
Estou, com o meu amigo Yorick, o ajuizadissimo bobo d'elrei de Dinamarca, o que alguns annos depois ressuscitou em Sterne com tam elegante penna, estou sim. 'Toda a minha vida' diz elle 'tenho andado apaixonado ja por esta ja por aquella princeza, e assim heide ir, espero, até morrer, firmemente persuadido que se algum dia fizer uma acção baixa, mesquinha, nunca hade ser senão no intervallo de uma paixão á outra: n'esses interregnos sinto fechar-se-me o coração, esfria-me o sentimento, não acho dez reis que dar a um pobre... por isso fujo ás carreiras de similhante estado; e mal me sinto acceso de novo, sou todo generosidade e benevolencia outra vez.'
Yorick tem rasão, tinha muito mais razão e juizo que seu augusto amo, elrei de Dinamarca. Por pouco mais que se generalize o principio, fica indisputavel, inexcepcionavel para sempre e para tudo. O coração humano é como o estomago humano, não pode estar vazio, preciza de alimento sempre: são e generoso so as affeições lh'o podem dar; o odio, a inveja e toda a outra paixão má é estímulo que so irrita mas não sustenta. Se a razão e a moral nos mandam abster d'estas paixões, se as chymeras philosophicas, ou outras, nos vedarem aquellas, que alimento dareis ao coração, que hade elle fazer? Gastar-se sôbre si mesmo, consummir-se... Altera-se a vida, appressa-se a dissolução moral da existencia, a saude d'alma é impossivel.
O que póde viver assim, vive para fazer mal ou para não fazer nada.
Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente, seu filho se o tem, sua mãe se a conserva, ou a mulher que prefere a todas, esse homem é o tal, e Deus me livre d'elle.
Sôbretudo que não escreva: hade ser um massador terrivel. Talvez seja este o motivo da indefinida permissão que é dada aos poetas de andarem namorados sempre.
O romancista gosa do mesmo fôro e tem as mesmas obrigações. É como o privilegio de desimbargador que tiravam d'antes os fidalgos, quando ser desimbargador valia alguma coisa... e tanta coisa!
Como heide eu então, eu que n'esta grave Odyssea das minhas viagens tenho de inserir o mais interessante e mysterioso episodio d'amor que ainda foi contado ou cantado, como heide eu fazê-lo, eu que ja não tenho que amar n'este mundo senão uma saudade e uma esperança -- um filho no berço e uma mulher na cova?..
Será isto bastante? Dizei-o vós, ó benevolas leitoras, póde com isto so alimentar-se a vida do coração?
-- Póde sim.
-- Não póde, não.
-- Estão divididos os suffragios: peço votação.
-- Nominal?
-- Não, não.
-- Porquê?
-- Porque ha muita coisa que a gente pensa, e crê e diz assim a conversar, mas que não ousa confessar publicamente, professar aberta e nomeadamente no mundo...
Ah! sim... elle é isso? Bem as intendo, minhas senhoras: reservemos sempre uma sahida para os casos difficeis, para as circumstancias extraordinarias. Não é assim?
Pois o mesmo farei eu.
E pôsto que hoje, faz hoje um mez, em tal dia como hoje, dia para sempre assignalado na minha vida, me apparecesse uma visão, uma visão celeste que me surpreendeu a alma por um modo novo e extranho, e do qual não podia dizer decerto como a rainha Dido á mana Annica:
Reconheço o queimar da chamma antiga,
Agnosco veteris vestigia flammae;
pôsto que a visão passou e desappareceu... mas deixou gravada n'alma a certeza de que... Pôsto que seja assim tudo isto, a confidencia não passará d'aqui, minhas senhoras: tanto basta para se saber que estou sufficientemente habilitado para chronista da minha historia, e a minha historia é ésta.
Era no anno de 1832, uma tarde de verão como hoje calmosa, sêcca, mas o ceo puro e desabafado. Á porta d'essa casa entre o arvoredo, estaca sentada uma velhinha bem passante dos settenta, mas que o não mostrava. Vestia uma especie de tunica rosa que apertava na cintura com um largo cinto de coiro preto, e que fazia resahir a alvura da cara e das mãos longas, descarnadas, mas não ossudas como usam de ser mãos de velhas; toucava-se com um lenço da mais escrupulosa brancura, e pôsto de um geito particular a modo de toalha de freira; um mandil da mesma brancura, que tinha no peito e que affectava, não menos, a fórma de um escapulario de monja, completava o extranho vestuario da velha. Estava sentada n'uma cadeira baixa do mais classico feitio: textualmente parecia a que serviu de modêllo a Raphael para o seu bello quadro da Madonna della Sedia.
Como nota historica e illustração artistica, seja-me permittido juntar aqui em parenthesis que, não ha muito, vi em casa de um sapateiro remendão, em Lisboa, no Bairro-alto, um cadeira tal e qual; torneados pyramidaes, simples, sem nobreza, mas elegantes.
Tornemos á velhinha.
Estava ella alli sentada na ditta cadeira, e deante de si tinha uma dobadoira, que se movia regularmente com o tirar do fio que lhe vinha ter ás mãos a inrollar-se no ja crescido novello.
Era o unico signal de vida que havia em todo esse quadro. Sem isso,
velha, cadeira, dobadoira, tudo pareceria uma graciosa sculptura de
Antonio Ferreira ou um d'aquelles quadros tam verdadeiros do morgado de
Setubal.
O movimento bem visivel da dobadoira era regular, e respondía ao movimento quasi imperceptivel das mãos da velha. Era regular o movimento, mas durava um minuto e parava, depois ia seguido outros dous, tres minutos, tornava a parar: e n'esta regularidade de intermitencias se ia alternando como o pulso de um que treme sesões.
Mas o velha não tremia, antes se tinha muito direita e aprumada: o parar do seu lavor era porque o trabalho interior do espirito dobrava, de vez em quando, de intensidade, e lhe suspendia todo o movimento externo. Mas a suspensão era curta e mesurada; reagia a vontade, e a dobadoira tornava a andar.
Os olhos da velha é que tinham uma expressão singular: voltada para o poente, não os tirou d'essa direcção nem os inclinava de modo algum para a dobadoira que lhe ficava um pouco mais á esquerda. Não pestanejavam, e o azul de suas pupillas, que devia de ter sido brilhante como o das saphyras, parecia desbotado e sem lume.
O movimento da dobadoira estacou agora de repente, a velha poisou tranquillamente as mãos e o novello no regaço, e chamou para dentro da casa:
-- 'Joanninha?'
Uma voz doce, pura, mas vibrante, d'estas vozes que se ouvem rara vez, que retinem dentro d'alma e que não esquecem nunca mais, respondeu de dentro:
-- 'Senhora? Eu vou, minha avó, eu vou.'
-- 'Querida filha!.. Como ella me ouviu logo! Deixa, deixa: vem quando podéres. É a meada que se me imbaraçou.'
A velha era cega, cega de gotta-serena, e paciente, resignada como a providencia misericordiosa de Deus permitte quasi sempre que sejam os que n'este mundo destinou á dura provança de tam desconsolado martyrio.
CAPITULO XII
De como Joanninha desimbaraçou a meada da avó, e do mais que aconteceu. -- Que casta de rapariga era Joanninha. -- Dá o A. insigne próva de ingenuidade e boa fe confessando um grave senão do seu Ideal. Insiste porém que é um adoravel deffeito. -- Em que se parece uma mulher desannellada com um Sansão tosquiado. -- Pasmosas monstruosidades da natureza que desmentem o credo velho dos peralvilhos. -- Os olhos verdes de Joanninha. -- Religião dos olhos pretos strenuamente professada pelo A. Perigo em que ella se acha á vista de uns olhos verdes. -- De como estando a avó e a neta a conversar muito de mano a mano, chega Frei Diniz e se interrompe a conversação. -- Quem era Frei Diniz.
-- 'Aqui estou, minha avó: é a sua meada?.. eu lh'a indireito:' -- disse Joanninha sahindo de dentro, e com os braços abertos para a velha. Apertou-a n'elles com innefavel ternura, beijou-a muitas vezes, e tomando-lhe o novello das mãos n'um instante desimbaraçou o fio e lh'o tornou a intregar.
A velha surria com aquelle surriso satisfeito que exprime os tranquillos gosos de alma, e que parecia dizer: 'Como eu sou feliz ainda, apezar de velha e de cega! Bemdito sejais, meu Deus.'
Ésta última phrase, ésta bençam de um coração agradecido, que spira suavemente para o ceo como sobe do altar o fummo do incenso consagrado, ésta última phrase trasbordou-lhe e sahiu articulada dos labios:
-- 'Bemditto seja Deus' minha filha, minha Joanninha, minha querida neta!
E Elle te abençoe tambem, filha!'
-- 'Sabe que mais, minha avó? Basta de trabalhar hoje, são horas de merendar'.
-- 'Pois merendemos'.
Joannninha foi dentro da casa, trouxe uma banquinha redonda, cubriu-a com uma toalha alvissima, pôs em cima fructa, pão, queijo, vinho, chegou-a para aopé da velha, tirou-lhe o novello da mão, e arredou a dobadoira. A velha comeu alguns bagos de um cacho doirado que a neta lhe escolheu e pôs nas mãos, bebeu um trago de vinho, e ficou callada e quieta, mas ja sem a mesma expressão de felicidade e contentamento socegado que ainda agora lhe luzia no rosto.
As animadas feições de Joanninha reflectiam sympathicamente a mesma alteração.
Joanninha não era bella, talvez nem galante siquer no sentido popular e expressivo que a palavra tem em portuguez, mas era o typo da gentileza, o ideal da spiritualidade. N'aquelle rosto, n'aquelle corpo de dezeseis annos, havia por dom natural e por uma admiravel symetria de proporções toda a elegancia nobre, todo o desimbaraço modesto, toda a flexibilidade graciosa que a arte, o uso e a conversação da côrte e da mais escolhida companhia vêem a dar a algumas raras e privilegiadas creaturas no mundo.
Mas n'esta foi a natureza que fez tudo, ou quasi tudo, e a educação nada ou quasi nada.
Poucas mulheres são muito mais baixas, e ella parecia alta: tam delicada, tam elancée era a fórma airosa de seu corpo.
E não era o garbo teso e aprumado da perpendicular miss ingleza que parece fundida de uma so peça; não, mas flexivel e ondulante como a hástea joven da árvore que é direita mas dobradiça, forte da vida de toda a seiva com que nasceu, e tenra que a estalla qualquer vento forte.
Era branca, mas não d'esse branco importuno das loiras, nem do branco terso, duro, marmoreo das ruivas -- sim d'aquella modesta alvura da cera que se illumina de um pallido reflexo de rosa de Bengalla.
E d'outras rosas, d'estas rosas-rosas que denunciam toda a franqueza de um sangue que passa livre pelo coração e corre á sua vontade por artérias em que os nervos não dominam, d'essas não as havia n'aquelle rosto: rosto sereno como é sereno o mar em dia de calma, porque dorme o vento... Alli dormiam as paixões.
Que se levante a mais ligeira brisa, basta o seu macio bafejo para increspar a superficie espelhada do mar.
Sussurre o mais ingenuo e suave movimento d'alma no primeiro acordar das paixões, e verão como se sobresaltam os musculos agora tam quietos d'aquella face tranquilla.
O nariz ligeiramente aquilino: a bôcca pequena e delgada não cortejava nem desdenhava o surriso, mas a sua expressão natural e habitual era uma gravidade singela que não tinha a menor aspereza nem doutorice.
Ha umas certas boquinhas gravesinhas e espremidinhas pela doutorice que são a mais abhorrecidinha coisa e a mais pequinha que Deus permitte fazer ás suas creaturas femeas.
Em perfeita harmonia de côr, de fórma e de tom com a fina gentileza d'estas feições, os cabellos de um castanho tam escuro que tocava em preto, cahiam de um lado e outro da face, em tres longos, deseguaes e mal inrolados canudos, cuja ondada spiral se ia relaxando e diminuindo para a extremidade, até lhe tocarem no collo quasi lisos.
Em stylo de arte -- no stylo da primeira e da mais bella das bellas artes, a toilete -- este é um defeito; bem sei.
Que votos, que novenas se não fazem a San'Barometro nas vésperas de um baile para lhe pedir uma atmosphera sêcca e benigna que deixe conservar, até á quarta contradança ao menos, a preciosa obra de carrapito e ferro quente, de macassar e mandolina que tanto trabalho e tanto tempo, tantos sustos e cuidados custou!
Bem sei pois que é defeito, é, será... mas que adoravel defeito! Que deliciosas imagens que excita de abandôno -- passe o gallicismo -- de confiança, de absoluta e generosa renúncia a todo o caprixo, de perfeita e completa abdicação de toda a vontade propria!
Em geral, as mulheres parecem ter no cabello a mesma fé que tinha Sansão: o que n'elle se ia em lh'os cortando, cuidam ellas que se lhes vai em lh'os desannellando? Talvez; e eu não estou longe de o crer: canudo inflexivel, mulher inflexivel.
Os peralvilhos negam a existencia do tal canudo in rerum natura, dizem que é como a ave phenix que nasceu de nossos avós não saberem grego. Eu não digo tal, porque tenho visto descuidar-se a natureza em pasmosas monstruosidades.
Emfim suspendâmos, sem o terminar, o exame d'esta profunda e interessante questão. Fica addiada para um capitulo ad hoc, e voltemos á minha Joanninha.
Cahiam d'um lado e de outro da sua face gentil aquelles graciosos anneis; e o resto do cabello, que era muito, ia intrançar-se, e inrolar-se com singela elegancia abaixo da coroa de uma cabeça pequena, estreita e do mais perfeito modêlo.
As sobrancelhas, quasi pretas tambem, desenhavam-se n'uma curva de extrema pureza; a as pestanas longas e assedadas faziam sombra na alvura da face.
Os olhos porêm -- singular capricho da naturesa, que no meio de toda esta harmonia quiz lançar uma nota de admiravel discordancia! Como poderoso e ousado maestro que, no meio das pbrases mais classicas e deduzidas da sua composição, atira derepente com um som agudo e stridulo que ninguem espera e que parece lançar a anarchia no meio do rythmo musical... os dillettantes arripiam-se, os professores benzem-se; mas aquelles cujos ouvidos lhes levam ao coração a musica, e não á cabeça, esses estremecem de admiração e enthusiasmo... Os olhos de Joanninha eram verdes... não d'aquelle verde descorado e traidor da raça felina, não d'aquelle verde mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não; eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate.
São os mais raros e os mais fascinantes olhos que ha.
Eu, que professo a religião dos olhos pretos, que n'ella nasci e n'ella espero morrer... que alguma rara vez que me deixei inclinar para a heretica pravidade do ôlho azul, soffri o que é muito bem feito que soffra todo o renegado... eu firme e inabalavel, hoje mais que nunca, nos meus principios, sinceramente persuadido que fóra d'elles não ha salvação, eu confesso todavia que uma vez, uma unica vez que vi dos taes olhos verdes, fiquei halucinado, senti abalar-se pelos fundamentos o meu catholicismo, fugi escandalizado de mim mesmo, e fui retemperar a minha fé vacillante na contemplação das eternas verdades, que so e unicamente se incontram aonde está toda a fé e toda a crença... n'uns olhos sincera e lealmente pretos.
Joanninha porêm tinha os olhos verdes; e o effeito d'esta rara feição n'aquella physionomia á primeira vista tam discordante -- era em verdade pasmosa. Primeiro fascinava, halucinava, depois fazia uma sensação inexplicavel e indecisa que doía e dava prazer ao mesmo tempo: porfim pouco o pouco, estabelecia-se a corrente magnetica tam poderosa, tam carregada, tam incapaz de solução-de-continuidade, que toda a lembrança de outra coisa desapparecia, e toda a intelligencia e toda a vontade eram absorvidas.
Resta so accrescentar -- e fica o retrato completo, um simples vestido azul escuro, cinto e avental preto, e uns sapatinhos com as fitas traçadas em cothurno. O pé breve e estreito; o que se adivinhava da perna admiravel.
Tal era a ideal e espiritualissima figura que em pé, incostada á banca onde acabava de comer a boa da velha, contemplava, n'aquelle rosto macerado e apagado, a indicivel expressão de tristeza que elle pouco a pouco ía tomando e que toda se reflectia, como disse, no semblante da contempladora.
A velha suspirou profundamente, e fazendo como um esfôrço para se distrahir de pensamentos que a affligiam, buscou incertamente com as mãos o novêllo da sua meada:
-- 'O meu novêllo, filha: não posso estar sem fazer nada, faz-me mal.'
-- 'Conversemos, avó.'
-- 'Pois conversemos; mas dá-me o meu novêllo. Não sei o que é, mas quando não trabalho eu, trabalha não sei o que em mim que me cansa ainda mais. Bem dizem que a ociosidade é o peior lavor.'
Joanninha deu-lhe o novêllo e pôs-lhe a dobadoira a geito.
A velha sentiu o que quer que fosse na mão, levou-a á bôcca e pareceu beija-la, depois disse:
-- 'Bem vi, Joanninha!'
-- 'O quê, minha avó? que viu?'
-- 'Vi, filha, vi.., sem ser com os olhos que Deus me cerrou para sempre -- louvado seja Elle por tudo! -- vi, sentindo, ésta lagryma tua que me cahiu na mão, e que ja ca está no peito por que a bebi, Joanna. Oh filha, ja! é muito cedo para começar, deixa isso para mim que estou costumada: mas tu, tu com deseseis annos e nenhum desgôsto!'
-- 'Nenhum, avó! E estamos sosinhas nós duas n'este mundo, minha avó n'esse estado, eu n'esta edade, e...'
-- 'E Deus no ceu para tomar conta em nós... Mas que é? olha, Joanna: eu sinto passos na estrada vê o que é.'
-- 'Não vejo ninguem.'
-- 'Mas oiço eu... Espera... é Fr. Diniz; conheço-lhe os passos.'
Mal a velha acabava de pronunciar este nome, surdiu, de traz de umas oliveiras que ficam na volta da estrada, da banda de Santarem, a figura sêcca, alta e um tanto curvada de um religioso franciscano que abordoado em seu pau tosco, arrastando as suas sandalias amarellas e tremendo-lhe na cabeça o seu chapeo alvadio, vinha em direcção para ellas.
Era Fr. Diniz comeffeito, o austero guardião de San'Francisco de
Santarem.
CAPITULO XIII
Dos frades em geral. -- O frade moralmente considerado, socialmente e artisticamente. -- Próva-se que é muito mais poetico o frade do que o barão. -- Outra vez D. Quixote e Sancho-Pansa. -- Do que seja o barão, sua classificação e descripção linneana. -- Historia do castello do Chucherumello. -- Erro palmar de Eugenio Sue: mostra-se que os jesuitas não são a cholera-morbus, e que é preciso refazer o 'Judeu errante' -- De como o frade não intendeu o nosso seculo nem o nosso seculo ao frade. -- De como o barão ficou em logar do frade, e do muito que n'isso perdémos. -- Unica voz que se ouve no actual deserto da sociedade: os barões a gritar contos de reis. -- Como se contam e como se pagam os taes contos. -- Predilecção artistica do A. pelo frade: confessa-se e explica-se ésta predilecção.
Frades... frades... Eu não gósto de frades. Como nós os vimos ainda os d'este seculo, como nós os intendêmos hoje, não gósto d'elles, não os quero para nada, moral e socialmente fallando.
No ponto de vista artistico porêm o frade faz muita falta.
Nas cidades, aquellas figuras graves e sérias com os seus habitos tallares, quasi todos picturescos e alguns elegantes, atravessando as multidões de macacos e bonecas de casaquinha esguia e chapelinho de alcatruz que distinguem a peralvilha raça europea -- cortavam a monotonia do ridiculo e davam physionomia á população.
Nos campos o effeito era ainda muito maior: elles characterizavam a payzagem, poetisavam a situação mais prosaica de monte ou de valle; e tam necessarias tam obrigadas figuras eram em muitos d'esses quadros, que sem ellas o painel não é ja o mesmo.
Alêm d'isso o convento no povoado e o mosteiro no êrmo animavam, amenizavam, davam alma e grandeza a tudo: elles protegiam as árvores, sanctificavam as fontes, enchiam a terra de poesia e de solemnidade.
O que não sabem nem podem fazer os agiotas barões que os substituiram.
É muito mais poetico o frade que o barão.
O frade era, até certo ponto, o Dom Quixote da sociedade velha.
O barão é, em quasi todos os pontos, o Sancho-Pansa da sociedade nova.
Menos na graça...
Porque o barão é o mais desgracioso e estupido animal da creação.
Sem exceptuar a familia asinina que se illustra com individualidades tam distinctas como o Ruço do nosso amigo Sancho, o asno da Poncella de Orleans e outros.
O barão (onagros-baronius de Linn., l'ânne-baron de Buf.) é uma variedade monstruosa ingendrada na burra de Balaham, pela parte essencialmente judaica e usuraria de sua natureza, em coito damnado com o urso Martinho do Jardim das Plantas , pela parte franchinotica e sordidamente revolucionaria de seu character.
O barão é pois usurariamente revolucionario, e revolucionariamente usurario.
Por isso é zebrado de riscas monarchico-democraticas por todo o pêllo.
Este é o barão verdadeiro e puro-sangue: o que não tem estes characteres é especie differente, de que aqui se não tracta.
Ora, sem sahir dos barões e tornando aos frades, eu digo: que nem elles comprehenderam o nosso seculo nem nós os comprehendémos a elles..
Por isso brigámos muito tempo, a final vencêmos nós, e mandámos os barões a expulsá-los da terra. No que fizemos uma sandice como nunca se fez outra. O barão mordeu no frade, devorou-o... e escouceou-nos a nós depois.
Com que havemos nós agora de matar o barão?
Porque este mundo e a sua historia é a historia do 'castello do Chucherumello'. Aqui está o cão que mordeu no gato, que matou o rato, que roeu a corda etc. etc.: vai sempre assim seguindo.
Mas o frade não nos comprehendeu a nós, por isso morreu, e nós não comprehendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de morrer.
São a molestia d'este seculo; são elles, não os jesuitas, a cholera-morbus da sociedade actual, os barões. O nosso amigo Eugenio Sue errou de meio a meio no 'Judeu errante' que precisa refeito.
Ora o frade foi quem errou primeiro em nos não comprehender, a nós, ao nosso seculo, ás nossas inspirações e aspirações: com o que falsificou a sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade, uma coisa infallivel e sem remedio. Assustou-se com a liberdade que era sua amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro modo lhe não servia nem o servia.
Nós tambem errámos em não intender o desculpavel êrro do frade, em lhe não dar outra direcção social; e evitar assim os barões, que é muito mais damninho bicho e mais roedor.
Porque, desinganem-se, o mundo sempre assim foi e hade ser. Por mais bellas theorias que se façam, por mais perfeitas constituições com que se comece, o status in statu forma-se logo: ou com frades ou com barões ou com pedreiros livres se vai pouco a pouco organizando uma influencia distincta, quando não contraria, ás influencias manifestas e apparentes do grande corpo social. Esta é a opposição natural do Progresso, o qual tem a sua opposição como todas as coisas sublunares e superlunares; ésta corrige saudavelmente, ás vezes, e modera sua velocidade, outras, a impece com demazia e abuso: mas emfim é uma necessidade.
Ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a opposição dos frades que a dos barões. O caso estava em a saber conter e approveitar.
O Progresso e a liberdade perdeu, não ganhou.
Quando me lembra tudo isto, quando vejo os conventos em ruinas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos frades -- não dos frades que foram, mas dos frades que podiam ser.
E sei que me não inganam poesias; que eu reajo fortemente com uma logica inflexivel contra as illusões poeticas em se tractando de coisas graves.
E sei que me não namóro de paradoxos, nem sou d'estes espiritos de contradicção desinquieta que suspiram sempre pelo que foi, e nunca estão contentes com o que é.
Não, senhor: o frade, que é patriota e liberal na Irlanda, na Polonia, no Brazil, podia e devia sê-lo entre nós; e nós ficavamos muito melhor do que estamos com meia duzia de clerigos de requiem para nos dizer missa; e com duas grozas de barões, não para a tal opposição salutar, mas para exercer toda a influencia moral e intellectual da sociedade -- porque não ha de outra ca.
E se não digam-me: onde estão as universidades, e o que faz essa que ha senão dar o seu grausito de bacharel em leis e em medicina? O que escreve ella, o que discute, que príncipios tem, que doutrinas professa, quem sabe ou ouve d'ella senão algum echo timido e acanhado do que n'outra parte se faz ou diz?
Onde estão as academias?
Que palavra poderosa retine nos pulpitos?
Onde está a fôrça da tribuna?
Que poeta canta tam alto que o oiçam as pedras brutas e os robres duros d'esta selva materialista a que os utilitarios nos reduziram?
Se exceptuarmos o debil clamor da imprensa liberal ja meio-esganada da policia, não se ouve no vasto silencio d'este ermo senão a voz dos barões gritando contos de réis.
Dez contos de réis por um eleitor!
Mais duzentos contos pelo tabaco!
Três mil contos para a conversão de um amphigouri!
Cinco mil contos para as estradas dos areonautas!
Seis mil contos para isto, dez mil contos para aquillo!
Não tardam o contar por centenas de milhares.
Contar a elles não lhes custa nada.
A quem custa é a quem paga para todos esses balões de papel -- a terra e a indústria...
Este capítulo deve ser considerado como introducção ao capítulo seguinte, em que entra em scena Fr. Diniz, o guardião do San' Francisco de Santarem.
Ja me disseram que eu tinha o genio frade, que não podia fazer conto, drama, romance sem lhe metter o meu fradinho.
O 'Camões' tem um frade, Frei José Indio;
A 'Dona Branca' tres, Frei Soeiro, Frei Lopo e San'-Frei Gil -- faz quatro;
A 'Adozinda' tem um ermitão, especie de frade -- cinco;
'Gil-Vicente' tem outro -- isto é, verdadeiramente não tem senão meio frade, que é André de Rezende, demais a mais, pessoa muda -- cinco e meio;
O 'Alfageme' tres quartos do frade, Froilão-Dias, chibato da ordem de
Malta -- seis frades e um quarto;
Em 'Frei Luiz de Sousa' tudo são frades: vale bem n'esta computação, os seus tres, quatro, meia duzia de frades -- são já dôze e quarto:
Alguns, não eu, querem metter n'esta conta o 'Arco-de-Sanct'Anna', em que ha bem dous frades e um leigo:
E aqui tenho eu ás costas nada menos de quinze frades e quarto.
Com este Frei Diniz é um convento inteiro.
Pois, senhores, não sei que lhes faça: a culpa não é minha. Desde mil cento e tantos que começou Portugal, até mil oitocentos trinta e tantos que uns dizem que elle se restaurou, outros que o levou a breca, não sei que se passasse ou podesse passar n'esta terra coisa alguma pública ou particular, em que frade não entrasse.
Para evitar isto não ha senão usar da receita que vem formulada no capitulo V d'esta obra.
Faça-o quem gostar; eu não, que não quero nem sei.
CAPITULO XIV
Emendado emfim de suas distracções e divagações, prosegue o A. direitamente com a historia promettida. -- De como Fr. Diniz deu a manga a beijar á avó e á neta, e do mais que entre elles se passou. -- Ralha o frade com a velha, e começa a descobrir-se onde a historia vai ter.
Este capitulo não tem divagações, nem reflexões, nem considerações de nenhuma especie, vai direito e sem se distrahir, pela sua historia adeante.
Fr. Diniz chegava aopé das duas mulheres e disse:
-- 'Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo!'
Joanna adeantou-se alguns passos a beijar-lhe a manga. Elle accrescentou:
-- 'A benção de Deus te cubra, filha, e a de nosso padre San'Francisco!'
-- 'Benedicite, padre guardião:' disse a velha inclinando-se meia levantada da cadeira.
-- 'Em nome do Senhor! amen'. -- respondeu o frade aproximando-se, e chegando o braço a alcance de lh'o ella beijar:
-- 'Ora aqui estou, minha irman; que me quer? E como vai isto por cá?
Vamo-nos confortando, tendo paciencia, e soffrendo com os olhos no
Senhor?'
-- 'Ja os não tenho senão para elle, padre.'
-- 'Ah, ah! irman Francisca, sempre esse pensamento, sempre essa queixa!
Tenho-a reprehendido tanta vez e não se emenda.'
-- 'Eu não me queixei, meu padre. Deus sabe que me não queixo... ao menos por mim.'
-- 'Pois por quem?'
-- 'Oh padre!'
-- 'Irman Francisca, tenho medo de a intender. Eu não conheço as affeições da carne nem lido com os fracos pensamentos do mundo. Sou frade, minha irman, sou um que ja não é do número dos vivos, que vestiu ésta mortalha para não ser d'elles, que a vestiu n'um tempo em que a mofa e o desprêzo são o unico patrimonio do frade, em que o escarneo, a derisão, o insulto -- o peior e o mais cruel de todos os martyrios -- são a nossa unica esperança. Eu quiz ser frade, fiz-me frade, sabendo e vendo tudo isto, fiz-me frade no meio de tudo isto, já velho e experimentado no mundo, farto de o conhecer, e certo do que me espera -- a mim e á profissão que abraçei. Que quer de um homem que assim se resolveu a cortar por quanto prende a humanidade a ésta miseravel vida da terra, para não viver senão das esperanças da outra? Eu vesti este hábito para isso. O seu, irman, o seu para que o vestiu? É um divertimento, é um capricho, é uma comedia com Deus? Rasgue-o depressa, vista-se das galas do mundo, não apperte com a paciencia divina, trajando por fóra o sacco da penitencia e trazendo o coração pordentro desappertado de todo o cilicio e mortificação.'
A velha com as mãos postas, a face alevantada e os apagados olhos para o ceo, offerecia a Deus todo o amargor d'aquella austeridade que não cuidava merecer nem lhe parecia intender. Joanninha, que insensivelmente se fôra approximando da avó, e a tinha como amparada portraz com um de seus braços, firmava a outra mão nas costas da cadeira e cravava fita no frade a vista penetrante e cheia de luz. A expressão do seu rosto era indefinivel: irisava-lh'o, distincta mas promiscuamente, um mixto inextricavel de enthusiasmo e desanimação, de fé e de incredulidade, de sympathia e de aversão.
Disseras que n'aquelles olhos verdes e n'aquelle rosto mal córado estava o typo e o symbolo das vascillações do seculo.
-- 'Padre!' tornou a velha com sincera humildade na voz e no gesto: -- 'se o mereci, castigae-me. Deus, que me vê e me ouve, bem sabe que o digo em toda a verdade do meu coração, e hade perdoar-me porque eu sou fraca e mulher.'
-- 'Pois aos fracos não é que Elle disse: Toma a tua cruz e segue-me.
Quem a obrigou a fazer os votos que fez?'
-- 'É verdade, padre, é verdade: bem sei o que prometti, que me votei a Deus d'alma e corpo, que me não pertenço, que nem das minhas affeições posso dispor, mas...'
-- 'Mas o quê? Irman Francisca, a Deus não se ingana. Os seus votos não foram feitos n'um mosteiro, nem proferidos n'um altar no meio das solemnidades da egreja. Mas ja lh'o tenho ditto, no fôro da consciencia, na presença de Deus, ligam-n'a tanto ou mais do que se o fossem. Abjure-os se quizer; nenhuma lei, nenhuma fôrça humana a constrange. Diga-m'o por uma vez, desingane-me, e eu não torno aqui.'
-- 'Oh, por compaixão, padre! pelas chagas de Christo! Mas uma pergunta so, uma so, e eu prometto não pensar, não fallar mais em... Onde está elle?'
-- 'Joanna, retire-se.'
Joanninha appertou a avó com ambos os braços; e sem dizer uma palavra, sem fazer um so gesto, lentamente e silenciosamente se retirou para dentro de casa.
-- 'E ésta, padre?' disse a velha sem esperar a resposta á primeira pergunta que com tanta ancia fizera -- 'e ésta, tambem d'ella me heide separar, tambem heide renunciar a ella?'
-- 'Esta é uma innocente, e emquanto o for'...
-- 'Em quanto o for! A minha Joanna é um anjo.'
-- 'Blasphemia, blasphemia! E o Senhor a não castigue por ella. Joanna é boa e temente a Deus: esperemos que Elle a conserve da sua mão. O outro...'
-- 'Que é feito d'elle padre? Oh! diga-m'o, e eu prometto...'
-- 'Não prometta senão o que póde cumprir. Seu neto está com esses desgraçados que vieram das ilhas, é dos que desimbarcaram no Porto...'
-- 'Oh filho da minha alma! que não tórno a abraçar-te...'
-- 'Não decerto; vencedores ou vencidos, toda a communhão, toda a possibilidade de união acabou entre nós e estes homens. Nós temos obrigação de os destruir, elles o seu unico desejo é exterminar-nos.'
-- 'Meu Deus meu Deus! pois a isto somos chegados! Pois ja não ha misericordia no ceo nem na terra!'
-- 'A misericordia de Deus cansou-se; a da terra não sei onde está nem onde esteve nunca. Os fracos dão sacrilegamente esse nome á sua relaxação.'
-- 'Pois é relaxação desejar a paz, querer a união, supplicar a indulgencia? Não nos manda Deus perdoar as nossas dividas, amar os nossos inimigos?'
-- 'Os nossos sim, os d'Elle não.'
-- 'Tende compaixão de mim, Senhor!'
-- 'Se as suas afflicções são as da carne e do sangue, se são pensamentos da terra como desgraçadamente vejo que são, mulher fraca e de pouco ânimo, console-se, que para mim é claro e seguro que estes homens hãode vencer.'
-- 'Quaes homens?'
-- 'Esses inimigos do altar e da verdade, esses homens desvairados pelas speciosas doutrinas do seculo. Esperam muito, promettem muito, estão em todo o vigor das suas illusões. E nós, nós carregâmos com o desingano de muitos seculos, com os peccados de trinta gerações que passaram, e com a inaudita corrupção da presente... nós havemos de succumbir. Os templos hãode ser destruidos, os seus ministros proscriptos, o nome de Deus blasphemado á vontade n'esta terra malditta.'
-- 'Pois tam perdidos, tam abandonados da mão de Deus são elles todos... todos?'
-- 'Todos. E que cuida, irman? que são melhores os nossos, esses que se dizem nossos? que ha mais fé na sua crença, mais verdade em sua religião? Oh sancto Deus!'
-- 'Faz-me tremer, padre!'
-- 'E para tremer é. A impiedade e a cubiça entraram em todos os corações. Duvidar é o unico princípio, inriquecer o unico objecto de toda essa gente. Liberaes e realistas, nenhum tem fé: os liberaes ainda teem esperança; não lhe hade durar muito. Deixem-n'os vencer e verão.'
-- 'E hãode vencer elles?'
-- 'Decerto.'
-- 'Ninguem mais diz isso.'
-- 'Digo-o eu.'
-- 'Tantos mil soldados que o govêrno tem por si!'
-- 'E tantos milhões de peccados contra. Não póde ser, não póde ser: a misericordia divina está exhausta, e o dia desejado dos impios vem a chegar. A sua missão é facil e prompta; não sabem, não podem senão destruir. Edificar não é para elles, não teem com quê, não creem em nada. O symbolo christão não é so uma verdade religiosa é um princípio eterno e universal. Fe, esperança e charidade. Sem crer, sem esperar...'
-- 'E sem amar!'
-- 'Mulher, mulher! o amor é a última virtude...'
-- 'Mas por ella, por ella se chega ás outras.'
-- 'Não, mulher fraca, não. E de uma vez para sempre, irman Francisca, desinganemo'-nos. Entre mim, entre o Deus que eu sirvo, não ha transacção com os seus inimigos. Indulgencia n'esse ponto não sei o que é. Vejo a sorte que me espera n'este mundo, e não tremo deante d'ella. Quem teme, siga outro caminho; eu nunca.'
-- 'Padre eu não temo nem receio por mim. Sou fraca e mulher, e em toda a tribulação e desgraça heide glorificar o meu Deus e dar testimunho da minha fé. Mas... mas o meu neto é o meu sangue, a minha vida, é o filho querido da minha unica e tam amada filha, elle não conheceu outra mãe senão a mim, quero-lhe por elle e por ella. Abandoná-lo não posso, tirar d'elle o pensamento não sei. A vontade de Deus...'
-- 'A vontade de Deus é que o justo se aparte do impio, é que os cordeiros da benção vão para um lado, e os cabritos da maldicção para outro. Esse rapaz... oh! minha irman, eu não sou de pedra, não, não sou, e tambem o coração se me parte de o dizer... mas esse rapaz é malditto, e entre nós e elle está o abysmo todo do inferno.'
-- 'Misericordia, meu Deus!'
Pallido, infiado, mais descorado e mais amarello do que era sempre aquelle rosto, Fr. Diniz pronunciou, tremendo mas com fôrça, as suas últimas e terriveis palavras. Os olhos, habitualmente sumidos e cavos, recuaram-lhe ainda mais para dentro das orbitas descarnadas; o bordão tremia-lhe na esquerda; e a direita suspensa no ar parecia intimar ao culpado a terrivel imprecação que lhe sahia dos labios.
-- 'Malditto! malditto sejas tu!' proseguiu o frade, 'filho ingrato, coração derrancado e perverso!'
-- 'Meu Deus, não o escuteis!' bradou a velha cahindo de joelhos no chão e prostrando-se na terra dura 'Meu Deus, não confirmeis aquellas palavras tremendas. Não o ouçais, Senhor, e valha o sangue precioso de vosso filho, as dores bemdittas de sua mãe, oh meu Deus! para arredar da cabeça do meu pobre filho as crueis palavras d'este homem sem piedade, sem amor!..'
A velha queria dizer mais; as angústias que se tinham estado juntando n'aquella alma, que porfim não podia mais e transbordava, queriam sahir todas, queriam derramar-se alli em lagrymas e soluços na presença do seu Deus que ella via sempre no throno das misericordias, que não podia acabar comsigo que o visse o inflexivel, o terrivel Deus das vinganças que lhe annunciava o frade. Mas a carne não pôde com o espirito, as fôrças do corpo cederam: tomou-a um mortal deliquio, immudeceu, e... suspendeu-se-lhe a vida.
Fr. Diniz contemplou-a alguns momentos n'esse estado e pareceu commover-se; mas aquelles nervos eram fios de ferro temperado que não vibravam a nenhuma suave percussão: deu dous passos para a porta da casa, bateu com o bordão e disse com voz firme e segura:
-- 'Joanna, acuda a sua avó que não está boa.'
D'ahi tomou por onde viera, e, sem voltar uma vez a cabeça, caminhou ápressado; breve se escondeu para lá das oliveiras da estrada.
CAPITULO XV
Retratto de um frade franciscano que não foi para o depósito da Terra-sancta, nem consta que esteja na Academia das Bellas-artes. -- Ve-se que a logica de Fr. Diniz se não parecia nada com a de Condillac. -- Suas opiniões sôbre o liberalismo e os liberaes. -- Que o podêr vem de Deus, mas como e paraquê. -- Que os liberaes não intendem o que é liberdade e egualdade; e o para que eram os frades, se fossem. -- Próva-se, pelo texto, que o homem não vive so de pão, e pergunta-se o de que vivia então Fr. Diniz.
Quem era Frei Diniz?
Disse-o elle: -- um homem que se fizera frade, ja velho e cançado do mundo, que vestíra o hábito n'um tempo em que a mofa, o escarneo e o desprêzo seguiam aquella profissão; que o sabía, que o conhecia e que por isso mesmo o affrontára.
D'estes raros e fortes characteres apparecem sempre na agonia das grandes instituições para que nenhuma pereça sem protesto, paraque de nenhum pensamento duravel e consagrado pelo tempo se possa dizer que lhe faltou quem o honrasse na hora derradeira por uma devoção nobre, gloriosa e digna do alto espirito do homem: -- que o homem é uma grande e sublime creatura por mais que digam philosophos.
Tal era Fr. Diniz, homem de principios austeros, de crenças rigidas, e de uma logica inflexivel e teimosa: logica porêm que regeitava toda a anályse, e que forte nas grandes verdades intellectuaes e moraes em que fixára o seu espirito, descia d'ellas com o tremendo pêso de uma synthese asperrima e oppressora que esmagava todo o argumento, destruía todo o raciocinio que se lhe punha de deante.
Condillac chamou á synthese methodo de trevas: Fr. Diniz ria-se de Condillac... e eu parece-me que tenho vontade de fazer o mesmo.
O despotismo, detestava-o como nenhum liberal é capaz de o abhorrecer; mas as theorias philosophicas dos liberaes, escarnecia-as como absurdas, regeitava-as como perversoras de toda a idea san, de todo o sentimento justo, de toda a bondade praticavel. Para o homem em qualquer estado, para a sociedade em qualquer fórma não havia mais leis que as do decalogo, nem se precisavam mais constituições que o Evangelho: dizia elle. Reforçá-las é superfluo, melhorá-las impossivel, desviar d'ellas monstruoso. Desde o mais alto da perfeição evangelica, que é o estado monastico, ha regras para todos alli; e não falta senão observá-las.
Não sei se ésta doutrina não tem o quer que seja de um certo sabor independente e livre, se não cheira o seu tanto á confiança heretica dos reformistas evangelicos. O que sei é que Fr. Diniz a professava de boafé, que era catholico sincero, e frade no coração.
Segundo os seus principios, podêr de homem sôbre homem, era usurpação sempre e de qualquer modo que fosse constituido. Todo o podêr estava em Deus -- que o delegava ao pae sôbre o filho, d'ahi ao chefe da familia sôbre a familia, d'ahi a um d'esses sôbre todo o Estado; mas para o reger segundo o Evangelho e em toda a austeridade republicana dos primitivos principios christãos.
Assim fôra ungido Saul, e n'elle todos os reis da terra -- sem o quê, não eram reis.
Tudo o mais, anarchia, usurpação, tyrannia, peccado -- absurdo insustentavel e impossivel.
E sôbre isto tambem não disputava, que não concebia como: era dogma.
Nas applicações sim questionava, ou antes, arguía, com sua logica de ferro. As antigas leis, os antigos usos, os antigos homens, não os poupava mais do que aos novos. A tyrannia dos reis, a cubiça e a suberba dos grandes, a corrupção e a ignorancia dos sacerdotes, nunca houve tribuno popular que as açoitasse mais sem dó nem caridade.
O princípio porêm da monarchia antiga, defendia-o, ja se ve, por verdadeiro, embora fossem mentirosos e hypocritas os que o invocavam.
Quanto ás doutrinas constitucionaes, não as intendia, e protestava que os seus mais zelosos apostolos as não intendiam tam pouco: não tinham senso-commum, eram abstracções d'eschola.
Agora, do frade é que me eu queria rir... mas não sei como.
O chamado liberalismo, esse intendia elle. 'Reduz-se' dizia 'a duas cousas, duvidar e destruir por principio, adquirir e inriquecer por fim: é uma seita toda material em que a carne domina e o espirito serve; tem muita fôrça para o mal; bem verdadeiro, real e perduravel, não o póde fazer. Curar com uma revolução liberal um paiz estragado, como são todos os da Europa, é sangrar um tysico: a falta de sangue diminue as ancias do pulmão por algum tempo, mas as fôrças vão-se, e a morte é mais certa.'
Dos grandes e eternos principios da Egualdade e da Liberdade dizia: 'Em elles os practicando devéras, os liberaes, faço-me eu liberal tambem. Mas não ha perigo: se os não intendem! Para intender a liberdade é preciso crer em Deus, para acreditar na egualdade é preciso ter o Evangelho no coração.'
As instituições monasticas eram, no seu intender e no seu systema, condicção essencial de existencia para a sociedade civil -- para uma sociedade normal. Não paliava os abusos dos conventos, não cubria os defeitos dos monges, accusava mais severamente que ninguem a sua relaxação; mas sustentava que, removido aquelle typo da perfeição evangelica, toda a vida christan ficava sem norma, toda a harmonia se destruía, e a sociedade ia, mais depressa e mais sem remedio, precipitar-se no golpham do materialismo estupido e brutal em que todos os vinculos sociaes apodreciam e cahiam, e em que mais e mais se isolava e estreitava o individualismo egoista -- última phase da civilização exaggerada que vai tocar no outro extrêmo da vida selvagem.
Taes eram os principios d'este homem extraordinario que junctava a uma erudição immensa o profundo conhecimento dos homens e do mundo em que tinha vivido até a edade de cinquenta annos.
Como e porque deixára elle o mundo? Como e porquê, um espirito tam activo e superior se occupava apenas do obscuro incargo de guardião do seu convento -- cargo que acceitára por obediencia -- e quasi que limitava as suas relações fóra do claustro áquella casa do valle onde não havia senão aquella velha e aquella criança?
Apezar de sua rigidez ascetica, prendia esse espirito por alguma coisa a este mundo? Aquelle coração macerado do cilicio dos pensamentos austeros e terriveis do eterno futuro, consummido na abstinencia de todo o gôso, detodo o desejo no presente, teria acaso viva ainda bastante alguma fibra que vibrasse com recordações, com saudades, com remorsos do passado?
No seu convento elle não tinha senão uma cella nua com um cruxifixo por todo adôrno, um breviario por unico livro. N'aquella so familia que conversava, havia, ja o disse, a velha cega e decrepita, Joanninha com quem apenas fallava, e um ausente, um rapaz de quem ha dous annos quasi que se não sabia. Em intrigas politicas, em negocios ecclesiasticos, em coisa mais nenhuma d'este mundo não tinha parte. De que vivia pois este homem -- homem que certo não era d'aquelles que vivem so de pão?
E este era dos poucos textos latinos que elle repettia, este o thema predilecto dos raros sermões que prégava: Non in solo pane vivit homo, Nem so de pão vive o homem.
Vivia então de alguma outra coisa este homem; e a meditação e a oração não lhe bastavam, porque elle sahia do seu convento e não ia prégar nem rezar... todas as sextas feiras era certo na casa do valle á mesma hora, do mesmo modo...
Alli estava pois alguma parto da vida do frade que de todo se não desprendêra da terra, e que, por mais que elle diga, lhe faltava castrar ainda por amor do ceo.
É que meio seculo de viver no mundo deixa muita raiz que não morre assim. E talvez é uma so a raiz, mas funda, e rija de fevra e de seiva, que as folhas morrem, os ramos seccam, o tronco apodrece, e ella teima a viver.
Saibamos alguma coisa d'essa vida.
CAPITULO XVI
Saibâmos da vida do frade. -- Era franciscano porquê? -- Dos antigos e dos novos martyres. -- Alguns particulares de Fr. Diniz antes e depois de ser frade. -- Emigração. -- Explicação incompleta. -- De como a velha tinha perdido a vista e Joanninha o riso. -- Sexta feira dia aziago.
Saibamos alguma coisa da vida do frade, da sua vida no seculo, porque a do claustro era nua e nulla, monotona e singela como a temos visto.
Chamava-se elle no seculo Diniz de Atahide, e seguira a carreira das armas primeiro, depois a das lettras. Com distincção, e quasi com paixão, tomára parte na campanha da Peninsula e a fizera quasi toda; mas desgostoso do serviço ou despreoccupado da glória militar, entrou na magistratura para que estava habilitado, e em 1825, do logar de corregedor do Ribatejo, em que ja fôra reconduzido, devia passar á casa do Porto.
Foi a Lisboa receber o seu despacho, beijou a mão a elrei, e d'ahi tomou um dia o caminho de Santarem, chegou áquella villa, deixou criados e cavallos na estalagem, e foi tocar á campa da portaria de San'Francisco.
Os criados esperaram em vão muitos dias: elle não voltou.
Desappareceu do mundo Diniz de Atahide, e d'alli a dous annos appareceu Fr. Diniz da Cruz, o frade mais austero e o prégador mais eloquente d'aquelle tempo. Raro prégava, e so de doutrina; mas era uma torrente de vehemencia, uma uncção, uma fôrça!..
Dos institutos monasticos, ja então bem decahidos todos de esplendor e reputação, a ordem de San'Francisco era talvez a que mais descêra no conceito público. Quanto mais austera é a regra, tanto mais se nota qualquer relaxação nos que a professam: a dos franciscanos tinha-se feito proverbial e popular. Elles eram tantos por toda a parte, e tam conversantes com todas as classes; familiarizára-se por tal modo o povo com o aspecto d'aquellas mortalhas negras -- aspecto ja não severo, e apenas deixou de o ser... ridículo -- e ellas appareciam em taes logares, a taes horas, por tal modo... que todo o respeito, toda a estima, toda a consideração se lhe perdera. Escriptores, ja os não tinham, prégadores poucos e sem reputação, era em todo o sentido a religião mais humilhada na geral decadencia das ordens.
Fr. Diniz procurou-a por isso mesmo. Queria ser frade, o frade desprezado e apupado do seculo dezenove.
Em certos animos é preciso muito mais valor e enthusiasmo para affrontar este martyrio, do que fôra nos antigos tempos para ir ao incôntro das nobres perseguições do sangue e do fogo.
Luctava-se com honra então, cahia-se com glória, vencia-se muitas vezos morrendo...
Agora é soffrer so.
O mundo applaudia aquelles grandes sacrificios, e assistia com interêsse, com admiração, com espanto áquelles combates gigantescos. E o tyranno tremia diante da sua victima... quando lhe não cahia aos pés vencido, convertido e penitente...
Hoje o povo passa e ri, os reis cuidam de outra coisa, e a mesma Egreja não sabe que tem martyres.
'Pois tem-n'os' dizia Fr. Diniz 'e precisa mais d'elles para se regenerar, do que ja precisou para fundar-se.'
Eis aqui porque Diniz d'Atahide não quiz ser bento, nem jeronymo, nem cartucho, e se foi metter frade franciscano.
De todos os seus bens, que eram consideraveis, tirou apenas a modica somma de dinheiro que era necessaria para pagar o dote e piso de sua entrada no convento. Do resto fez doação inteira a D. Francisca Joanna -- a velha hoje cega e decrepita que no princípio d'esta historia incontrámos dobando á sua porta na casa do valle.
A velha não tinha mais familia que um neto e uma neta.
A neta era Joanninha, filha unica de seu unico filho varão, e ja orphan de pae e de mãe.
O neto, orpham tambem, nascêra posthumo, e custára a vida a sua mãe, filha querida e predilecta da velha.
Antes da splendida doação de Fr. Diniz, a familia, que era de boa e honrada descendencia, podia dizer-se pobre; depois viviam remediadamente. Mas a velha não quiz nunca sahir do modesto estado em que atélli vivêra. Tinham fartura de pão, azeite e vinho de suas lavras; corria-lhe com ellas um criado velho de confiança; trajavam e tractavam-se como gente mean, mas independente.
Em tempos mais antigos e em vida dos dous filhos de D. Francisca, Fr. Diniz, então Diniz d'Atahide e corregedor da commarca, frequentára bastante aquella casa. Desde a morte do filho e do genro, que ambos pereceram desastradamente n'um dia cruzando o Tejo n'um saveiro em occasião de grande cheia, elle nunca mais lá tornára.
Até que se metteu frade, e que passaram annos e que o fizeram guardião do seu convento.
Ja a nora e a filha da velha tinham morrido tambem.
E foi notavel que na mesma hora em que Fr. Diniz professava em San'Francisco de Santarem, vestia D. Francisca aquella tunica roxa que nunca mais largou.
Mas um dia, chegou Fr. Diniz á porta da casa do valle e disse:
-- 'Deus seja n'esta casa!'
A velha estremeceu, mas tornou logo a si, fez sahir as crianças que brincavam aopé d'ella, fechou-se com o frade, e fallaram baixo um dia inteiro. Rezaram e choraram, que tudo se ouviu; mas o que disseram e conversaram nunca se soube.
O frade foi-se ao anoitecer, a velha ficou rezando e chorando, e rezou e chorou toda a noite.
Isto fôra n'uma sexta-feira; d'ahi por deante em todas as sexta-feiras de cada semana, Fr. Diniz vinha passar algumas horas com a velha.
Não era seu confessor, mas dirigia-a como se o fosse, em tudo e por tudo, menos no que respeitava a Joanninha.
Havia no frade uma affectação visivel, um systema premeditado e inalteravel de se abster completamente de tudo o que podesse intervir, por mais remotamente que fosse, com aquella interessante criança.
Joanninha não lhe tinha medo, mas o respeito que lhe elle inspirava era misturado de uma aversão instinctiva, que, por contradicção inaudita e inexplicavel, a deixava sympathizar com tudo quanto elle dizia e professava: doutrinas, opiniões, sentimentos, tudo lhe agradava no frade, menos a pessoa.
Não assim Carlos, o primo, o companheiro, o unico amigo da nossa Joanninha, o outro neto da velha por sua filha. Andava elle ja no último anno de Coimbra e ia formar-se em leis, quando Fr. Diniz da Cruz começou de novo a frequentar a casa que Diniz de Atahide tinha abandonado.
Sôbre esse a inspecção do frade era minuciosa, vigilante, inquieta. Os livros que elle lia, os amigos com quem vivia, as ideas que abraçava, as inclinações para que pendia -- de tudo se occupava Fr. Diniz, tudo lhe dava cuidado. A elle directamente pouco lhe dizia, mas com a avó tinha longas conferencias a esse respeito.
Ultimamente parecia satisfazer-se com o geito que o mancebo indicava tomar.
-- 'É temente a Deus, não tem o ânimo cubiçoso nem servil, não é hypocrita, o mania do liberalismo não o mordeu ainda... hade ser um homem de prestimo:' dizia o frade a D. Francisca com verdadeira satisfacção e interêsse.
Passára porêm de seu meio o memoraval anno de 1830, e Carlos, que se formára no princípio d'aquelle verão, tinha ficado por Coimbra e por Lisboa, e so por fins d'agosto voltára para a sua familia. E veio triste, melancholico, pensativo, inteiramente outro do que sempre fôra, porque era de genio alegre e naturalmente amigo de folgar, o mancebo.
O dia em que elle chegou era uma sexta-feira, dia de Fr. Diniz vir ao valle.
Passaram as primeiras saudações e abraços, ficaram sos os dous, e:
-- 'Não gósto de te ver:' disse o frade.
-- 'Pois quê? que tenho eu?'
-- 'Tens que vens outro do que foste, Carlos.'
-- 'Outro venho, é verdade; mas não se infadem de me ver, que o infado hade durar pouco.'
-- 'Que queres tu dizer?'
-- 'Que estou resolvido a emigrar.'
-- 'A emigrar, tu!... Porquê, paraquê? Que loucura é essa?'
-- 'Nunca estive tanto em meu juizo.'
-- 'Carlos, Carlos! nem mais uma palavra a similhante respeito. Em que más companhias andaste tu, que maus livros lêste, tu que eras um rapaz?.. Carlos, prohibo-te de pensar n'esses desvarios.'
-- 'Prohibe-me... a mim... de pensar!... Ora, senhor...'
-- 'Prohibo de pensar, sim. Le no teu Horacio se estás cançado das pandectas. Vai para a eira com o teu Virgilio... ou passeia, caça, monta a cavallo, faze o que quizeres, mas não penses. Ca estou eu para pensar por ti.'
-- 'Porquê? eu heide ser sempre criança? a minha vida hade ser ésta? Horacio! tenho bom ânimo para ler Horacio agora... e a bella occupação para um homem de vinteeum annos, scandar jambos e trocheus.'
-- 'Pois le na tua biblia, que é poesia medida n'alma e que repasce o espirito e o coração.'
-- 'Eu não quero ser frade: sabe?'
-- 'Nem te eu quero para frade.'
-- 'Graças a Deus! Cuidei que... Mas em fim no seculo em que estamos...'
-- 'O seculo em que estamos é o da presumpção e o da immoralidade: e eu quero-te livrar de uma e de outra, Carlos. Tua avó sabe as minhas tenções a teu respeito, approva-as...'
-- 'Minha avó... approva muita coisa que eu reprovo.'
-- 'Como assim, Carlos! que queres tu dizer?'
-- 'Isto mesmo, senhor; -- e que ámanhan que vou para Lisboa, imbarcar para
Inglaterra.'
-- 'Carlos!'
-- 'É uma resolução meditada e inalteravel. Não quero nada com ésta terra nem com ésta...'
-- 'Com ésta o quê, Carlos?..'
-- 'Pois quer ouvi-lo, digo-lh'o: com ésta casa.'
O frade suffocava, e balbuciou entre cholerico e aterrado:
-- 'Dir-me-has porquê?..'
-- 'Porque me abhorrece e me humilha este mando de um extranho aqui... porque sempre desconfiei, porque sei emfim...'
-- 'Sabes o quê?'
-- 'Sei, padre Fr. Diniz, mas não me pergunte o que eu sei.'
Amarello, roxo, pallido, negro, o frade tremia; sumiram-se-lhe mais os olhos e faiscavam lá de dentro como duas brazas; fez um esfôrço sôbre si mesmo para fallar, e disse com uma voz cava e cavernosa como de sepulchro:
-- 'Pois pergunto, sim; e permitta Deus!..'
-- 'Padre, não jure nem pragueje' interrompeu Carlos com firmeza e serenidade 'as suas intenções serão boas talvez... creio que são boas, filhas de um remorso salutar...'
-- 'Que dizes tu, Carlos... que disseste?.. Oh, meu Deus!'
As scenas tinham mudado: Fr. Diniz parecia o pupillo, a sua voz tinha o som da súpplica, ja não tremia de íra mas de anciedade; Carlos, pelo contrario, fallava no tom austero e grave de um homem que está forte na sua razão e que é generoso com a sua offensa. As palavras do mancebo eram agras, via-se que elle o sentia e que procurava adoçá-las na inflexão, que lhes dava.
-- 'O que eu digo, padre Fr. Diniz, o que eu sou obrigado a dizer-lhe é isto. Minha avó consentiu, por fraqueza de mulher, no que eu não posso nem devo consentir. O que ha n'ésta casa não é... não é meu; o pão que aqui se come... é comprado por um preço... Padre! ja ve que não podêmos fallar mais n'este assumpto. Eu parto ámanhan para Lisboa. -- Minha avó!' acrescentou Carlos, mudando de voz e chamando para dentro 'minha avó!'
A velha acudiu, elle disse-lhe a sua tenção, motivou-a em opiniões politicas, declamou contra D. Miguel, mostrou-se enthusiasta da causa liberal, e protestou que, n'aquelle anno, de tal modo se tinha pronunciado em Coimbra e ainda em Lisboa, que só uma prompta fuga o podia salvar...'
A velha chorou, pediu, rogou... inutilmente, em vão.
Fr. Diniz assistiu a tudo isto sem dizer palavra.
E aquella tarde voltou mais cedo para o convento.
No outro dia de manhan muito cedo, abraçado com a avó e com a priminha que se desfaziam em lagrymas, Carlos dizia o último adeus áquella querida casa, áquelle amado valle em que fôra criado... N'essa noite estava em Lisboa, d'ahi a poucos dias em Inglaterra, e d'ahi a alguns meses na ilha Terceira.
Na sexta-feira depois da partida de Carlos, Fr. Diniz veio ao valle e teve larga conferencia com a avó.
Os tres dias seguintes a velha levou fechada no seu quarto a chorar... no fim do terceiro dia estava cega.
Joanninha era uma criança a esse tempo, parecia não intender nada do que se passava. Mas quem a observasse com attenção, veria que ella dobrou de carinho e de amor para com a avó, e que se não tornou a rir para o frade...
Elle, o frade, invelheceu de dez annos n'aquelle dia. Os olhos sumidos, que era a feição dominante n'aquelle rosto ascetico, sumiram-se mais e mais; a estatura alta e erecta curvou-se-lhe; o tremor nervoso, que o tomava por accessos, tornou-se-lhe habitual; os tendões enrijaram-lhe, os musculos da cara descarnaram-se, e a pelle ja sulcada de fundos cuidados, arrugou-se e franziu-se toda em rugas cruzadas e confusas como que se lh'a torrassem n'uma grelha.
Nunca mais houve um dia de alegria no valle. A sexta-feira porêm era o dia fatal e aziago. Fr. Diniz ja não vinha senão no fim da tarde e demorava-se pouco; mas tanto bastava. Suspirava-se por aquella hora e tremia-se d'ella. As notícias que consolavam, e os terrores que matavam, o frade é que os trazia. O resto da semana levava-se a chorar e a esperar.
E assim se tinham passado dous annos até á sexta-feira em que primeiro vimos junctas á porta da casa aquellas tres criaturas; assim se passou até d'ahi a oito dias que a nossa historia volta a incontrá-los.
CAPITULO XVII
De como, chegando outra sexta-feira e estando a avó e a neta á espera do frade, este lhe appareceu, contra o seu costume, da banda de Lisboa. -- Porque razão muitas vezes a mais animada conversação é a que mais facilmente pára e quebra derepente. -- Nova demonstração de dous grandes axiomas dos nossos velhos, a saber: Que o hábito não faz o monge; e que ralhando as commadres, se descobrem as verdades. -- No ralhar da velha com o frade, levanta-se uma ponta do veo que cobre os mysterios da nossa historia.
Passaram-se aquelles oito dias no valle, não ja como se tinham passado tantas outras semanas em vagas tristezas, em desconsolação e desconfôrto, mas em positiva anciedade e aguda afflicção pela certeza que trouxera o frade de se achar Carlos no Porto fazendo parte do pequeno exército do D. Pedro.
Incertos rumores, d'aquelles que percorrem um paiz em tempos similhantes e que augmentam e exaggeram, confundem todos os successos tinham chegado até ás pacificas solidões do valle com as notícias de combates sanguinarios, de commoções violentas, de desacatos sacrilegos, de vinganças e reprezalias atrozes tomadas pelos aggressores, retribuídas pelos que se defendiam.
Chegou a sexta-feira; e as horas d'esse dia, sempre desejado e sempre temido, foram contadas minuto a minuto -- a qual mais longo, a qual mais pezado e lento de volver, quanto mais se approximava o derradeiro.
O sol declinava ja... e Fr. Diniz sem apparecer!
No seu poiso ordinario aopé da porta da casa, Joanninha com os olhos extendidos, a velha com os ouvidos álerta, devoravam o espaço na direcção de nascente, esperando a cada momento, temendo a cada instante ver apparecer o conhecido vulto, ouvir o som familiar dos passos do frade.
E tam intentas, tam absortas estavam ainda n'este cuidado, que não deram fe d'um religioso que pelo lado opposto, isto é, da banda de Lisboa, para alli se incaminhava a passos arrastados mas presurosos.
Chegou rente d'ellas sem o sentirem; e uma voz conhecida, porêm mais cava e funda do que nunca a ouviram, pronunciou a fórmula de saudação costumada:
-- 'Deus seja n'esta casa!'
-- 'Amen!' responderam ambas machinalmente, com um estremeção involuntario; e voltando derepente a cara para o lado d'onde vinha a voz.
-- 'Jesus!' disse depois a velha tornando a si, 'Padre Fr. Diniz, de d'onde vem tam tarde?'
-- 'Chego de Lisboa.'
-- 'De Lisboa? Deus lh'o pague!... Foi saber?..'
-- 'Fui, fui saber novas d'esta horrivel guerra, d'esta tremenda visitação do Senhor á condemnada terra de Portugal...'
-- 'E então, diga'...
-- 'Boas novas, boas novas trago!'
-- 'Sente-se, padre, sente-se. Joanninha, chega uma cadeira: descanse.'
-- 'Não é tempo de descansar este, mas de vigiar e de orar.'
-- 'Pois que succedeu, padre? Não me tenha n'esta horrivel suspensão.
Diga: onde está elle? Alguma desgraça grande lhe aconteceu, oh meu
Deus!..
-- 'E que me importa a mim o que aconteceu ou podia acontecer a mais um de tantos perdidos? Encherá a sua medida, irá após dos outros... caminha nas trevas com elles, e como elles, so hade parar no abysmo.'
A éstas derradeiras palavras do frade asperamente pronunciadas e em tom de indifferença e desprêzo, seguiu-se aquelle silencio comprimido, aquella pausa de toda a conversação grave e íntima em que os pensamentos são tantos que se atropellam e não acham sahida na voz.
Fr. Diniz mentia... na dureza d'aquellas expressões mentia ao seu coração -- não mentia ao seu espirito. Como o caustico se applica á epiderme para deslocar a inflammação interior, elle roçava o peito com as asperidões de sua doutrina e de seus principios rigidos para amortecer dentro a viva dor d'alma que o consummia.
O frade estava por fóra, o homem por dentro.
O observador vulgar não via senão o burel e a corda que amortalhavam e cadaver. O que attentasse bem n'aquelles olhos, o que reparasse bem nas inflexões d'aquella voz, diria: 'Frade, tu mentes; mentes sem saberes que mentes: es sincero na tua fe, na tua austeridade, na tua abnegação; mas o teu sacrificio é como o de Abraham na montanha, e Deus sabe que tu não tens fôrça para o cumprir.'
Não o percebeu assim a pobre velha aquem os rigores de Fr. Diniz faziam tremer, e que para toda a affeição, para todo o sentimento humano julgava morto o coração do cenobita.
Ella que no silencio de suas noites sempre veladas, na perpétua escuridão de seus dias sempre tristes luctava ha tanto tempo, luctava debalde para desprender das affeições do mundo, aquelle seu pobre coração que queria immollar ao Senhor, ella via com sancta inveja e admiração as sobrehumanas fôrças que imaginava no frade; e desanimada de o podêr seguir n'essas alturas da perfeição evangelica, recahia, mais desalentada e mais miseravel que nunca, em toda a sua fraqueza de mulher e de mãe.
Oh! não sabe o que é tormento, o que é inferno n'este mundo, o que não soffreu destas angústias!
Mas permitte Deus que as padeça quem não tem grandes culpas, grandes e irreparaveis erros que expiar n'este mundo?
Eu creio firmemente que não.
Cansada e exhausta ja de tam porfiada lucta, a velha perdeu de todo a razão com as derradeiras palavras do frade, e n'um paroxismo de chôro exclamou:
-- 'Diniz!.. Fr. Diniz, por aquelle pinhor sagrado que eu tenho em meu podêr, por aquella preciosa cruz sôbre a qual se derramaram as últimas lagrymas da minha desgraçada filha, Diniz!...'
-- 'Silencio!' bradou o frade, arrancando um brado de dentro do peito que fez gemer os echos todos do valle: 'Silencio, mulher! não conjure o demonio que eu trago incarcerado n'este seio, que á fôrça de penitencias mal pude domar ainda... que so a morte poderá talvez expellir. Mulher, mulher! este cadaver que ja morreu que ja apodreceu em tudo o mais, que ja o comem, sem o elle sentir, os bichos todos da destruição... este cadaver tem um unico ponto vivo no coração... e o dedo do teu egoismo ahi foi tocar, oh mulher!.. Peccado que estás sempre contra mim! Justiça eterna de Deus quando serás satisfeita?'
Rompêra na maior violencia a voz do frade, mas descahiu n'um tom baixo e medonho ao fazer ésta última imprecação mysteriosa. As derradeiras syllabas quasi que lhe morreram nos beiços convulsos, e ao balbuciá-las deixou-se cahir, exhausto e como quem mais não podia, na cadeira que Joanninha lhe chegára.
A velha aterrada e confusa tremia do que fizera, como deante do espirito immundo que seus maleficios evocaram, treme a maga assustada de seu proprio podêr.
Passaram alguns segundos que nenhumas palavras podem descrever.
O frade levantou o rosto, olhou para ella, olhou para Joanninha... e, como quem emerge, por grande esfôrço, de um pêso enorme d'aguas que o submergiam, sacudiu a cabeça, sorveu um longo trago de ar, e disse na sua voz ordinario, so mais debil:
-- 'Carlos, senhora... minha irman, Carlos está vivo; e exaqui, vinda pelo consul de França, uma carta d'elle.'
Tirou uma carta da manga e a intregou a Joanninha.
CAPITULO XVIII
Descobre-se que ha grandes e espantosos segredos entre o frade e a velha. -- Piedosa fraude de Joanninha. -- Lucta entre o hábito e o monge.
O frade intregou a carta a Joanninha, que, lançando os olhos ao sobrescripto, ficou indecisa e inquieta como quem receia e deseja e teme de saber alguma coisa. Elle com voz trémula e sobresaltada accrescentou:
-- 'Adeus, que são horas!.. Leiam, e sexta-feira que vem... me dirão...'
-- 'Poisquê' disse timidamente a velha 'não quer ouvir o que elle nos escreve?'
-- 'Sexta-feira que vem' continuou Fr. Diniz, sem ouvir ou sem attender a pergunta 'sexta-feira que vem eu tomarei conta da resposta, e lh'a farei chegar pela mesma via... So uma coisa! nem palavra a meu respeito: eu para Carlos... morri.'
-- 'Diniz!' exclamou a velha fóra de si 'Diniz!..'
O frade tornou derepente ao seu tom austero, e respondeu gravemente: 'O quê, minha irman?'
-- 'Era' disse ella timida e submissa outra vez 'era se, era que... Pois não hade ouvir ler a carta d'elle?'
Fr. Diniz não respondeu, mas ficou sentado: descahiu-lhe a cabeça sôbre o peito, e abraçando-se com o bordão, não deu mais signal de si.
A velha escutou em silencio alguns segundos, e com aquelle ouvido agudissimo -- penetrante vista dos cegos -- percebeu sem dúvida o que se passava, e com mais confôrto e serenidade na voz disse:
-- 'Abre, Joanna, lê, minha filha.'
Joanninha abriu a carta, e percorreu com avidez as poucas linhas que ella incerrava.
-- 'Não les?' acudiu a avó com impaciencia: 'Lê, lê alto, Joanna.'
-- 'É para mim so a carta' disse ella friamente.
-- 'Para ti so, como?' tornou a outra.
-- 'É para mim so ésta carta... não diz nada que...'
-- 'Não diz nada!' replicou a avó 'Pois!... Lê, lê alto; seja como for, lê, e oiçamos.'
Joanninha parecia hesitar ainda; lançou os olhos ao frade, achou-o na mesma attitude impassivel; voltou-se para a avó, viu-a anciada e anxiosa... leu.
A carta era com effeito para ella so, e carta bem singela, não continha senão as ingenuas expressões de um amor fraterno nunca esquecido, longas saudades do passado, poucas esperanças no futuro, quasi nenhumas de se tornarem a ver tam cedo. Tudo isto porém era com a prima: para a desconsolada avó, para ninguem mais... nem uma palavra.
Joanninha ia lendo, lendo... e a voz a descahir-lhe: no fim ajunctou uns abraços, umas saudosas lembranças, e não sei que phrase incompleta e mal articulada em que se pedia a bençam da avó.
A velha abanou a cabeça tristemente e disse: 'Ora pois... bemditto seja
Deus!'
Joanninha córou até o branco dos olhos... Inda bem que a não podia ver a avó! Mas viu-a Fr. Diniz, e com a mão trémula e os olhos arrazados d'agua lhe fez um mudo e expressivo signal de approvação e agradecimento. Joanninha córou outra vez, e logo se fez pallida como a morte: era a primeira vez que mentia... e Fr. Diniz, o austéro Fr. Diniz apprová-la!
O frade levantou-se, e sem dizer palavra, tomou o caminho de Santarem.
Ouvia-se ao longe o arquejar de uns soluços suffocados... Seriam d'elle?
A avó e a neta abraçaram-se e choraram.
Nenhuma d'ellas disse palavra sôbre a carta: a velha tinha percebido a piedosa fraude de Joanninha...
Oh! que existencias que eram aquellas quatro! Esse frade, essa velha e essas duas crianças! E a maior parte da gente que é gente, vive assim... E querem, querem-n'a assim mesmo, a vida, teem-lhe appêgo! Oh que enigma é o homem!
Tornou a passar outra semana, e o frade tornou a vir no praso costumado, e levou a resposta da carta -- resposta que Joanninha so escreveu e so viu -- e dirigiu-a em Lisboa pela via segura que indicára.
Soube-se que fôra intregue; mas semanas e semanas decorreram, os meses passaram de anno... e outra carta não veio.
No entretanto a guerra civil progredia; e depois de suas tremendas peripecias, o grande drama da Restauração chegava rapidamente ao fim. Eram meiados do anno de 33, a operação do Algarve succedêra milagrosamente aos constitucionaes, a esquadra de D. Miguel fôra tomada, Lisboa estava em podêr d'elles. Os tardios e inuteis esforços dos realistas para retomar a capital tinham occupado o resto do verão. Ja outubro se descoroava de seus ultimos fructos, e as folhas começavam a impallidecer e a cahir, quando uma sexta-feira, ao pôr do sol, Fr. Diniz apparecia no valle mais curvado e mais trémulo que nunca. Vinha do exército realista que então cercava Lisboa.
Joanninha não era alli, a velha estava so.
-- 'Que nos traz, padre?' clamou ella mal que o sentiu: 'Soube d'elle?
Tem escapado a éstas desgraças, a esses combates mortaes?'
-- 'Não sei nada, minha irman: ha tres dias que de Lisboa se não póde obter a menor informação. As linhas estão fechadas e guarnecidas como nunca: tudo indíca havermos de ter cedo algum combate decisivo.'
-- 'Deus seja com!..'
-- 'Com quem, minha irman?'
-- 'Com quem tiver justiça.'
-- 'Nenhum a tem. De um lado e de outro está a ambição e a cubiça, de um lado e de outro a immoralidade, a perdição e o desprêzo da palavra de Deus. Por isso, vença quem vencer, nenhum hade triumphar.'
-- 'Ai, o meu pobre filho, o meu Carlos!'
-- 'Isso, irman Francisca, isso! Peça a Deus que dê a victoria a seu neto, e á impiedade por que elle combate. Peça a Deus que vençam os inimigos declarados do seu nome, os destruidores de seus altares, os profanadores de seus templos... Oh! que dia bello e grande não hade ser esse, quando Carlos... o seu Carlos, vier expulsar, ás baionetadas, do pobre convento de San'Francisco, o velho guardião -- que lhe não hade fugir, minha irman!.. d'elle menos que de nenhum outro... que ajoelhado deante do altar inclinará a cabeça como os antigos martyres para cahir na presença do seu Deus ás mãos do seu...'
-- 'Diniz!.. Padre!.. Padre Frei Diniz, que horrorosas palavras sahem da sua bôcca!.. Meu neto, o meu Carlos não é capaz... oh meu Deus!..'
-- 'Seu neto detesta-me... e tem... tem razão.'
-- 'Não sabe a verdade elle... Carlos está inganado, cuida... não sabe senão meia verdade: e eu, eu heide -- custe o que me custar -- eu heide...'
-- 'Hade o quê?'
-- 'Heide desinganá-lo, heide-lhe dizer a verdade toda. Heide prostrar-me na sua presença, heide humilhar-me deante do filho de minha filha, heide arrastar na poeira de seus pés éstas cans e éstas rugas... morrerei de vergonha e de remorsos deante do meu filho, mas elle hade saber a verdade.'
Sahiam com tal impeto e com tam desacostumada energia éstas mysteriosas e tremendas palavras da bôcca da velha, que Fr. Diniz não ousou contê-la; ouviu até ao fim, deixou quebrar o impeto da torrente, e erguendo então a sua voz austera mas pousada, disse n'aquelle tom friamente decisivo que tanto impõe aos animos apaixonados:
-- 'Se tal fizesse, mulher, a minha maldicção, a maldicção eterna de Deus sôbre a sua cabeça para sempre!... Oh mulher, pois não lhe basta que elle me abhorreça -- não lhe basta que seu neto lhe perdesse o amor... quer... quer tambem que nos despreze?'
A velha gemeu profundamente, e, por um geito de antiga reminiscencia, levou as mãos aos olhos como se os tapasse para não ver. Então disse com desconsoladas lagrymas na voz:
-- 'A vontade de Deus seja feita!'
CAPITULO XIX
Guerra de postos avançados. Joanninha no bivac -- De como os rouxinoes do valle se disciplinaram a ponto de tocar a alvorada e a retreta. -- Quem era a 'menina dos rouxinoes,' e porque lhe poseram este nome. -- A sentinella perdida e achada.
A velha disse aquellas últimas palavras com uma expressão de dor tam resignada, mas tam desconsolada, que o frade olhou para ella commovido, e sentiu as lagrymas escurecerem-lhe a vista.
N'este momento Joanninha, que passeiava a alguma distancia da casa na direcção de Lisboa, acudiu sobresaltada bradando:
-- 'Avó, avó!.. tanta gente que ahi vem! soldados e povo... homens e mulheres... tanta gente!'
Era a retirada de 11 de outubro.
-- 'Deus tenha compaixão de nós!' disse a velha: 'O que será padre?'
-- 'O que hade ser!' respondeu Fr. Diniz: 'o meu presentimento que se verifica; o combate foi decisivo, os constitucionaes vencem.'
Comeffeito foram apparecendo as tropas que se retiravam, as gentes que fugiam, e todo aquelle confuso e doloroso espectaculo de uma retirada em guerra civil...
Alguns feridos, que não podiam mais, ficaram na casa do valle intregues á piedosa guarda e cuidado de Joanninha; dos outros tomou conta Fr. Diniz e os acompanhou a Santarem.
As tropas constitucionaes vinham em seguimento dos realistas, e d'alli a poucos dias tinham o seu quartel-general no Cartaxo; D. Miguel fortificava-se em Santarem, e a casa da velha era o último posto militar occupado pelo seu exército.
Não tardou muito que a fôrça toda, todo o interêsse da guerra se não concentrasse n'aquelle, ja tam pacífico e ameno, agora tam desolado e turbulento valle.
Eram os derradeiros dias do outomno, a natureza parecia tomar dó pelo homem -- dar triste e lugubre decoração de scena ao sanguento drama de destruição e de miseria que alli se ía concluir. As últimas folhas das árvores cahiam, o ceo nublado e negro vertia sôbre a terra apaulada torrentes grossas d'agua, a cheia alagava os baixos, e as terras altas cobriam-se de hervas maninhas, os trabalhos da lavoira cessavam, o gado e os pastores fugiam, e os soldados de um e de outro campo cortavam as oliveiras seculares...
Tudo estava feio e torpe, tudo era ruina, desolação e morte emtôrno da casa do valle, agora transformada em quartel e redutto militar.
E que era feito, no meio d'ésta desordem, que era feito da nossa pobre velha, da nossa interessante Joanninha?
Apenas se estabeleceu a posição dos dous exercitos, Fr. Diniz queria levá-las para Santarem; mas não foi possivel. Instancias, rogos, ordem positiva, tudo foi em vão. Pela primeira vez na sua vida, aquella mulher tímida, fraca e irresoluta, soube ter vontade firme e propria.
-- 'Aqui nasci,' dizia ella, 'aqui vivi, aqui heide morrer. Que importa como?.. Aqui as curtas alegrias, aqui as longas dores da minha vida teem passado: onde heide eu ir que possa viver ou morrer senão aqui? Ésta casa sei-a de cór, éstas árvores conhecem-me, estes sitios são os ultimos que vi, os unicos de que me lembra: como heide eu, velha e cega, ir fazer conhecimento com outros para viver n'elles?..'
-- 'E Joanninha n'essa edade... no meio d'essa soldadesca!' suggeria o frade.
-- 'Joanninha' tornava ella 'Joanninha é uma criança, e tem mais juizo, mais energia d'alma, mais saude e mais fôrça do que -- mulheres não fallemos -- do que a maior parte dos homens. Ficaremos aqui, padre, ficaremos aqui melhor do que em Santarem podêmos estar. Deus nos defenderá...'
Fr. Diniz cedeu: a mesma vaga e indeterminada esperança que animava a velha, e que a prendia tam fortemente alli, não era extranha ao coração do frade. Ella não ousava nem alludir de longe a essa esperança, mas sentia-se que lá a tinha anninhada e escondida a um canto d'alma... Aquelle neto, aquelle filho da filha querida havia de vir ter á casa em que nascêra... por alli havia de passar, e mais dia menos dia... A velha, repitto, nem alludia a tal esperança, mas sentia-se que a tinha: percebeu-lh'a Fr. Diniz, e ou a partilhasse tambem ou não se atrevesse a contrariar razões que lhe não davam, cedeu e callou-se.
O seu principal temor era a licenciosa soltura dos costumes militares; mas estava Joanninha menos exposta por se accolher a uma praça de guerra como Santarem era agora?
Brevemente se viu que a avó tinha accertado. A franca e ingenua dignidade de Joanninha, o ar grave, a melancholia serena e bondosa da velha impozeram tal respeito aos soldados, que -- graças tambem á cooperação efficaz do commandante do pôsto, um bom e honrado cavalheiro transmontano -- ellas viviam tam seguras e quietas na pequena porção da casa que para si reservaram, quanto em taes circumstancias era possivel viver. Fr. Diniz vinha regularmente ao valle todas as sexta-feiras, e nenhum outro hábito de suas vidas se interrompeu.
E pouco a pouco, os combates, as escaramuças, o som e a vista do fogo, o aspecto do sangue, os ais dos feridos, o semblante desfigurado dos mortos -- a guerra emfim em todas as suas fórmas, com todo o seu palpitante interêsse, com todos os terrores, com todas as esperanças que a accompanham, se lhes tornou uma coisa familiar, ordinaria...
A tudo se habitua o homem, a todo o estado se affaz; e não ha vida, por mais extranha, que o tempo e a repettição dos actos lhe não faça natural.
Todavia de Carlos nem mais uma linha... Pobre velha!
Assim passaram meses, assim correu o hynverno quasi todo, e ja as amendoeiras se toucavam de suas alvissimas flores de esperança, ja uma depois de outra, íam renascendo as plantas, íam abrolhando as árvores; logo vieram as aves trinando seus amores pelos ramos... insensivelmente era chegado o meio d'Abril, estavamos em plena e bella primavera.
A guerra parecia cançada, o furor dos combatentes quebrado; rumores de intentadas transacções gyravam por toda a parte.
No nosso valle as sentinellas dos dous campos oppostos, costumadas ja a ver-se todos os dias, começavam a ver-se sem odio: principiaram por se dizer dos pesados gracejos de guerra, acabaram por conversar quasi amigavelmente. Muíta vez foi curioso ouvi-los, os soldados, discorrer sôbre as altas questões d'Estado que dividiam o reino e o traziam revôlto ha tantos annos. Se as tractavam melhor os do conselho em seus gabinetes!
Joanninha que, pouco a pouco, se habituára áquelle viver de perigos e incertezas, de dia para dia lhe ia crescendo o ânimo, aguerrindo-se. Tudo se affazia áquelle estado: até os rouxinoes tinham voltado aos loureiros d'aopé da casa, e como que disciplinados obedeciam aos toques d'alvorada e de retreta, accompanhando-os de seu cantar animado e vibrante.
A essas horas Joanninha era certa em sua janella -- n'aquella antiga e elegante janella renascença de que primeiro nos namorámos, leitor amigo, ainda antes de a conhecer a ella. Alli a viam as vedetas de ambos os exercitos, alli se acostumaram a vê-la com o nascer e o pôr do sol: alli, muda e quêda horas esquecidas, escutava ella o vago cantar dos seus rouxinoes, talvez absorta em mais vagos pensamentos ainda...
E d'alli lhe pozeram o nome da 'menina dos rouxinoes', pelo qual era conhecida em ambos os campos: significante e poetico appellido com que a saudavam os soldados de ambas as bandeiras!
E uns e outros respeitavam e adoravam a menina dos rouxinoes. Entre uns e outros por tacita convenção parecia stipulado que aquella suave e angelica figura podesse andar livremente no meio das armas inimigas, como a pomba doméstica e valida a que nenhum caçador se lembra de mirar.
Os costumes de guerra são menos soltos do que se cuida; no ânimo do soldado ha mais sentimentos delicados, nas suas fórmas ha menos rudeza do que se pensa. A farda é sim vaidosa e presumida, crê muito nos seus podêres de seducção, mas não é brutal senão no primeiro impeto.
Joanninha pençava os feridos, velava os infermos, tinha palavras de consolação para todos, e em tudo quanto dizia e fazia era tam senhora, tinha tam grave gentileza, um donaire tam nobre, que a amavam todos muito, mas respeitavam-n'a ainda mais.
Fiada ja n'este respeito e estima geral, Joanninha fôra extendendo, de dia a dia, as suas excursões pelo valle. Ultimamente costumava ir, pelo fim da tarde, até um pequeno grupo de alamos e oliveiras que ficava mais para o sul e perto do logar donde, á noite, se collocavam as derradeiras vedetas dos constitucionaes.
Um dia, ja quasi pôsto o sol, a tarde quente e serena, -- ou fosse que adormeceu ou que suas meditações a distrahiram -- o certo é que os rouxinoes gorjeavam ha muito nos loureiros da janella, e Joanninha não voltava.
Estabeleceram-se as vedetas de um lado e outro, deram-se todas as disposições costumadas para a noite.
O official dos constitucionaes que andava collocando as suas sentinellas, tinha vindo essa mesma tarde de Lisboa com um refôrço de tropa. Pôs-se elle em marcha com a sua gente, foi-a dispondo nos logares convenientes, e chegava emfim aopé d'aquelle grupo de árvores:
-- 'Silencio!' disse elle 'Alto! alli está um vulto.'
-- 'Não é ninguem,' respondeu um soldado que era dos antigos no pôsto: 'ninguem que importe; é a menina dos rouxinões. Estou vendo que adormeceu no seu poiso costumado.'
-- 'A menina dos rouxinões! Que cantiga é essa que me cantas tu lá?'
O soldado deu a explicação popular do seu ditto, mostrou a casa do valle, e continuava incarecendo sôbre os meritos e virtudes de Joanninha...
O official não o deixou acabar:
-- 'Para a rettaguarda, e silencio!'
Foi rapidamente postar, a alguma distancia d'alli, as duas sentinellas que lhe faltavam; e elle entrou so no pequeno grupo d'árvores.
Era Joanninha que estava alli, Joanninha que effectivamente dormia a somno sôlto.
CAPITULO XX
Joanninha adormecida -- O demi-jour da coquette. -- Poesia do Flos-sanctorum. -- De como os rouxinoes acompanhavam sempre a menina do seu nome; e do bem que um d'elles cantava no bivac. -- Retratto esquissado á pressa para satisfazer ás amaveis leitoras. -- Pondera-se o triste e pessimo gôsto dos nossos governantes em tirarem as honras militares ao mais elegante e mais nacional uniforme do exército portuguez. -- Em que se parece o auctor da presente obra com um pintor da edade-média. -- De como os abraços, por mais apertados que sejam, e os beijos, por mais interminaveis que pareçam, sempre teem de acabar porfim.
Sôbre uma especie de banco rustico de verdura, tapeçado de grammas e de macella brava, Joanninha, meio recostada, meio deitada, dormia profundamente.
A luz baça do crepusculo, coada ainda pelos ramos das árvores, illuminava tibiamente as expressivas feições da donzella; e as fórmas graciosas de seu corpo se desenhavam molle e voluptuosamente no fundo vaporoso e vago das exhalações da terra, com uma incerteza e indecisão de contornos que redobrava o incanto do quadro, e permittia á imaginação exaltada percorrer toda a escalla d'harmonia das graças femininas.
Era um ideal do demi-jour da coquette parisiense: sem arte nem estudo, lh'o preparára a natureza em seu boudoir de folhagem perfumado da brisa recendente dos prados.
Como n'essas poeticas e populares legendas de um dos mais poeticos livros que se tem escripto, o Flos-sanctorum, em que a ave querida e fadada accompanha sempre a amavel sancta de sua affeição -- Joanninha não estava alli sem o seu mavioso companheiro. Do mais espêsso da ramagem, que fazia sobreceo áquelle leito de verdura, sahia uma torrente de melodias, vagas e ondulantes como a selva com o vento, fortes, bravas, e admiraveis de irregularidade e invenção, como as barbaras endeixas de um poeta selvagem das montanhas... Era um rouxinol, um dos queridos rouxinoes do valle que alli ficára de vela e companhia á sua protectora, á menina do seu nome.
Com o approximar dos soldados, e o cochichar do curto dialogo que no fim do último capitulo se referiu, cessára por alguns momentos o delicioso canto da avezinha; mas quando o official, postadas as sentinellas a distancia, voltou pé ante pé e entrou cautellosamente para debaixo das árvores, ja o rouxinol tinha tornado ao seu canto, e não o suspendeu outra vez agora, antes redobrou de trillos e gorgeios, e do mais alto de sua voz agudissima veio descahindo depois em uns suspiros tam magoados, tam sentidos, que não disseras senão que preludiava á mais terna e maviosa scena d'amor que esse valle tivesse visto.
O official... -- Mas certo que as amaveis leitoras querem saber com quem trattam, e exigem, pelo menos, uma esquissa rapida e a largos traços do novo actor que lhes vou appresentar em scena.
Teem razão as amaveis leitoras, é um dever de romancista a que se não póde faltar.
O official era môço, talvez não tinha trinta annos; pôsto que o tratto das armas, o rigor das estações, e o sêllo visivel dos cuidados que trazia estampado no rosto, accentuassem ja mais fortemente, em feições de homem feito, as que ainda devia arredondar a juventude.
A sua estatura era mediana, o corpo delgado, mas o peito largo e forte como precisa um coração de homem para pulsar livre; seu porte gentil e decidido de homem de guerra desenhava-se perfeitamente sob o espesso e largo sobretudo militar -- especie de great-coat inglez que a imitação das modas britannicas tinha tornado familiar nos nossos bivacs. Trazia-o desabotoado e descahido para traz, porque a noite não era fria; e viu-se por baixo elegantemente cingida ao corpo a fardeta parda dos caçadores, realçada de seus characteristicos alamares pretos e avivada de incarnado...
Uniforme tam militar, tam nacional, tam caro a nossas recordações -- que essas gentes, prostituidoras de quanto havia nobre, popular e respeitado n'esta terra, proscreveram do exército... por muito portuguez demais talvez! deram-lhe baixa para os beleguins da alfandega, reformaram-n'o em uniforme da bicha!
Não pude resistir a esta reflexão: as amaveis leitoras me perdoem por interromper com ella o meu retratto.
Mas quando pinto, quando vou riscando e collorindo as minhas figuras, sou como aquelles pintores da edade-média que interlaçavam, nos seus paineis, distichos de sentenças; fittas lavradas de moralidades e conceitos... talvez porque não sabiam dar aos gestos e attitudes expressão bastante para dizer por elles o que assim escreviam, e servia a penna de supplemento e illustração ao pincel... Talvez: e talvez pelo mesmo motivo caio eu no mesmo defeito...
Será; mas em mim é irremediavel, não sei pintar de outro modo.
Voltemos ao nosso retratto.
Os olhos pardos e não muito grandes, mas de uma luz e viveza ímmensa, denunciavam o talento, a mobilidade do espirito -- talvez a irreflexão... mas tambem a nobre singeleza de um character franco, leal e generoso, facil na íra, facil no perdão, incapaz de se offender de leve, mas impossivel de esquecer uma injúria verdadeira.
A bôcca, pequena e desdenhosa, não indicava comtudo suberba, e muito menos vaidade, mas surria na consciencia de uma superioridade inquestionavel e não disputada.
O rosto, mais pallido que trigueiro, parecia comprido pela barba preta e longa que trazia ao uso do tempo. Tambem o cabello era preto; a testa alta e desaffogada.
Quando callado e serio, aquella physionomia podia-se dizer dura; a mais piquena animação, o mais leve sorriso a fazia alegre e prazenteira, porque a mobilidade e a gravidade eram os dous pollos d'esse character pouco vulgar e difficilmente bem intendido.
D'aquelle busto classico e verdadeiramente moldado pelos typos da arte antiga, podia o statuario fazer um philosopho, um poeta, um homem d'estado ou um homem do mundo, segundo as leves inflexões d'expressão que lhe désse.
N'este momento agora, e ao entrar na pequena espessura d'aquellas árvores, animava-o uma viva e inquieta expressão de interêsse -- quebrado comtudo, sustido, e, para assim dizer, soffreado de um temor occulto, de um pensamento reservado e doloroso que lhe ia e vinha resumbrando na face, como a antiga e desbotada côr de um estôfo que se tingiu de novo -- que é outro agora mas que não deixou de ser inteiramente o que era...
Alegra-se assim um triste dia de novembro com o raio de sol transiente e inesperado que lhe rompeu a cerração n'um canto do ceo...
Tal era, e tal estava deante de Joanninha adormecida, o que não direi mancebo porque o não parecia -- o homem singular a quem o nome, a historia e as circumstancias da donzella pareciam ter feito tamanha impressão.
-- 'Joanninha!' murmurou elle apenas a viu á luz ainda bastante do crepusculo. 'Joanninha!' disse outra vez, contendo a violencia da exclamação: 'É ella sem dúvida. Mas que differente!... quem tal diria! Que graça, que gentileza! Será possível que a criança que ha dois annos?..'
Dizendo isto, por um movimento quasi involuntario lhe tomou a mão adormecida e a levou aos labios.
Joanninha estremeceu e acordou.
-- 'Carlos, Carlos!' -- balbuciou ella com os olhos ainda meio-fechados, Carlos, meu primo... meu irmão! era falso, dize: era falso? Foi um sonho, não foi, meu Carlos?..'
E progressivamente abria os olhos mais e mais até se lhe espantarem e os cravar n'elle arregalados de pasmo e de alegria.
-- 'Foi, foi' continuou ella 'foi sonho, foi um sonho mau que eu tive. Tu não morreste... Falla á tua irman, á tua Joanna; dize-lhe que estás vivo, que não es a sombra d'elle... Não es, não, que eu sinto a tua mão quente na minha que queima, sinto-a estremecer como a minha... Carlos, meu Carlos! dize, falla-me: tu estás vivo e são? E es... es o meu Carlos? Tu proprio, não é ja o sonho, es tu?...'
-- 'Pois tu sonhavas? tu, Joanna, tu sonhavas commigo?'
-- 'Sonhava como sonho sempre que durmo... e o mais do tempo que estou acordada... sonhava com aquillo em que so penso... em ti.'
-- 'Joanna!... prima... minha irman!'
E cahiu nos braços d'ella; e abraçaram-se n'um longo, longo abraço -- com um longo, interminavel beijo..! longo, longo e interminavel como um primeiro beijo d'amantes...
O abraço desfez-se; e o beijo terminou em fim, porque os reflexos do ceo na terra são limitados e imperfeitos como as incompletas existencias que a habitam.
Senão... invejariam os anjos a vida da terra.
Joanninha, tornada a si d'aquelle quasi paroximo, abria e fechava os olhos para se affirmar se estava bem acordada, tocava com as mãos o rosto, o peito, os braços do primo, palpava-se depois a si mesma como quem duvidava de sua propria existencia, e dizia em palavras cortadas e sem nexo:
-- 'É Carlos... Carlos: foi falso. É meu primo... Minha avó tambem sonhou o mesmo sonho, mas foi falso. Fr. Diniz não é o que disse, nem ninguem: eu e a avó é que o sonhámos. Mas elle aqui está, vivo... vivo! e nosso, nosso todo outra vez!... Mas como vieste tu aqui, Carlos? Como estava eu aqui comtigo?... E sos, sosinhos aqui a ésta hora! Não deve ser isto... Valha-me Deus! E que dirão? E Jesus! -- Lá isso não me importa; deixá-los dizer: mas não deve ser. Vamos, Carlos, vamos ter com ella, vamos para a avó!... Que n'isto não ha mal nenhum... Meu primo!.. um primo com quem eu fui criada!.. Mas quem não souber, póde dizer... Vamos, Carlos. -- Oh! minha avó morre de alegria, coitada!.. É verdade: vou adeante preveni-la, prepará-la... heide-lhe ir assim dizendo pouco a pouco... Segue-me tu, Carlos, e vamos. -- Mas, oh meu Deus! não é preciso: paraquê? Ella é cega, coitadinha, não sabes?'
-- 'Cega, que dizes? minha avó está cega?'
-- 'Pois não sabías? Ai! é verdade, não sabías. Tantas coisas que tu não sabes, meu Carlos! Mas eu te contarei tudo, tudo. Olha: cegou quando... Mas não fallemos agora n'essas tristezas que ja la vão. Em ella te sentindo aopé de si, é o mesmo que tornar-lhe a vista. Tem-m'o ella ditto muitas vezes, e eu bem sei que é assim. Mas ouve: um dia havemos de fallar -- nós dois sos -- á vontade: tenho tanto que te dizer... nem tu sabes... Agora vamos, Carlos.'
E fallando assim, tomou-o pela mão e sahiu para o valle aberto, froixamente acclarado ja de myríadas de estrellas scintillantes no ceo azul.
CAPITULO XXI
Quem vem lá? -- Como entre dous litigantes nem sempre gosa o terceiro. -- Carlos e Joanninha n'uma especie de situação ordeira, a mais perigosa e falsa das situações.
As estrellas luziam no ceo azul e diaphano, a brisa temperada da primavera suspirava brandamente; na larga solidão e no vasto silencio do valle distinctamente se ouvia o doce murmúrio da voz de Joanninha, claramente se via o vulto da sua figura e da do companheiro que ella levava pelo mão e que machinalmente a seguia como sem vontade propria, obedecendo ao podêr de um magnetismo superior e irresistivel.
Passavam, sem as ver e sem reflectir onde estavam, por entre as vedetas de ambos os campos... e ao mesmo tempo de umas e outras lhes bradou o voz breve e stridente das sentinellas: 'Quem vem lá?'
Estremeceram involuntariamente ambos com o som repentino de guerra e de allarma que os chamava á esquecida realidade do sítio, da hora, das circumstancias em que se achavam... D'aquelle sonho incantado que os transportára ao Éden querido de sua infancia, accordaram sobresaltados... viram-se na terra erma e bruta, viram a espada flammejante da guerra civil que os perseguia, que os desunia, que os expulsava para sempre do paraizo de delicias em que tinham nascido...
Oh! que imagem eram esses dous, no meio d'aquelle valle nu e aberto, á luz das estrellas scintillantes, entre duas linhas de vultos negros, aqui alli dispersos e luzindo acaso do tranziente reflexo que fazia brilhar uma baioneta, um fuzil... que imagem não eram dos verdadeiros e mais sanctos sentimentos da natureza expostos e sacrificados sempre no meio das luctas barbaras e estupidas, no conflicto de falsos principios em que se estorce continuamente o que os homens chamaram sociedade!
Joanninha abraçou-se com o primo; elle parou derepente e foi com a mão ao punho da espada.
-- 'Quem vem lá?' tornaram a bradar as sentinellas.
-- 'Ouves, Joanna?' disse Carlos em voz baixa e sentida: 'Ouves estes brados?' É o grito da guerra que nos manda separar; é o clamor cioso e vigilante dos partidos que não tolera a nossa intimidade, que separa o irmão da irman, o pae do filho!..'
-- 'Quem vem lá?' bradaram ainda mais forte as sentinellas; e ouviu-se aquelle stridor baço e breve que tam froixo é e tam forte impressão faz nos mais bravos animos... era o som dos gatilhos que se armavam nas espingardas.
O momento era supremo, o perigo imminente e ja inevitavel... alli podiam ficar ambos, traspassados das ballas oppostas dos dous campos contendores.
Como esses que, fiados em sua innocencia e abnegação, cuidam podêr passar por entre as discordias civis sem tomar parte n'ellas, e que são, por isso mesmo, objecto de todas as desconfianças, alvo de todos os tiros -- assim estavam alli os dous primos na mais arriscada e falsa posição que têem as revoluções.
Joanninha conheceu o perigo que os ameaçava; e com aquella rapidez de resolução que a mulher tem mais prompta e segura nas grandes occasiões, disse para Carlos:
-- 'Falla aos teus, faze-te conhecer e põe-te a salvo. Ámanhan nos tornaremos a ver: eu te avisarei. Adeus!'
-- 'E tu, tu?.. E as sentinellas dos realistas?..'
-- 'Não tenhas cuidado em mim. D'esta banda todos me conhecem'.
Deu alguns passos para o lado da sua casa e levantou a voz:
-- 'Joanninha! Sou eu, camaradas, sou eu!'
Immediatamente se ouviu o som retinido das coronhas no chão, e o riso contente dos soldados que reconheciam a bemquista e bem vinda voz de Joanninha... da 'menina dos rouxinoes.'
-- 'Ves, Carlos?.. Adeus! até ámanhan.' disse ella baixo.
-- 'Até amanhan se...'
-- 'Se!.. Pois tu?..'
-- 'Ouve: não digas a tua avó que me viste, que estou aqui: é forçoso, é indispensavel, exijo-o de ti...'
-- 'E ámanhan me dirás?..'
-- 'Sim.'
-- 'Prometto: não direi nada... Mas, oh! Carlos...'
-- 'Adeus!'
Carlos deu dous passos para a banda das suas vedetas, Joanna correu para o lado opposto. Mas elle parou e não tirou os olhos d'aquella fórma gentil que deslizava como uma sombra pelo horisonte do valle, até que desappareceu de todo.
E elle immovel ainda!
Faíscaram derepente como relampagos um, dous, tres... e as detonações que os seguiram, e o assovio das ballas que vinham depós ellas... Eram as sentinellas constitucionaes que faziam fogo sôbre o seu commandante que não conheciam, cujo silencio e immobilidade o fazia suspeito.
Uma das ballas ainda o feriu levemente no braço esquerdo.
-- 'Bem, camaradas!' bradou Carlos caminhando rapidamente para elles, e erguendo a voz forte e cheia que tam conhecida era nas fileiras: 'Bem! Fizeram a sua obrigação. Um de vocês que me aperte aqui o braço com este lenço.'
-- 'Carlos!' gritou ao longe uma voz fina, aguda, vibrante de terror pelo espaço 'Carlos! falla-me, responde: não te succedeu nada?'
-- 'Nada, nada! Socega.'
E tornou a cahir tudo no silencio. Carlos retirou-se ao seu quartel n'uma choupana proxima. Os soldados olharam-se entre si e surriram.
Um mais doutor disse para os outros:
-- 'O nosso capitão não se descuida: ainda hoje chegou, e já nós lá vamos, hem?'
-- 'O nosso capitão é d'aqui: não sabes?'
-- 'Hum! tenho percebido. E ainda lhe dura? O home' é capaz!'
-- 'Silencio! Eu te direi logo a historia toda: é uma prima.'
-- 'Ah! prima. Então não ha nada que dizer.'
-- 'É a que elles chamam aqui...'
-- 'A menina dos rouxinoes? Essa é maluca.'
-- 'Gosta d'ellas assim, que elle tambem o é.'
-- 'Pois a freira de San Gonsallo, na Terceira?'
-- 'Maluca.'
-- 'E a Lady ingleza que?..'
-- 'Maluquissima essa! Não me hade admirar se a vir cahir do ar um dia por ahi como bomba. E não hade dar mau estallo!'
-- 'Podéra! E incontrando-se com a prima então!..'
-- 'Mas elle é prima ou é irman?'
-- 'É uma tal parentella inrevezada a d'essa gente da casa do valle!.. dizem coisas por ahi, que se eu as intendo!.. E ha um frade no caso, ja se sabe...'
-- 'Oh! elle ha frade no caso?'
-- 'Ha, e que frade! Um apostolico ás direitas! Tam feio, tão magro! apparece por ahi ás vezes. Eu já o lombriguei um dia: e que famoso tiro que era! Quasi que me arrependo de não ter...'
-- 'Isso! hoje iamos matando o nosso capitão por instantes. Olha agora se lhe matas o tio, ou pae, ou o que quer que é...'
-- 'Um frade!'
-- 'Um frade não é gente?'
-- 'Não senhor.'
-- 'Está bom: basta de conversar por hoje. O que me eu parece é que nós temos cedo muita pancada rija.'
-- 'Venha ella, que isto ja abhorrece.'
Accenderam os cigarros e fumaram.
Com o mesmo socêgo d'espirito... sancto Deus! accendem os homens a guerra civil, que altera e confunde por este modo todas as ideas, todos os sentimentos da natureza.
CAPITULO XXII
Bilhete de manhan da prima ao primo. Inganam a pobre da velha. -- Noite mal dormida. -- Da conversa que teve Carlos com os seus botões. -- A Joanninha que elle deixára e a Joanninha que achou. -- Obrigações d'amor, triste palavra. -- A mulher que elle amava, e se elle a amava ainda. -- Quesitos do A. aos seus benevolos leitores. Declara que com os hypocritas não falla. -- Quem hade levantar a primeira pedra? -- Dous modos differentes de accudir uma coisa ao pensamento.
No dia seguinte, mal rompia a manhan, um paizano que dizia trazer communicações importantes para o commandante do pôsto avançado, foi conduzido á presença de Carlos e lhe intregou uma carta: era de Joanninha.
Fiel á sua promessa, ella não tinha ditto nada do incôntro da véspera: dizia a carta. E que a avó estava doente e afflicta; que para a animar e consolar, lhe dera notícias do primo, como vindas por pessoa que o víra e estivera com elle. Que ficava mais contente e socegada: mas que aquelle estado de anciedade não podia prolongar-se. Que a saude da pobre velha declinava de dia a dia; que se lhe ia a vida, que era matá-la não lhe dizer a verdade... Joanninha concluia com mil affectos e saudades; e aprazava por fim o mesmo sítio da véspera para se tornarem a ver, e para concertarem o que havia de fazer. Todas as precauções estavam tomadas, e o consentimento dado pelo commandante do pôsto contrário para haver toda a segurança n'aquella entrevista.
Carlos tinha velado toda a noite; uma excitação extraordinaria lhe amotinára o sangue, lhe desaffinára os nervos. Bem tinha desejado vir para aquelle pôsto, bem contava, bem esperava elle, estando alli, saber de mais perto da sua familia, vê-los talvez, mais dia menos dia, incontrar-se com alguns d'elles... e de todos elles, a innocente e graciosa criança com quem vivêra como irmão desde os seus primeiros annos, era quem elle mais esperava, mais desejava ver decerto.
Mas uma criança era a que elle tinha deixado, uma criança a brincar, a colhêr as boninas, a correr atraz das borboletas do valle... uma criança que sim o amava ternamente, cuja suave imagem o não tinha deixado nunca em sua longa peregrinação, cuja saudade o accompanhára sempre, de quem se não esquecêra um momento, nem nos mais alegres nem nos mais occupados, nem nos mais difficeis nem nos mais perigosos da sua vida...
Mas era uma criança!.. era a imagem d'uma criança.
É certo, sim: e nas batalhas, em presença da morte... no longo cêrco do Porto entre os flagellos da cholera e da fome, nas horas de mais viva esperança, no descoroçoamento dos mais tristes dias, a doce imagem de Joanninha, d'aquella Joanninha com quem elle andava ao colo, que levantava em seus hombros para ella chegar aos ninhos dos passaros no verão, aos medronhos maduros no outomno, que elle suspendia nos braços para passar no hynverno os alagadiços do valle, -- essa querida imagem não o abandonára nunca.
Nunca!.. nem quando as pennas d'amor, nem quando as suas glórias -- mais esquecidiças ainda! -- pareciam absorver-lhe todos os sentidos, e todo o sentimento de seu coração.
A saudade, a memoria de Joanninha, suavemente impressa no mais puro e no mais sancto de sua alma, resplandecia no meio de todas as sombras que lh'a obscurecessem, sobreluzia no meio de qualquer fogo que lh'a allumiasse.
Uma luz quieta, limpida, serena como a tocha na mão do anjo que ajoelha em innocencia e piedade deante do throno do Eterno!
Mas, no mesmo dia em que chegou ao valle, quasi na mesma hora, cheio d'aquella luz, mais viva e animada agora pela proximidade do foco d'onde sahia... n'essa mesma hora, ir incontrar alli, n'aquella solidão, entre aquellas árvores, á tibia e seductora claridade do crepusculo... a quem, sancto Deus! Não ja a mesma Joanninha de ha tres annos, não a mesma imagem que elle trazia, como a levára, no coração; mas uma gentil e airosa donzella, uma mulher feita e perfeita, e que nada perdêra, comtudo, da graça, do incanto, do suave e delicioso perfume da innocencia infantil em que a deixára!
Não esperava, não estava preparado para a impressão que recebeu, foi uma surpreza, um choque, um reviramento confuso de todas as suas ideas e sentimentos.
Qual fosse porêm a precisa e verdadeira impressão que recebeu, nem elle a si proprio o podéra explicar: era de um genero novo, unico na historia de suas sensações: não a conhecia, extranhava-a, e quasi que tinha medo de a analysar.
Sería annúncio d'amor?
Mas elle tinha amado, amado muito e devéras... e cuidava amar ainda, e devia amar; por quanto ha sagrado e sancto nos deveres do coração, era obrigado a amar ainda.
Oh obrigações d'amor, obrigações d'amor! se vós não sois, se vós ja não sois senão obrigações!..
Não o pensava Carlos, não o cria elle assim: leal e sincero tinha intregue o seu coração á mulher que o amava, que tantas próvas lhe dera d'amor e devoção; que descançava em sua fé, que não existia senão para elle: mulher môça, bella, cheia de prendas e de incantos, mulher de um espirito, de uma educação superior, que atravessára, desprezando-as, turbas de adoradores nobres, riccos, poderosos, para descer até elle, para se intregar ao foragido, pobre, extrangeiro, desprezado.
Quem era essa mulher?
Aonde, como obtivera elle a posse d'essa joia, d'esse talisman com o qual se tinha por tam seguro para não ver na graciosa prima senão?..
Senão o quê?
A innocente criança que alli deixára?
Mas não é verdade isso: outra era a impressão que Joanninha lhe fizera, fosse ella qual fosse.
O que era então?
E sôbre tudo, quem era ess'outra mulher que elle amava?
E amava-a elle ainda?
Amava.
E Joanninha?
Joanninha era... nem eu sei o que lhe era Joanninha... o que lhe estava sendo n'aquelle momento.
O que lhe ella fôra, assas t'o tenho explicado, leitor amigo e benevolo: o que lhe ella será... Pódes tu, leitor candido e sincero, -- aos hypocritas não fallo eu -- pódes tu dizer-me o que hade ser ámanhan no teu coração a mulher que hoje somente achas bella, ou gentil, ou interessante?
Pódes responder-me da parte que tomará ámanhan na tua existencia a imagem da donzella que hoje contemplas apenas com olhos de artista, e lhe estás notando, como em quadro gracioso, os finos contornos; a pureza das linhas, a expressão verdadeira e animada?
E quando vier, se vier, esse fatal dia de ámanhan, responder-me-has tambem da parte que ficará tendo em tua alma ess'outra imagem que lá estava d'antes e que, ao reflexo d'esta agora, d'aqui observo que vai impallidecendo, descórando... ja lhe não vejo senão os lineamentos vagos... ja é uma sombra do que foi... Ai! o que será ella ámanhan?
Leitor amigo e benevolo, caro leitor meu indulgente, não accuses, não
julgues á pressa o meu pobre Carlos; e lembra-te d'aquella pedra que o
Filho da Deus mandou levantar á primeira mão que se achasse innocente...
A adultera foi-se em paz, e ninguem a apedrejou.
Pois é verdade: Carlos tinha amado, amado muito, e amava ainda a mulher a quem promettêra, a quem estava resolvido a guardar fé. E essa mulher era bella, nobre, ricca, admirada, occupava uma alta posição no mundo... e tudo lhe sacrificára a elle exilado, desconhecido.
E Carlos estava seguro que nenhuma mulher o havia de amar como ella; que os longos e ondados anneis de loiro cendrado, que os languidos olhos de gazella, que o ar majestoso e altivo, que a tez d'uma alvura celeste, que o espirito, o talento, a delicadeza de Georgina... Chamava-se Georgina; e é tudo quanto por agora póde dizer-vos, ó curiosas leitoras, o discreto historiador d'este mui veridico successo: não lhe pergunteis mais, por quem sois. Carlos estava seguro, dizia eu, que todas essas perfeições, que o seu amor sem limites, que a sua confiança sem reserva, não podiam ter rival, nem a haviam de ter.
Mas aquelle beijo, aquelle abraço de Joanninha... oh! que lhe tinha elle feito? Como o sentíra elle? Como lhe guardára o seu talisman o coração e a alma?..
Não, Carlos estava certo de si, certo do seu antigo amor, lembrado de quanto lhe devia: e n'isso reflectiu toda aquella noite que se fôra em claro.
A imagem de Joanninha lá apparecia, de vez em quando, como um raio de luz transiente e magica, no meio d'ess'outras visões do passado que a reflexão lhe acordava. Ai! essas era a reflexão que as acordava... aquella vinha espontanea; era repellida, e tornava, e tornava...
Ha sua notavel differença n'estes dois modos de accudir ao pensamento.
A manhan veio em fim; Carlos respirou o ar puro e vivo da madrugada, sentiu-se outro.
Quando chegou a carta de Joanninha, leu-a e reflectiu n'ella sem sobresalto. Certo e seguro de si, resolveu ir ao prazo dado para a tarde.
CAPITULO XXIII
Continúa a accudir muita coisa vaga e incontrada ao pensamento de Carlos. -- Dança de fadas e duendes. -- Fr. Diniz o fado-mau da familia. -- Veremos, é a grande resolução nas grandes difficuldades. -- Carlos poeta romantico. -- Olhos verdes. -- Desafio a todos os poetas moyen-ages do nosso tempo.
Não ha nada como tomar uma resolução.
Mas hade tomar-se e executar-se: aliás, se o caso é difficil e complicado, pouco a pouco as dúvidas solvidas começam a inliar-se outra vez, a inredar-se... a surgir outras novas, a appresentarem-se faces ainda não vistas da questão... em fim, se o intervallo é largo, quando a resolução tomada chega a executar-se, a maior parte das vezes ja não é por fôrça de razão e convicção que se faz, mas por capricho, ponto d'honra, teima.
Carlos tinha resolvido ir ao prazo dado, no fim do dia. Mas o dia era longo, custou-lhe a passar. Todas as ponderações da noite lhe recorreram ao pensamento, todas as imagens que lhe tinham fluctuado no espirito se avivaram, se animaram, e lhe começaram a dançar n'alma aquella dança de fadas e duendes que faz a delicia e os tormentos d'estes sonhadores acordados que andam pelo mundo e a quem a douta faculdade chama nervosos; em stylo de romance sensiveis, na phrase popular malucos.
Carlos era tudo isso: para que o heide eu negar?
Entre aquellas imagens que assim lhe bailavam no pensamento, vinha uma agora... talvez a que elle via mais distincta entre todas, a da avó que tanto amára, em cujo maternal coração elle bem sabía que tinha a primeira, a maior parte... da avó que tam carinhosa mãe lhe tinha sido! Pobre velhinha, hoje decrepita e cega... Cega, coitada! Como e porque cegaria ella?
Havia ahi mysterio que Joanninha indicára, mas que não explicou.
Atraz da paciente e humilhada figura d'aquella mulher de dores e desgraças, se erguia um vulto austero e duro, um homem armado da cabeça aos pés de ascetica insensibilidade, um homem que parecia o fado-mau d'aquella velha, de toda a sua familia... o cumplice e o verdugo de um grande crime... um ser de mysterio e de terror.
Era Fr. Diniz aquelle homem; homem que elle desejava, que elle cuidava detestar, mas por quem, no fundo d'alma, lhe clamava uma voz mystica e íntima, uma voz que lhe dizia: 'Assim será tudo, mas tu não pódes abhorrecer esse homem.'
Sim, mas sôbre Fr. Diniz pesava uma accusação tremenda, que o fizera, a elle Carlos, abandonar a casa de seus paes! Accusação horrivel que tambem comprehendia a pobre velha, aquella avó que o adorava, e que elle, ainda criminosa como a suppunha, não podia deixar de amar...
E d'estes medonhos segredos sabía Joanninha alguma coisa?
Esperava em Deus que não.
Desconfiaria alguma coisa?... O quê?
E iria elle polluir o pensamento, desflorar os ouvidos, corromper os labios da innocente criança com o esclarecimento de taes horrores?
Havia de lhe fallar na infamia dos seus? Havia de lhe explicar o motivo porque fugira da casa paterna?
Havia de?..
Não. -- Se Joanninha tivesse suspeitas, havia de destrui-las antes; se ella soubesse alguma coisa, negar-lh'a.
Mentiria, juraria falso se fosse preciso.
E não havia de ir ver a avó, não havia de entrar na casa dos seus a consolar a infeliz que só vivia d'uma esperança, a de ver o filho de sua filha?
Não, nunca... O limiar d'aquella porta, que elle julgava contaminado, infame, manchado de sangue e cuspido de opprobrios e deshonras, tinha-o passado sacudindo o po de seus sapatos, promettendo a Deus e á sua honra de o não tornar a cruzar mais.
Mas que diria então elle a Joanninha? Como havia de explicar-lhe um proceder tam extranho, e apparentemente tam cruel, tam ingrato?
Por emquanto as impossibilidades materiaes da guerra serviriam de desculpa, depois o tempo daria conselho.
Veremos! -- é a grande resolução que se toma nas grandes difficuldades da vida, sempre que é possivel espaçá-las.
Carlos disse: 'Veremos!'
Tomou todas as disposições para podêr estar seguro e socegado no sítio onde ia incontrar a prima: e o resto do dia, ancioso mas contente, occupou-se de seus deveres militares, fatigou o corpo para descançar o espirito, e em parte e por bastantes horas o conseguiu.
Mas um dia de abril é immenso, interminavel. E as últimas horas pareciam as mais compridas. Nunca houve horas tammanhas! Carlos ja não tinha que inventar para fazer: pôz-se a pensar.
Que remedio!
Pensou n'isto, pensou n'aquillo... uma idea lhe vinha, outra se lhe ia. A imaginação, tanto tempo comprimida, tomava o freio nos dentes e corria á redea sôlta pelo espaço...
Anneis dourados, transas de ebano, faces de leite e rosas como de cherubins, outras pallidas, transparentes, diaphanas como de princezas incantadas, olhos pretos, azues, verdes... os de Joanninha em fim... todas éstas feições, confusas e indistinctas mas de estremada belleza todas, lhe passavam deante da vista, e todas o infeitiçavam. O desgraçado... -- Porque não heide eu dizer a verdade? -- o desgraçado era poeta.
Inda assim! não me esconjurem ja o rapaz... Poeta, intendamo'-nos; não é que fizesse versos: n'essa não cahiu elle nunca, mas tinha aquelle fino sentimento d'arte, aquelle sexto sentido do bello, do ideal que so teem certas organizações privilegiadas de que se fazem os poetas e os artistas.
Eis aqui um fragmento de suas aspirações poeticas. Vejam as amaveis leitoras que não teem metro, nem rhyma -- nem razão... Mas emfim versos não são.
'Olhos verdes!..
'Joanninha tem os olhos verdes...
'Não se reflecte n'elles a pura luz do ceo, como nos olhos azues.
'Nem o fogo -- e o fummo das paixões, como nos pretos.
'Mas o viço do prado, a frescura e animação do bosque, a fluctuação e a transparencia do mar...
'Tudo está n'aquelles olhos verdes.
'Joanninha, porque tens tu os olhos verdes?
'Nos olhos azues de Georgina arde, em sereno e modesto brilho, a luz tranquilla de um amor provado, seguro, que deu quanto havia de dar, quanto tinha que dar.
'Os olhos azues de Georgina não dizem senão uma so phrase d'amor, sempre a mesma e sempre bella: Amo-te, sou tua!
'Nos olhos negros e inquietos de Soledade nunca li mais que éstas palavras: Ama-me, que es meu!
'Os olhos de Joanninha são um livro immenso, escripto em characteres moveis, cujas combinações infinitas excedem a minha comprehensão.
'Que querem dizer os teus olhos, Joanninha?
'Que lingua fallam eles?
'Oh! paraque tens tu os olhos verdes, Joanninha?
'A assucena e o jasmim são brancos, a rosa vermelha, o alecrim azul...
'Roxa é a violeta, e o junquilho côr de ouro.
'Mas todas as côres da natureza vêem de uma so, o verde.
'No verde está a origem e o primeiro typo de toda a belleza.
'As outras côres são parte d'ella; no verde está o todo, a unidade da formosura creada.
'Os olhos do primeiro homem deviam de ser verdes.
'O ceo é azul...
'A noite é negra...
'A terra e o mar são verdes...
'A noite é negra mas bella: e os teus olhos, Soledade, eram negros e bellos como a noite.
'Nas trevas da noite luzem as estrellas que são tam lindas... mas no fim de uma longa noite quem não suspira pelo dia?
'E que se vão... oh! que se vão emfim as estrellas!..
'Vem o dia... o ceo é azul e formoso: mas a vista fatiga-se de olhar para elle.
'Oh! o ceo é azul como os teus olhos, Georgina...
'Mas a terra é verde: e a vista repousa-se n'ella, e não se cança na variedade infinita de seus matizes tam suaves.
'O mar é verde e fluctuante... Mas oh! esse é triste como a terra é alegre.
'A vida compõe-se de alegrias e tristezas...
'O verde é triste e alegre como as felicidades da vida.
'Joanninha, Joanninha, porque tens tu os olhos verdes?..'
Ja se vê que o nosso doutor de bivac, o soldado que lhe chamou maluco ao pensador de taes extravagancias, tinha razão e sabía o que dizia.
Infelizmente não se formulavam em palavras estes pensamentos poeticos tam sublimes. Por um processo milagroso de photographia mental, apenas se pôde obter o fragmento que deixo transcripto.
Que honra e glória para a eschola romantica se podessemos ter a collecção completa!
Fazia-se-lhe um prefacio incisivo, palpitante, britante....
Punha-se-lhe um titulo vaporoso, phosphorescente... por exemplo: -- Echos surdos do coração -- ou -- Reflexos d'alma -- ou -- Hymnos invisiveis -- ou -- Pesadellos poeticos -- ou qualquer outro d'este genero, que se não soubesse bem o que era nem tivesse senso commum.
E que viesse ca algum menestrel de frak e chapeu redondo, algum trovador renascença de collete á Joinville, luctar com o meu Carlos em pontos de romantismo vago, descabellado, vaporoso, e nebuloso!
Se algum d'elles era capaz de escrever com menos logica, -- (com menos grammatica, sim) e com mais triumphante desprêzo das absurdas e escravizantes regras d'essa paleta d'essa eschola classica que não produziu nunca senão Homero e Virgilio, Sophocles e Horacio, Camões e o Tasso, Corneille e Racine, Pope e Moliere, e mais algumas duzias de outros nomes tam obscuros como estes?
CAPITULO XXIV
Novo Génesis. -- O Adam social muito differente do Adam natural. -- Carlos sempre um por seus bons instinctos, sempre outro por suas más reflexões. -- De como Joanninha recebeu o primo com os braços abertos, e do mais que entre elles se passou. -- Dor meia dor, meia prazer.
Formou Deus o homem, e o pôs n'um paraizo de delicias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs n'um inferno de tolices.
O homem -- não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, appertando e forçando em seus moldes de ferro aquella pasta de limo que no paraizo terreal se affeiçoára a imagem da divindade -- o homem, assim aleijado como nós o conhecêmos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na terra.
Rei nascido de todo o creado, perdeu a realeza; principe desherdado e proscripto, hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados; altivo ainda e suberbo com as recordações do passado, baixo vil e miseravel pela desgraça do presente.
D'estas duas tam oppostas actuações constantes, que ja per si sos o tornariam ridiculo, formou a sociedade, em sua van sabedoria, um systema chymerico, desarrazoado e impossivel, complicado de regras a qual mais desvairada, incontrado de repugnancias a qual mais opposta. E vazado este perfeito modêlo de sua arte pretenciosa, metteu dentro d'elle o homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e disparatado, doente, fraco, rachitico; collocou-o no meio do Eden phantastico de sua creação, -- verdadeiro inferno de tolices -- e disse-lhe, invertendo com blasphêmo arremêdo as palavras de Deus Creador:
'De nenhuma árvore da horta comendo comerás;
'Porêm da árvore da sciencia do bem e do mal, d'ella so comerás se quizeres viver.'
Indigestão de sciencia que não commutou seu mau estomago, presumpção e vaidade que d'ella se originaram -- tal foi o resultado d'aquele preceito a que o homem não desobedeceu como ao outro: tal é o seu estado habitual.
E quando as memorias da primeira existencia lhe fazem nascer o desejo de sahir d'esta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar á natureza e a Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem sôbre elle, e o prende, e o esmaga, e o contorce de novo, e o apperta no equuleo doloroso de suas fôrmas.
Ou hade morrer ou ficar monstruoso e aleijão.
Poucos filhos do Adam social tinham tantas reminiscencias da outra patria mais antiga, e tendiam tanto a aproximar-se do primitivo typo que sahíra das mãos do Eterno, forcejavam tanto por sacudir de si o pesado appêrto das constricções sociaes, e regenerar-se na sancta liberdade da natureza, como era o nosso Carlos.
Mas o melhor e o mais generoso dos homens segundo a sociedade, é ainda fraco, falso e acanhado.
Demais, cada tentativa nobre, cada aspiração elevada de sua alma lhe tinha custado duros castigos, severas e injustas condemnações d'esse grande juiz hypocrita, mentiroso e venal... o mundo.
Carlos estava quasi como os mais homens... ainda era bom e verdadeiro no primeiro impulso de sua natureza excepcional; mas a reflexão descia-o á vulgaridade da fraqueza, da hypocrisia, da mentira commum.
Dos melhores era, mas era homem.
Os seus pensamentos, as suas considerações em toda aquella noite, em todo o dia que a seguíra, na hora mesma em que ia incontrar-se com o objecto que mais lhe prendia agora o espírito, senão é que tambem o coração, todas participavam d'aquella fluctuação inquieta e doentia de seu ser d'homem social, em quem o tibio reflexo do homem natural apenas relampejava por acaso.
Dúvida, incerteza, vaidade, mentira deslocavam e annullavam a bella organização d'aquella alma.
Assim chegou aopé de Joanninha que o esperava de braços abertos, que o appertou n'elles, que o beijou sem nenhum falso recato de maliciosa modestia, e com o riso da alegria no coração e na bôcca lhe disse:
-- 'Ora pois, meu Carlos, sentemo-nos aqui bem junctos aopé um do outro e conversemos, que temos muito que fallar. Dá ca a tua mão. Aqui na minha... Está fria a tua mão hoje! E hontem tam quente estava!.. Oh! agora vai aquecendo... tanto tanto... é demais! Terás tu febre?'
-- 'Não tenho.'
-- 'Não tens, não: a cara é de saude. E como tu estás forte, grande, um homem como eu sempre imaginei que um homem devia ser, como sempre te via nos meus sonhos!.. Que é extranho isto, Carlos: quando sonhava comtigo, não te via como tu d'aqui foste, magro, triste e doente; via-te como vens agora, forte, são, alegre. Mas tu não estás alegre hoje, como hontem; não estás... Que tens tu?'
-- 'Nada, querida Joanninha, não tenho nada. Pensava...'
-- 'Em que pensas tu? dize-me.'
-- 'Pensava na differença dos nossos sonhos: que eu tambem sonhava comtigo.'
-- 'Sonhavas, Carlos! E como sonhavas tu? como me vias nos teus sonhos?'
-- 'Tudo pelo contrario do que tu. Via-te aquella Joanninha piquena, desinquieta, travêssa, correndo por essas terras, saltando essas vallas, trepando a essas árvores... aquella Joanninha com quem eu andava ao collo, que trazia ás cavalleiras, que me fazia ser tam doido e tam criança como ella, apezar de eu ter quinze annos mais. Via-te alegre, cantando...'
-- 'Sonhos de homem! Creiam n'elles! Eu que nunca mais ri nem brinquei desde o dia que tu partiste... E oh que dia, Carlos!.. E os que vieram depois! Não houve nunca mais um so dia de alegria n'ésta casa. Oh!.. deixa-me te dizer: Fr. Diniz... Sabes que não gósto d'elle?'
-- 'Não gostas?'
-- 'Nada: tenho-lhe aversão. E Deus me perdoe! parece-me que é injusta a minha antipathia.'
-- 'Porquê?'
-- 'Porque elle é teu amigo devéras. Um pae, Carlos, um pae não tem maior ternura e desvellos por seu filho, do que elle tem por ti.'
-- 'Deus lhe perdoe!'
-- 'Deus lhe perdoe a quem...e que lhe hade perdoar? O amor que te tem?'
-- 'Não, mas...'
-- 'Bem sei o que queres dizer: e tens razão.'
-- 'Tenho razão!'
-- 'Tens: o que elle bem precisa que Deus lhe perdoe é um grande peccado.'
-- 'Que dizes tu, Joanna! E como sabes?'
-- 'Sei, sei tudo.'
-- 'Tu!'
-- 'Eu. Sei que foi elle quem fez cegar minha avó... a nossa boa, a nossa sancta avó, Carlos!.. quem a cegou á fôrça de lagrymas que lhe fez chorar áquelles pobres olhos que, de puro cançados, se apagaram para sempre... Minha ricca avó! -- E porquê, meus Deus, porquê!'
-- 'Porquê?'
-- 'Por amor de ti, por escrupulos que lhe metteu na cabeça de tu seres mau christão, inimigo de Deus, que te não podias salvar... tu meu Carlos! Vê que cegueira a do triste frade.'
-- 'Bem triste!'
-- 'Mas olha que o diz de boa-fé e pelo muito amor que te tem... que é um amor que eu não intendo: e o mesmo é com minha avó, que treme deante d'elle. E mais elle estima-a, estou certa que dava a vida por ella... e por nós todos... por mim não tanto, mas por ti e por ella, dava decerto. Mas o seu amor é dos que rallam, que, apoquentam... quasi que estou em dizer que matam.'
-- 'Matam, matam!'
-- 'Nossa avó é elle que a mata decerto. Sempre a metter-lhe medos, sempre escrupulos! O seu Deus d'elle é um Deus de terrores, de vinganças, de castigos, e sem nenhuma misericordia. Oh! que homem! para elle tudo é peccado, maldade... Não o posso ver.'
Carlos respirava como desopprimido de um grande pêso, ouvindo as explicações da prima que bem claro lhe mostravam a sua perfeita ignorancia dos fataes segredos da familia.
-- 'E comtigo' disse elle ja n'outra voz mais desaffogada 'comtigo,
Joanninha, como se avêm elle, como te tracta?'
-- 'Commigo não se mette, e rara vez me falla. Mas oh, se elle soubesse que eu estava aqui comtigo, sancto Deus! o que ouviria a pobre da minha avó! Inda bem que hoje não é sexta-feira, senão não vinha eu ca.'
-- 'Porquê? Ainda vem todas as sexta-feiras?'
-- 'Sempre o mesmo. Ámanhan ca o temos por peccado, que é sexta-feira.'
-- 'Não te vejo então ámanhan aqui?'
-- 'Não decerto, aqui. Mas vamos, que a isso é que eu venho ca hoje, para te fallar n'isso... e para te ver, para fallar comtigo, para estar com o meu Carlos... e ao mesmo tempo tambem para ajustarmos como isto hade ser. Quando has-de tu ir ver a avó?.. a nossa mãe; que ella é nossa mãe, Carlos, não conhecémos nunca outra, nem eu nem tu. Quando lhe heide eu dizer que estás aqui? A pobre velhinha está tam doente! Ha quinze dias que se não levanta da cama.'
-- 'Coitada da minha pobre mãe!.. Oh! se não fosse!.. Deixa estar, Joanninha; um dia será. Por agora, não póde ser: bem vês. Como heide eu atravessar as sentinellas dos realistas, ir a um pôsto inimigo? -- A minha vida... isso pouco importa, mas a minha honra ficava em perigo: por todos os modos a perdia, e talvez...'
-- 'Não senhor, Sr. Carlos, essa desculpa não basta. Vai n'um anno que aqui temos a guerra á porta de casa, e ja sabemos como isso é e como as coisas se fazem. O commandante do nosso pôsto é um homem de bem, um cavalheiro perfeito. Em lhe eu dizendo quem tu es e a que ca vens... elle sabe o estado da minha avó, e tem-lhe muita amizade, da-nos decerto licença para tu vires em toda a segurança. Pensas que elle não sabe que estou comtigo aqui? Pois disse-lh'o eu; só lhe não expliquei quem tu eras; disse-lhe que eras um parente nosso que nos trazia notícias de outros, e que precisava fallar-te. Não pôs dificuldade alguma: é uma pessoa excellente, bom, bom devéras.'
-- 'É môço o teu commandante?'
-- 'Môço elle? coitado! Tem bons cinquenta annos, e creio que outros tantos filhos. Mas por que perguntas tu isso? E arqueaste as sobrancelhas com aquelle teu ar de antes quando te zangavas! Porque foi isso, Carlos?'
-- 'Nada, criança, foi uma pergunta á toa.'
-- 'Pois será; mas não me franzas nunca mais a testa assim, que te pareces todo... é que nunca vi tal parecença...'
-- 'Com quem?'
-- 'Com Fr. Diniz.'
-- 'Eu com elle!'
-- 'Tal e qual quando fazes essa cara. Olha: ahi estás tu na mesma. Vamos! ria-se e esteja contente se se quer parecer commigo, que todos dizem que nos parecemos tanto.'
-- 'Querida innocente!'
E beijou-lhe a mão que tinha appertada na sua, beijou-lh'a uma e muitas vezes com um sentimento de ternura misturado de não sei que vaga compaixão, vindo de lá de dentro d'alma com não sei que dor, meia dor meia prazer, que entre ambos se communicou e a ambos humedeceu os olhos.
CAPITULO XXV
O excesso da felicidade que aterra e confunde tambem. -- Pasmosa contradicção da nossa natureza. -- De como os olhos verdes de Joanninha se inturvaram e perderam todo o brilho. -- Que o coração da mulher que ama, sempre adivinha certo.
Carlos tinha a mão de Joanninha appertada na sua; e os olhos humidos de lagrymas cravados nos olhos d'ella, de cujo verde transparente e diaphano sahiam raios de ineffavel ternura.
Dizer tudo o que elle sentia é impossivel: tam incontrados lhe andavam os pensamentos, em tam confuso tumulto se lhe alvorotavam todos os sentidos.
Por muito tempo não proferiram palavra, nem um nem outro; mas fallaram assim longos discursos.
Emfim, Joanninha voltou á sua primeira insistencia e disse para o primo:
-- 'Olha, Carlos, ámanhan é sexta-feira, ja te disse, vem Fr. Diniz: quando haja a menor difficuldade do commandante, a elle não lhe recusa nada...'
-- 'Por quanto ha no ceo, Joanninha, pela tua vida, pela de nossa avó, nem uma palavra ao frade da minha estada aqui! A elle, oh! a elle jurei eu não tornar a ver. E se minha avó...'
-- 'Basta: não lhe direi nada. Mas á nossa avó quando lh'o heide dizer, e quando hasde tu ir ve-la?'
-- 'Porora não: preciso licença de Lisboa, ou do quartel-general quando menos, para fazer uma coisa que todas as leis da guerra prohibem, que nas actuaes circumstancias e em similhante guerra ainda é mais defesa. E sem isso -- tu bem sabes que as minhas resoluções não se mudam -- sem isso não o faço. Em todo o caso, que Fr. Diniz nem sonhe!..'
-- 'E quanto tempo, quantos dias se hãode passar?'
-- 'Eu sei? oito, quinze dias talvez, talvez mais.'
-- 'E a minha pobre avó, coitadinha! a morrer de saudades...'
-- 'Consola-a tu, Joanninha: dize-lhe que tiveste novas minhas, que estou bom, que me não falta nada, que tenho esperanças de vos ver muito cedo.'
-- 'E eu... eu posso, eu heide ver-te todos os dias: não, Carlos?'
-- 'Ámanhan é sexta-feira...'
-- 'Ámanhan é o dia negro... nem eu queria: ámanhan não póde ser, bem sei. Mas, tirado ámanhan, meu Carlos, oh! todos os dias!'
-- 'Sim, querido anjo, sim.'
-- 'Promettes?'
-- 'Juro-t'o.'
-- 'Succeda o que succeder?'
-- 'Succeda o que... So ha uma coisa que... Mas essa não... não é possivel.'
-- 'O que é, Carlos? que póde haver, que póde succeder que te impeça de?..'
Carlos estremeceu... hesitou, corou, fez-se pallido... quiz dizer-lhe a verdade e não ousou...
Porquê?.. E que verdade era essa? Não a direi eu, ja que elle a não disse: fiel e discreto historiador, imitarei a discrição do meu heroe.
Pois era discrição a d'elle?
Não... em verdade, era outra coisa.
Era um pensamento reservado?
Não.
Era tenção má, ingano premeditado, era?..
Não, tambem não.
O que era pois?
Era a dúvida, era a fraqueza, era a vaidade, a mentira congenial e obrigada, a necessaria falsidade do homem social.
Carlos mentiu e disse:
-- 'Só se m'o prohibirem expressamente... os meus chefes.'
Mas não era isso o que elle receiava; não era esse aquelle motivo unico e superior que elle temia podesse vir um dia derepente cortar as doces relações de convivencia a que tam prestes se habituára, que ja lhe pareciam parte necessaria, indispensavel da sua vida. Não era, não; e Carlos tinha mentido...
Joanninha olhou para elle fixa... Carlos corou de novo. Ella fez-se pallida... d'ahi corou tambem.
-- 'Carlos, tu não es capaz de mentir...'
-- 'Joanninha!'
-- 'Tu es o meu Carlos... tu queres-me como me querias d'antes...'
-- 'Sou... oh! sou. E amo-te...'
-- 'Como d'antes?'
-- 'Mais.'
-- 'Pois olha, Carlos: eu nunca amei, nunca heide amar a nenhum homem senão a ti.'
-- 'Joanna!'
-- 'Carlos!'
Iam a cahir nos braços um do outro... A singela confissão da innocencia ia ser acceita por quem e como, sancto Deus! Aquella palavra de oiro, aquella doce palavra que tanto custa a pronunciar á mulher menos arteira; que adivinhada, sabida, ouvida ha muito pelo coração, ditta mil vezes com os olhos, nenhum homem descança nem se tem por feliz, por certo de sua felicidade, em quanto a não ouve proferir pelos labios -- essa palavra celeste que explica o passado, que responde do futuro, que é a última e irrevocavel sentença de um longo pleito de anciedades, de incertezas e de sustos -- essa final e fatal palavra amo-te, Joanninha a pronunciára tam naturalmente, tam sincera, tam sem difficuldades nem hesitações, como se aquelle fosse -- e era decerto -- como se aquelle tivesse sido sempre o pensamento unico, a idea constante e habitual de sua vida.
O excesso da felicidade aterra e confunde tambem. Um momento antes, Carlos dera a sua vida por ouvir aquella palavra... um momento depois -- oh pasmosa contradicção de nossa dupplice natureza! um momento depois dera a vida pela não ter ouvido. No primeiro instante ia lançar-se nos braços da innocente que lh'os abria n'um sancto extasi do mais apaixonado amor; no segundo, tremeu e teve horror da sua felicidade.
-- 'Joanna' exclamou elle 'Joanna, querida, sabes tu se eu mereço... sabes tu se deves?..'
-- 'Sei. Desde que me intendo, não pensei n'outra coisa; desde que d'aqui foste, comecei a intender o que pensava... disse-o a minha avó, e ella...'
-- 'E ella?..'
-- 'Ella abençoou-me, chamou-me a sua querida filha, abraçou-me, beijou-me, e disse-me que aquella era a primeira hora de felicidade e de alegria que ha muitos annos tinha tido.'
Carlos não respondeu nada e olhou para Joanninha com uma indicivel expressão de affecto e de tristeza. Os raios de alegria que resplandeciam n'aquelle semblante -- agora bello de toda a belleza com que um verdadeiro amor illumina as mais desgraciosas feições -- os raios d'essa alegria começaram a amortecer, a apagar-se. A lucida transparencia d'aquelles olhos verdes turvou-se: nem a clara luz da agua-marinha, nem o brilho fundo da esmeralda resplandecia ja n'elles; tinham o lustro baço e morto, o polido mate e silicioso de uma d'essas pedras sem agua nem brilho que a arte antiga ingastava nos collares de suas estátuas.
-- 'Adeus Joanna!' disse Carlos perturbado e confuso.
-- 'Adeus, Carlos!' respondeu ella machinalmente.
-- 'Até depois de ámanhan, Joanna.'
-- 'Pois sim.'
-- 'Depois de ámanhan te direi...'
-- 'Não digas.'
-- 'Porquê?'
-- 'Porque é excusado: ja sei tudo.'
-- 'Sabes!'
-- 'Sei.'
-- 'O quê?'
-- 'O que tu não tens ânimo para me dizer, Carlos; mas que o meu coração adivinhou. Tu não me amas, Carlos.'
-- 'Não te amo! eu!.. Sancto Deus! eu não a amo...'
-- 'Não. Tu amas outra mulher.'
-- 'Eu! Joanna, oh! se tu soubesses...'
-- 'Sei tudo.'
-- 'Não sabes.'
-- 'Sei: amas outra mulher, outra mulher que te ama, que tu não pódes, que tu não deves abandonar, e que eu...'
-- 'Tu?'
-- 'Eu sei que é bella, prendada, cheia de graças e de incantos, porque... porque tu, meu Carlos, porque o teu amor não era para se dar por menos.'
-- 'Joanna, Joanninha!'
-- 'Não digas nada, não me digas nada hoje... hoje sobretudo, não me digas nada. Ámanhan...'
-- 'Ámanhan é sexta-feira.'
-- 'Inda bem! terei mais tempo para reflectir, para considerar antes de tornar a ver-te. Adeus Carlos!'
-- 'Uma palavra so, Joanna. Cuidas que sou capaz de te inganar?'
-- 'Não; estou certa que não.'
-- 'Até ámanhan... até depois de ámanhan.'
-- 'Adeus!'
Abraçaram-se, e d'esta vez froixamente; beijaram-se de um osculo timido e recatado... os beiços de ambos estavam frios, as mãos trémulas; e o coração comprimido batia, batia-lhes forte que se ouvia.
Retirou-se cadaum por seu lado. A noite estava pura e serena como na vespera, as estrellas luziam no ceo azul com o mesmo brilho; o silencio, a majestade, a belleza toda da natureza era a mesma... so elles eram outros... outros, tam outros e differentes do que foram!
Tinham-se dado cuidadosamente as providencias; ambos chegaram, sem nenhum accidente, ao seu destino.
CAPITULO XXVI
Modo de ler os auctores antigos, e os modernos tambem. -- Horacio na sacra-via. -- Duarte Nunes iconoclasta da nossa historia. -- A policia e os barcos de vapor. -- Os vandalos do feliz systema que nos rege. -- Shakspeare lido em Inglaterra a um bom fogo, com um copo de old-sack sôbre a banca. -- Sir John Falstaff se foi maior homem que Sancho-Pansa? -- Grande e importante descuberta archeologica sôbre San'Thiago, San'Jorge e Sir John Falstaff. -- Próva-se a vinda d'este último a Portugal. -- O enthusiasta britannico no tumulo de Heloisa e Abeillard no Pere-la-Chaise. -- Bentham e Camões. -- Chega o auctor á sua janella, e pasmosa miragem poetica produzida por umas oitavas dos Lusiadas. -- De como emfim proseguem éstas viagens para Santarem, e que feito será de Joanninha.
Se eu for algum dia a Roma, heide entrar na cidade eterna com o meu Tito-Livio e o meu Tacito nas algibeiras do meu paletó de viagem. Alli, sentado n'aquellas ruinas immortaes, sei que heide intender melhor a sua história, que o texto dos grandes escriptores se me hade illustrar com os monumentos d'arte que os viram escrever, e que uns recordam, outros presenciaram os feitos memoraveis, o progresso e a decadencia d'aquella civilização pasmosa.
E Juvenal e Horacio? o meu Horacio, o meu velho e fiel amigo Horacio!.. Deve ser um prazer regio ir lendo pela sacra-via fóra aquella deliciosa satyra, creio que a nona do L. I.,
Ibam forte sacra via, sicut meus est mos, Nescio quid meditans nugarum...
Deve ser maior prazer ainda, muito maior do que beijar o pé ao papa.
Parece-me a mim; mas como eu nunca fui a Roma...
E não é preciso. Pegue qualquer na bella chronica d'elrei D. Fernando, a que Duarte Nunes menos estragou...
O Duarte Nunes foi um reformador iconoclasta das nossas chronicas antigas, truncou todas as imagens, raspou toda a poesia d'aquellas venerandas e deliciosas sagas portuguezas... Em ponto historico pouco mais eram do que sagas, verdade seja, mas como taes, lindas. E o Duarte Nunes, que era um pobre grammaticão sem gôsto nem graça, foi-se ás filagranas e arrendados de finissimo lavor gothico d'aquelles monumentos, quebrou-lh'os; ficaram so os traços historicos que eram muito pouca e muito incerta coisa; e cuidou que tinha arranjado uma história, tendo apenas destruido um poema. Ficámos sem Nibelungen, podendo-o ter, e não obtivemos história porque se não podia obter assim.
Pois digo: pegue qualquer na bella chronica d'elrei D. Fernando, obedeça á lei concorrendo com o seu cruzado-novo para o augmento e glória da benemerita companhia que tem o exclusivo d'esses caranguejos de vapor que andam e desandam no rio, entre n'um dos referidos caranguejos, em que, além da porcaria e mau-cheiro, não ha perigo nenhum senão o de rebentar toda aquella camara-optica que anda por arames, e que em qualquer paiz civilizado onde a policia fizesse alguma coisa mais do que imaginar conspirações, ha muito estaria condemnada a ir alli caranguejar para as Lamas á sua vontade. Mas emfim ca não ha d'outros nem haverá tam cedo, graças ao muito que agora, diz que, se cuida nos interêsses materiaes do paiz: e portanto tome o seu logar, passe o mesmo que eu passei; chegue-me a Santarem, descanse e ponha-se-me a ler a chronica: verá se não é outra coisa, vera se deante d'aquellas preciosas reliquias, ainda mutiladas, deformadas como ellas estão por tantos e tam successivos barbaros, estragadas emfim pelos peiores e mais vandalos de todos os vandalos, as auctoridades administrativas e municipaes do feliz systema que nos rege, ainda assim mesmo não ve erguer-se deante de seus olhos os homens, as scenas dos tempos que foram; se não ouve fallar as pedras, bradar as inscripções, levantar-se as estátuas dos tumulos; e reviver-lhe a pintura toda, reverdecer-lhe toda a poesia d'aquellas edades maravilhosas!
Tenho-o experimentado muitas vezes: é infallivel. Nunca tinha intendido Shakspeare em quanto o não li em Warwick, aope do Avon, debaixo de um carvalho secular, á luz d'aquelle sol baço e branco do nublado ceo d'Albion... ou á noite com os pés no fender, a chaleira a ferver no fogão, e sôbre a banca o crystal antigo de um bom copo lapidado a luzir-me alambreado com os doces e perfumados resplendores do old sack; em quanto o fogão e os ponderosos castiçaes de cobre brunido projectam no antigo tecto almofadado, nos pardos compartimentos de carvalho que forram o apposento, aquellas fortes sombras vacillantes de que as velhas fazem visões e almas-do-outro-mundo, de que os poetas -- poetas como Shakspeare -- fazem sombras de Banco, bruxas de Mackbeth, e até a rotunda pansa e o arrastante espadagão do meu particular amigo Sir John Falstaff, o inventor das legítimas consequencias, o fundador da grande eschola dos restauradores caturras, dos poltrões pugnazes que salvam a patria de parolla e que ninguem os atura em tendo as costas quentes.
Oh Falstaff, Falstaff! eu não sei se tu es maior homem que Sancho Pança. Creio que não. Mas maior pansa tens, mais capacidade na pansa tens. Quando nossos avós renegaram de San' Thiago por castelhano perro, e invocaram a San' Jorge, tu vieste, ó Falstaff, em sua comitiva de Inglaterra e aqui tomaste assento, aqui ficaste, e foste o patriarcha d'essa immensa progenie de Falstaffs que por ahi anda.
Este importante ponto da nossa história, da demissão de San'Thiago e da vinda de San'Jorge de Inglaterra com Sir John Falstaff por seu homem-de-ferro -- ésta grande descoberta archeologica que tanta coisa moderna explica, como a fiz eu? Indo aos sitios mesmos, estudando alli os antigos exemplares: que é a minha doutrina.
Em tudo, para tudo é assim. Chegou um dia um inglez a Paris: um inglez legítimo e cru, virgem de toda a corrupção continental; calça de ganga, sapato grosso, cabello de cenoira, chapeo fillado na cova-do-ladrão. Era enthusiasta de Heloisa e Abeillard, foi-se ao Pére-la-Chaise, chegou ao tumulo dos dois amantes, tirou um livrinho da algibeira, pôs-se a ler aquellas cartas do Paracleto que tem indoidecido muito menos excentricas cabeças que a do meu inglez puro-sangue. Não é nada; excitou-se a tal ponto que entrou a correr como um perdido, bradando por um conego da sé que lhe acudisse, que se queria identificar com o seu modêlo, purificar a sua paixão, ser emfim um completo -- ou um incompleto Abeillard.
Eu não sou susceptivel de tammanho enthusiasmo, sôbretudo desde que dei a minha demissão de poeta e cahi na prosa. Mas aqui tem o que me succedeu o outro dia. Tinha estado ás voltas com o meu Bentham, que é um grande homem por fim de contas o tal quaker, e são grandes livros os que elle escreveu: cançou-me a cabeça, peguei no Camões e fui para a janella. As minhas janellas agora são as primeiras janellas de Lisboa, dão em cheio por todo esse Tejo. Era uma d'estas brilhantes manhans d'hynverno, como as não ha senão em Lisboa. Abri os Lusiadas á ventura, deparei com o canto IV e puz-me a ler aquellas bellissimas estancias
E ja no porto da inclita Ulyssea...
Pouco a pouco amotinou-se-me o sangue, senti baterem-me as arterias da fronte... as lettras fugiam-me do livro, levantei os olhos, dei com elles na pobre nau Vasco-da-Gama que ahi está em monumento-caricatura da nossa glória naval... E eu não vi nada d'isso, vi o Tejo, vi a bandeira portugueza fluctuando com a brisa da manhan, a tôrre de Belem ao longe... e sonhei, sonhei que era portuguez, que Portugal era outra vez Portugal.
Tal fôrça deu o prestigio da scena ás imagens que aquelles versos evocavam!
Senão quando, a nau que salva a uns escaleres que chegam... Era o ministro da marinha que ia a bórdo.
Fechei o livro, accendi o meu charuto, e fui tractar das minhas camelias.
Andei tres dias com odio á lettra-redonda.
Mas de tudo isto o que se tira, a que vem tudo isto para as minhas viagens ou para o episodio do valle de Santarem em que ha tantos capitulos nos temos demorado?
Vem e vem muito: vem para mostrar que a história, lida ou contada nos proprios sitios em que se passou, tem outra graça e outra fôrça; vem para te eu dar o motivo porque n'estas minhas viagens, leitor amigo, me fiquei parado n'aquelle valle a ouvir do meu companheiro de jornada, e a escrever para teu aproveitamento, a interessante história da menina dos rouxinoes, da menina dos olhos verdes, da nossa boa Joanninha.
Sim, aqui tenho estado extendido no chão, as mulinhas pastando na relva, os arrieiros fummando tranquillamente sentados, e as últimas horas de uma longa e calmosa tarde de julho a cahir e a refrescar com a aragem percursora da noite.
Mas basta de valle, que é tarde. Oh lá! venham as mulinhas e montemos. Picar para Santarem, que no inclyto alcaçar d'elrei D. Affonso-Henriques nos espera um bom jantar d'amigo -- e não é so a vacca e riso de Fr. Bartholomeu dos Martyres, mas um verdadeiro jantar d'amigo, muito menos austero e muito mais risonho.
-- 'Porquê? ja se acabou a historia de Carlos e de Joanninha?' diz talvez a amavel leitora.
-- 'Não, minha senhora,' responde o auctor mui lisongeado da pergunta: 'não, minha senhora, a historia não acabou, quasi se póde dizer que ainda ella agora começa; mas houve mutação de scena. Vamos a Santarem, que lá se passa o segundo acto.'
CAPITULO XXVII
Chegada a Santarem. -- Olivaes de Santarem. -- Fóra-de-Villa. -- Symetria que não é para os olhos. -- Modo de medir os versos da biblia. -- Architectura pedante do seculo XVII. -- Entrada na Alcáçova.
Eram as últimas horas do dia quando chegámos ao princípio da calçada que leva ao alto de Santarem. A pouca frequencia de povo, as hortas e pomares mal cultivados, as casas de campo arruinadas, tudo indicava as vizinhanças de uma grande povoação descahida e desamparada. O mais bello comtudo de seus ornatos e glórias suburbanas, ainda o possue a nobre villa, não lh'o destruiram de todo; são os seus olivaes. Os olivaes de Santarem cuja riqueza e formosura proverbial é uma das nossas crenças populares mais geraes e mais queridas!.. os olivaes de Santarem lá estão ainda. Reconheceu-os o meu coração e alegrou-se de os ver; saudei n'elles o symbolo patriarchal de nossa antiga existencia. N'aquelles troncos velhos e coroados de verdura, figurou-se-me ver, como nas selvas incantadas do Tasso, as venerandas imagens de nossos passados; e no murmurio das folhas que o vento agitava a espaços, ouvir o triste suspirar de seus lamentos pela vergonhosa degeneração dos netos...
Estragado como os outros, profanado como todos, o olival de Santarem é ainda um monumento.
Os povos do meio-dia, infelizmente, não professam com o mesmo respeito e austeridade aquella religião dos bosques, tam sagrada para as nações do norte. Os olivaes de Santarem são excepção: ha muito pouco entre nós o culto das árvores.
Subimos, a bom trotar das mulinhas, a impinada ladeira -- eu alvoraçado e impaciente por me achar face a face com aquella profusão de monumentos e de ruinas que a imaginação me tinha figurado e que ora temia, ora desejava comparar com a realidade.
Chegámos emfim ao alto; a majestosa entrada da grande villa está deante de mim. Não me inganou a imaginação... grandiosa e magnífica scena!
Fóra-de-villa é um vasto largo, irregular e caprichoso como um poema romantico; ao primeiro aspecto, áquella hora tardía e de pouca luz, é de um effeito admiravel e sublime. Palacios, conventos, egrejas occupam gravemente e tristemente os seus antigos logares, infileirados sem ordem aos lados d'aquella immensa praça, em que a vista dos olhos não acha symetria alguma; mas sente-se n'alma. É como o rhytmo e medição dos grandes versos biblicos que se não cadenceiam por pés nem por sylabas, mas cahem certos no espirito e na audição interior com uma regularidade admiravel.
E tudo deserto, tudo silencioso, mudo, morto! Cuida-se entrar na grande metropole de um povo extincto, de uma nação que foi poderosa e celebrada mas que desappareceu da face da terra e so deixou o monumento de suas construcções gigantescas.
Á esquerda o immenso convento do Sítio ou de Jesus, logo o das Donas, depois o de San'Domingos, célebre pelo jazigo do nosso Fausto portuguez -- seja ditto sem irreverencia á memoria de San'Frei Gil que, é verdade, veio a ser grande sancto, mas que primeiro foi grande bruxo. -- Defronte o antiquissimo mosteiro das Claras, e aopé as baixas arcadas gothicas de San'Francisco... de cujo último guardião, o austero Frei Diniz, tanta coisa te contei, amigo leitor, e tantas mais tenho ainda para te contar! Á direita o grandioso edificio philippino, perfeito exemplar da massissa e pedante architectura reaccionaria do seculo dezesette, o Collegio, typo largo e bello no seu genero, e quanto o seu genero póde ser, das construcções jesuiticas...
Não ha alma, não ha genio, não ha espirito n'aquellas massas pesadas, sem elegancia nem simplicidade; mas ha uma certa grandeza que impõe, uma solidez travada, uma symetria de calculo, umas proporções frias, mas bem assentadas e esquadriadas com methodo, que revelam o pensamento do seculo e do instituto que tanto o characterizou.
Não são as fortes crenças da meia-edade que se elevam no arco agudo da ogiva; não é a relaxação florída do seculo quinze e desesseis que ja vacilla entre o byzantino e o classico, entre o mystico ideal do christianismo que arrefece e os symbolos materiaes do paganismo que acorda; não, aqui a renascença triumphou, e depois de triumphar, degenerou. É a inquisição, são os Jesuitas, são os Philippes, é a reacção catholica edificando templos para que se creia e se ore, não porque se crê e se ora.
Até aqui o mosteiro e a cathedral, a ermida e o convento eram a expressão da idea popular, agora são a fórmula do pensamento governativo.
Alli estão -- olhae para elles -- defronte uns dos outros, os monumentos das duas religiões, a qual mais expressivo e loquaz, dizendo mais claro que os livros, que os escriptos, que as tradições, o pensamento das edades que os ergueram, e que alli os deixaram gravados sem saber que o faziam.
Mais embaixo, e no fundo d'esse declive, aquella massa negra é o resto ainda suberbo do ja immenso palacio dos condes de Unhão.
Rodeámos o largo e fomos entrar em Marvilla pelo lado do norte. Estamos dentro dos muros da antiga Santarem. Tam magnífica é a entrada, tam mesquinho é agora tudo ca dentro, a maior parte d'estas casas velhas sem serem antigas, d'estas ruas moirescas sem nada de arabe, sem o menor vestigio de sua origem mais que a estreiteza e pouco aceio.
As egrejas quasi todas porêm, as muralhas e os bastiões, algumas das portas, e poucas habitações particulares, conservam bastante da physionomia antiga e fazem esquecer a vulgaridade do resto.
Seguimos a triste e pobre rua Direita, centro do debil commercio que ainda aqui ha: poucas e mal providas logeas, quasi nenhum movimento. Ca está a curiosa tôrre das Cabaças, a velha egreja de San'João do Alporão. Ámanhan iremos ver tudo isso de nosso vagar. Agora vamos á Alcaçova!
Entrámos a porta da antiga cidadella. -- Que espantosa e desgraciosa confusão de intulhos, de pedras, de montes de terra e calissa! Não ha ruas, não ha caminhos, é um labyrinto de ruinas feias e torpes. O nosso destino, a casa do nosso amigo é aopé mesmo da famosa e historica egreja de Sancta Maria da Alcaçova. -- Hade custar a achar em tanta confusão.
CAPITULO XXVIII
Depois de muito procurar acha emfim o auctor a egreja de Sancta-Maria d'Alcaçova. -- Stylo da architectura nacional perdido. -- O terremoto de 1755, o marquez de Pombal e o chafariz do Passeio-publico de Lisboa. -- O chefe do partido progressista portuguez no alcassar de D. Affonso Henriques. -- Deliciosa vista dos arredores de Santarem observada de uma janella da Alcaçova, de manhan. -- É tomado o auctor de ideas vagas, poeticas, phantasticas como um sonho. -- Introducção do Fausto. -- Difficuldade de traduzir os versos germanicos nos nossos dialectos romanos.
Depois de muito procurar entre pardeiros e intulhos, achámo-la emfim a egreja de Sancta Maria d'Alcaçova. Achámos, não é exacto: ao menos eu, por mim, nunca a achava, nem queria accreditar que fôsse ella quando m'a mostraram. A real collegiada de Affonso Henriques, a quasi-cathedral da primeira villa do reino, um dos principaes, dos mais antigos, dos mais historicos templos de Portugal, isto?.. esse egrejorio insignificante de capuchos? mesquinha e ridicula massa d'alvenaria, sem nenhuma architectura, sem nenhum gôsto! risco, execução e trabalho de um mestre pedreiro d'aldeia e do seu apprendiz! É impossivel.
Mas era, era essa. A antiga capella-real, a veneranda egreja da Alcaçova foi passando por successivos reparos e transformações, até que chegou a ésta miseria.
Perverteu-se por tal arte o gôsto entre nós desde o meio do seculo passado especialmente, os estragos do terremoto grande quebraram por tal modo o fio de todas as tradições da architectura nacional, que na Europa, no mundo todo talvez se não ache um paiz onde, a par de tam bellos monumentos antigos como os nossos, se incontrem tam villans, tam ridiculas e absurdas construcções públicas como essas quasi todas que ha um seculo se fazem em Portugal.
Nos reparos e reconstrucções dos templos antigos é que este pessimo stylo, ésta ausencia de todo stylo, de toda a arte mais offende e escandaliza.
Olhem aquella impena classica posta de remate ao frontispicio todo renascença da Conceição-velha em Lisboa. Vejam a implastagem de geço com que estão mascarados os elegantes feixes de columnas gothicas da nossa sé.
Não se póde cahir mais baixo em architectura do que nós cahimos quando, depois que o marquez de Pombal nos traduziu, em vulgar e arrastada prosa, os rococós de Luiz XV, que no original, pelo menos, eram florídos, recortados, caprichosos e galantes como um madrigal, esse stylo bastardo, hybrido, degenerando progressivamente e tomando presumpções de classico, chegou nos nossos dias até ao chafariz do passeio-público!
Mas deixar tudo isso, e deixar a egreja da Alcaçova tambem; entremos nos palacios de D. Affonso Henriques.
Aqui, pegado com o pardeiro rebocado da capella hãode ser. Por onde se entra?
Por ésta portinha estreita e baixa, rasgada, bem se ve que ha poucos annos, no que parece muro de um quintal ou de um páteo.
É comeffeito aqui; apeemo'-nos.
Recebeu-nos com os braços abertos o nosso bom e sincero amigo, actual possuidor e habitante do regio alcassar, o Sr. M. P.
Notavel combinação do acaso! Que o illustre e venerado chefe do partido progressista em Portugal, que o homem de mais sinceras convicções democraticas, e que mais sinceramente as combina com o respeito e adhesão ás fórmas monarchicas, esse homem, vindo do Minho, do berço da dynastia e da nação, viesse fixar aqui a sua residencia no alcassar do nosso primeiro rei, conquistado pela sua espada n'um dos feitos mais insignes d'aquella era de prodigios!
Entrámos na pequena horta em fórma de claustro que une a antiga casa dos reis com a sua capella. Assim foi sem dùvida n'outro tempo: a parede oriental da egreja é o muro do quintal de um lado, mas as communicações foram vedadas provavelmente quando a coroa alienou o palacio e o separou assim perpetuamente do templo.
Plantado de larangeiras antigas, os muros forrados de limoeiros e parreiras, aquella pequena cêrca, apezar dos muitos canteiros e alegretes de alvenaria com que está moirescamente intulhada, é amena e graciosa á vista.
Appresentou-nos o nosso amigo a sua mulher, senhora de porte gentil e grave; beijámos seus lindos filhos, e fomos fazer as abluções indispensaveis depois de tal jornada para nos podermos sentar á mesa.
O palacio de Affonso Henriques está como a sua capella: nem o mais leve, nem o mais apagado vestigio da antiga origem. Sabe-se que é alli pela bem confrontada e inquestionavel topographia dos logares, por mais nada...
E que me importam a mim agora as antiguidades, as ruinas e as demolições, quando eu sinto demolir-me ca por dentro por uma fome exasperada e destruidora, uma fome vandalica insaciavel!
Vamos a jantar.
Comêmos, conversámos, tomámos chá, tornámos a conversar e tornámos a comer. Vieram visitas, fallou-se politica, fallou-se litteratura, fallou-se de Santarem sôbretudo, das suas ruinas, da sua grandeza antiga, da sua desgraça presente. Emfim, fomo'-nos deitar.
Nunca dormi tam regalado somno em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e appresurado dos sinos da Alcaçova. Saltei da cama, fui á janella, e dei com o mais bello, o mais grandioso, e ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda puz os meus olhos.
No fundo de um largo valle aprazivel e sereno, está o socegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre d'agua juncto ás margens, d'onde se debruçam verdes e frescos ainda os salgueiros que as ornam e defendem. D'alêm do rio, com os pés no pinque nateiro d'aquellas terras alluviaes, os riccos olivedos d'Alpiarça e Almeirim; depois a villa de D. Manuel e a sua charneca e as suas vinhas. D'aquem a immensa planicie ditta do Rocio, semeada de casas, de aldeias, de hortas, de grupos de árvores sylvestres, de pomares. Mais para a raiz do monte em cujo cimo estou, o picturesco bairro da Ribeira com as suas casas e as suas egrejas, tam graciosas vistas d'aqui, a sua cruz de Sancta Iria e as memorias romanescas do seu alfageme.
Com os olhos vagando por este quadro immenso e formosissimo, a imaginação tomava-me azas e fugia pelo vago infinito das regiões ideaes. Recordações de todos os tempos, pensamentos de todo o genero me affluiam ao espirito, e me tinham como n'um sonho em que as imagens mais discordantes e disparatadas se succedem umas ás outras.
Mas eram todas melancholicas, todas de saudade, nenhuma de esperança!..
Lembraram-me aquelles versos de Goethe, aquelles sublimes e inimitaveis versos da introducção do Fausto:
Resurgis outra vez, vagas figuras,Vacillantes imagens que á turbadaVista accudieis d'antes. E heide agoraRetter-vos firme? Sinto eu aindaO coração propenso a illusões d'essas?E appertais tanto!... Pois embora! seja:Dominae, ja que em nevoa e vapor leveEmtôrno a mim surgis. Sinto o meu seioJuvenilmente trépido agitar-seCo'a maga exhalação que vos circunda.Trazeis-me a imagem de ditosos dias,E d'ahi se ergue muita sombra amada:Como um velho cantar meio-esquecido,Véem os primeiros simplices amoresE a amizade com elles. ReverdeceA mágoa, lamentando o errado cursoDos labyrintos da perdida vida;E me está nomeando os que trahidosEm horas bellas por fallaz venturaAntes de mim na estrada se sumiram.
Não me atrevo a pôr aqui o resto da minha infeliz traducção: fiel é ella, mas não tem outro merito. Quem póde traduzir taes versos, quem de uma lingua tam vasta e livre hade passá-los para os nossos appertados e severos dialectos romanos?[1]
CAPITULO XXIX
Doçuras da vida. -- Imaginação e sentimento. -- Poetas que morreram moços e poetas que morreram velhos. -- Como são escriptas éstas viagens. -- Livro de pedra. Criança que brinca com elle. -- Ruinas e reparações. -- Idea fixa do A. em coisas d'arte e litterarias. -- Sancta Iria ou Irene, e Santarem. -- Romance de Sancta Iria. -- Quantas sanctas ha em Portugal d'este nome?
Este sonhar acordado, este scismar poetico deante dos sublimes spectaculos da natureza, é dos prazeres grandes que Deus concedeu ás almas de certa têmpera. Doce é gosar assim... mas em que doçuras da vida não predomina sempre o acido poderoso que stimula! Tirae-lh'o, fica a insipidez; deixae-lh'o, ulcéra porfim os orgams: o gôso é mais vivo porque a acção do stímulo é mais sentida... mas a ulceração cresce, o coração está em carne-viva... agora o prazer é martyrio.
Infeliz do que chegou a esse estado!
Bemaventurado o que póde graduar, como Goethe, a dóze d'amphião que quer tomar, que poupa as sensações e a vida, e economiza as potencias de sua alma! N'esses porêm é a imaginação que domina, não o sentimento. Byron, Schiller, Camões, o Tasso morreram moços; matou-os o coração. Homero e Goethe, Sophocles e Voltaire acabaram de velhos: sustinha-os a imaginação, que não despende vida porque não gasta sensibilidade.
Imaginar é sonhar, dorme e repousa a vida no entretanto; sentir é viver activamente, cansa-a e consomme-a.
Isto é o que eu pensava -- porque não pensava em nada, divagava -- em quanto aquelles versos do Fausto me estavam na memoria, e aquella saudosa vista do Tejo e das suas margens deante dos olhos.
Isto pensava, isto escrevo, isto tinha n'alma, isto vai no papel: que d'outro modo não sei escrever.
Muito me pêza, leitor amigo, se outra coisa esperavas das minhas Viagens, se te falto, sem o querer, a promessas que julgaste ver n'esse titulo, mas que eu não fiz decerto. Querias talvez que te contasse, marco a marco, as leguas da estrada? palmo a palmo, as alturas e larguras dos edificios? algarismo por algarismo, as datas de sua fundação? que te resummisse a historia de cada pedra, de cada ruina?..
Vai-te ao padre Vasconcellos; e quanto ha de Santarem, peta e verdade, ahi o acharás em amplo folio e gorda lettra: eu não sei compor d'esses livros, e quando soubesse, tenho mais que fazer.
So tenho pena de uma coisa, é de ser tam desestrado com o lapis na mão; porque em dois traços d'elle te dizia muito mais e melhor do que em tanta palavra que porfim tam pouco diz e tam mal pinta.
Santarem é um livro de pedra em que a mais interessante e mais poetica parte das nossas chronicas está escripta. Ricco de illuminuras, de recortados, de florões, de imagens, de arabescos e arrendados primorosos, o livro era o mais bello e o mais precioso de Portugal. Inquadernado em esmalte de verde e prata pelo Tejo e por suas ribeiras, fechado a broches de bronze por suas fortes muralhas gothicas, o magnífico livro devia durar sempre em quanto a mão do Creador se não extendesse para apagar as memorias da creatura.
Mas ésta Ninive não foi destruida, ésta Pompeia não foi submergida por nenhuma catastrophe grandiosa. O povo de cuja história ella é o livro, ainda existe; mas esse povo cahiu em infancia, deram-lhe o livro para brincar, rasgou-o, mutilou-o, arrancou-lhe folha a folha, e fez papagaios e bonecas, fez carapuços com ellas.
Não se descreve por outro modo o que ésta gente chamada govêrno, chamada administração, está fazendo e deixando fazer ha mais de seculo em Santarem.
As ruínas do tempo são tristes mas bellas, as que as revoluções trazem, ficam marcadas com o cunho solemne da historia. Mas as brutas degradações e as mais brutas reparações da ignorancia, os mesquinhos concertos da arte parasyta, esses profanam, tiram todo o prestigio.
Tal é a geral impressão que me faz ésta terra. Almocemos, que ja oiço chamar para isso, e iremos ver depois se me inganei.
Ao almôço a conversação veio naturalmente a cahir no seu objecto mais óbvio, Santarem. D. Affonso Henriques e os seus bravos, San'Frei Gil e o Sancto-milagre, o Alfageme e o Condestavel, el-rei D. Fernando e a rainha D. Leonor, Camões desterrado aqui, Frei Luiz de Sousa aqui nascido, Pedralvares Cabral, os Docems, quasi todas as grandes figuras da nossa historia passaram em revista. Porfim veio Sancta Iria tambem, a madrinha e padroeira d'esta terra, cujo nome aqui fez esquecer o de romanos e celtas.
Quem tem uma idea fixa, em tudo a mette. A minha idea fixa em coisas de arte e litterarias da nossa peninsula são as xacaras e romances populares. Ha um de Sancta Iria.
Porque é a Sancta Iria da trova popular tam differente da Sancta Iria das legendas monasticas?
A trova é ésta, segundo agora a rectifiquei e appurei pela collação de muitas e várias versões provinciaes com a ribatejana ou bordalenga, que em geral é a que mais se deve seguir.
Stando eu á janella co'a minha almofada,Minha agulha d'ouro, meu dedal de prata;Passa um cavalleiro, pedia pousada;Meu pae lh'a negou: quanto me custava!-- 'Ja vem vindo a noite, é tam so a estrada...Senhor pae, não digam tal da nossa casa,Que a um cavalleiro que pede pousadaSe fecha ésta porta á noite cerrada.'Roguei e pedi -- muito lhe pezava!Mas eu tanto fiz que porfim deixava.Fui-lhe abrir a porta, mui contente entrava;Ao lar o levei, logo se assentava.Ás mãos lhe dei agua, elle se lavava;Puz-lhe uma toalha, n'ella me limpava.Poucas as pallavras, que mal me fallava,Mas eu bem sentia que elle me mirava.Fui a erguer os olhos, mal os levantava,Os seus lindos olhos na terra os pregava.Fui-lhe pôr a cea, muito bem ceava;A cama lhe fiz, n'ella se deitava.Dei-lhe as boas noites, não me replicava:Tam má cortezia nunca a vi usada!Lá por meia noite que me eu suffocava,Sinto que me levam co'a bôcca tapada...Levam-me a cavallo, levam-me abraçada,Correndo, correndo sempre á desfilada.Sem abrir os olhos, vi quem me roubava;Callei-me e chorei -- elle não fallava.D'alli muito longe que me perguntavaEu na minha terra como me chamava.-- 'Chamavam-me Iria, Iria a fidalga;Por aqui agora Iria, a cansada.'[3]Andando, andando, toda a noite andava;Lá por madrugada que me attentava...Horas esquecidas commigo luctava;Nem fôrça nem rogos, tudo lhe mancava.Tirou do alfange... alli me matava,Abriu uma cova onde me interrava.No fim de sette annos passa o cavalleiro,Uma linda ermida viu n'aquelle outeiro.-- 'Minha Sancta Iria, meu amor primeiro,Se me perdoares, serei teu romeiro.'-- 'Perdoar não te heide, ladrão carniceiro,Que me degollaste que nem um cordeiro.'
Ou houve duas sanctas d'este nome, ambas de aventurosa vida e que ambas deixassem longa e profunda memoria de sua belleza e martyrio -- o de que não tenho a menor idea -- ou nos escriptos dos frades ha muita fábula de sua unica invenção d'elles que o povo não quiz acreditar: alias é inexplicavel a singeleza d'esta tradição oral.
Tam simples, tam natural é a narração poetica do romance popular, quanto é complicada e cheia de maravilhas a que se auctoriza nas recordações ecclesiasticas.
O caso é grave, fique para novo capitulo.
CAPITULO XXX
Historia de Sancta Iria segundo os chronistas e segundo o romance popular.
A milagrosa Sancta Iria -- Sancta Irene -- que deu o seu nome a Santarem, donzella nobre, natural da antiga Nabancia[4], e freira no convento dupplex[5] benedictino que pastoreava o sancto abbade Celio, floreceu pelos meados do septimo seculo. Namorou-se d'ella extremosamente o joven Britaldo, filho do conde ou consul Castinaldo que governava aquellas terras, e não podendo conseguir nada de sua virtude, cahiu infêrmo de molestia que nenhum physico acertava a conhecer, quanto mais a curar.
É sabido que a mais sancta lhe não pêza de que estejam a morrer por ella; e, mais ou menos, sempre sympathisa com as victimas que faz.
Sancta Iria resolveu consolar o pobre Britaldo; e ja que mais não podia por sua muita virtude, quiz ver se lhe tirava aquella louca paixão e o convertia. Sahiu, uma bonita manhan, do seu convento -- que não guardavam ainda as freiras tam absoluta e estreita clausura -- e foi-se a casa do namorado Britaldo.
Consolou como mulher e ralhou como sancta, e porfim, impondo-lhe na cabeça as lindas e bemdittas mãos, n'um instante o sarou de todo achaque do corpo; e se lhe não curou o d'alma tambem, pelo menos lh'o adormentou, que parecia acabado.
Mas como o demo, em chegando a entrar n'um corpo humano, parece que não sai d'elle senão para se ir metter n'outro; tam depressa o inimigo deixou ao pobre Britaldo, como logo se foi incaixar em não menor personagem do que o monge Remigio, que era o mestre e director da bella Iria.
Arde o frade em concupiscencia, e não obtendo nada com rogos e lamentos, jurou vingar-se. Disfarçou porêm, fingiu-se emendado, e deu-lhe, quando ella menos cuidava, uma bebida de sua diabolica preparação, que apenas a sancta a havia tomado, lhe appareceram logo e continuaram a crescer todos os signaes da mais apparente maternidade.
Corre a fama do supposto estado da donzella, chovem as injúrias e os insultos dos que mais a tinham respeitado até então. E Britaldo, que se julga escarnecido pela hypocrisia d'aquella mulher artificiosa, em vez de a esquecer com desprêzo -- sente reviver-lhe, senão tam pura, muito mais ardente, toda a antiga paixão.
Tam mysterioso é o coração do homem! -- tam vil! dirão os asceticos -- tam inexplicavel! direi eu com os mais tolerantes.
Novas tentativas, promessas, ameaças do furioso amante... A sancta resiste a tudo, forte na sua virtude.
Costumava a devota donzella ir todas as noites a uma occulta lapa que jazia no fim da cêrca e juncto ao rio Nabão, para alli estar mais so com Deus, e desabafar com Elle á sua vontade. Soube-o Britaldo, espreitou a occasião e alli a fez apunhalar por um seu criado cujo nome a legenda nos conservou para maior testimunho de verdade: chamava-se Banam.
Banam! é um verdadeiro nome de mellodrama.
Morta a innocente, Banam despiu-lhe o hábito e lançou o corpo ao rio, que depressa a levou ás arrebatadas correntes do Zezere em que desagua; e logo este ao Tejo -- que defronte da antiga Scalabicastro lhe deu sepultura em suas louras areas, para maior glória da sancta e perpétua honra da nobillissima villa que hoje tem o seu nome.
Mas emquanto ia navegando o corpo da sancta, teve Celio, o abbade do convento, uma revelação que lhe descobriu a verdade e os milagres do caso; e communicando-a logo aos monges e ao povo de Nabancia, sahiu com todos de cruz alçada, e foi por esses campos da Golegan fóra, até chegar á Ribeira de Santarem. Ahi benzendo as aguas do rio, éstas se retiraram cortezes e deixaram ver o sepulchro que era de fino alabastro, obrado á maravilha pelas mãos dos anjos.
Chegaram aopé do tumulo, abriram-n'o, viram e tocaram o corpo da sancta, mas não o poderam tirar, por mais diligencias que fizeram. Conheceu-se que era milagre; e contentando-se de levar reliquias dos cabellos e da tunica, voltaram todos para a sua terra.
As aguas tornaram a junctar-se e a correr como d'antes, e nunca mais se abriram senão d'ahi a seis seculos e meio, quando a boa rainha sancta Isabel, mulher d'el-rei D. Diniz, tam fervorosas orações fez aopé do rio pedindo á sancta que lhe apparecesse, que o rio tornou a abrir-se como o mar Vermelho á voz de Moises, dizem os devotos chronistas, e patenteou o benditto sepulchro.
Entrou a rainha a pé inchuto pelo rio dentro, seguida de seu real espôso e de toda a sua côrte; mas por mais que rezasse ella, e que trabalhassem os outros com todas as fôrças humanas, não poderam abrir o tumulo; quebraram todas as ferramentas, era impossivel. Desinganado el-rei de que um podêr sobrehumano não permittia que elle se abrisse, mandou a toda a pressa levantar um padrão muito alto sôbre o mesmo tumulo, e tam alto que o rio na maior inchente o não podesse cubrir.
O rio esperou com toda a paciencia que os pedreiros acabassem, e quando viu que podia continuar a correr, deu aviso, retiraram-se todos, tornaram a junctar-se as aguas e o padrão ficou sobresahindo por cima d'ellas.
Passaram mais tres seculos e meio; e no anno de 1644 a camara de Santarem mandou refazer de cantaria lavrada o ditto marco ou pedestal que não era senão de alvenaria, e pôr-lhe em cima a imagem da sancta.
Ainda lá está, assás mal cuidado com tudo; lá o vi com estes olhos peccadores no corrente mez de julho de 1843. Mas, sem milagre nem orações, o rio tinha-se retirado, havia muito, para um cantinho do seu leito, e o padrão estava perfeitamente em sêcco, e em sêcco está todo o anno até começarem as cheias.
Tal é, em fidelissimo resummo, a historia da Sancta Iria dos livros.
A das cantigas é, como ja disse, muito outra e muito mais simples, conta-se em duas palavras. A sancta está em casa de seus paes; um cavalleiro desconhecido, a quem dão pousada uma noite, levanta-se por horas mortas, rouba a descuidada e innocente donzella, foge a todo o correr de seu cavallo, e chegado a um descampado d'alli muito longe, pretende fazer-lhe violencia... A sancta resiste, elle mata-a. D'alli a annos passa por ahi o indigno cavalleiro, ve uma linda ermida levantada no proprio sítio onde commetteu o crime, pergunta de que sancta é, dizem-lhe que é de Sancta Iria. Elle cai de joelhos a pedir perdão á sancta, que lhe lança em rosto o seu peccado e o amaldiçoa.
E acabou a historia.
Sería o povo que se esqueceu nas suas tradições, ou os frades que augmentaram nas suas escripturas? Pois a legenda monastica é realmente bella e cheia de poesia e romance, coisas que o povo não costuma desprezar.
É difficil de explicar-se este phenomeno, interessantissimo para qualquer observador não vulgar, que n'estas crenças do commum, n'estas antigualhas, desprezadas pela suberba philosophia dos nescios, quer estudar os homens e as nações e as edades onde elles mais sinceramente se mostram e se deixam conhecer.
A extrema simplicidade do romance ou xacara de Sancta Iria, o ser elle, d'entre todos os que andam na memoria do nosso povo, o mais geralmente sabido e mais uniformente repettido em todos os districtos do reino, e com poucas variantes nas palavras, nenhuma no contexto, me faz crer que ésta seja das mais antigas composições não so da nossa lingua, mas de toda a peninsula. A phrase tem pouco sabor antigo: este é um d'aquelles poemas quasi aborigines que a tradição tem vindo intregando, e ao mesmo tempo traduzindo, de paes a filhos insensivelmente; e tambem não é porcerto dos que desceram do palacio ás choupanas e fugiram da cidade para as aldeas, como em muitos outros se conhece: este visivelmente nasceu nos arraiaes, nos oragos dos campos, e por lá tem vivido até agora.
A fórma metrica da composição é a que a phrase didatica das Hispanhas chamou romance em endechas. Eu, adoptando para elle, mais que para a fórma ordinaria do metro octosyllabo, a theoria do ingenhoso philologo allemão, Deeping, tam benemerito da nossa litteratura peninsular, creio que estes são verdadeiros versos de dôze syllabas, e que as coplas não constam senão de dous versos cada uma, segundo a óbvia significação da palavra. O povo cantando não separa os hemistychios d'estes versos como fazem os que os escrevem: e ao contrário nos romances da medida mais commum, o canto popular reparte distinctamente cada membro de oito syllabas sôbre si.
Não sei se me ingano, mas desconfio que as quatro coplas últimas, em que muda completamente a rhyma, sejam additamento posterior feito á cantiga original. Todavia estes oito versos apparecem, com ligeiras variantes, em toda a parte.
CAPITULO XXXI
Quommodo sedet sola civitas. -- Santarem. -- Portugal em verso e Portugal em prosa. -- Exquisito lavor de umas portas e janellas de architectura mosarabe. -- Busto de D. Affonso Henriques. -- As salgadeiras de Affrica. -- Porta do Sol. -- Muralhas de Santarem. -- Voltemos á historia de Fr. Diniz e da menina dos olhos verdes.
Eram mais de dez horas da manhan quando sahimos a começar a longa viasacra de reliquias, templos e monumentos que são hoje toda Santarem.
A vida palpitante e actual acabou aqui inteiramente: hoje é um livro que so recorda o que foi. Entre a historia maravilhosa do passado que todas éstas pedras memoram, e as prophecias tremendas do futuro que parecem gravadas n'ellas em characteres mysteriosos, não ha mais nada: o presente não é, ou é como se não fosse: tam pequeno, tam mesquinho, tam insignificante, tam desproporcionado parece a tudo isto.
Dá vontade de intoar com o poeta inspirado de Jerusalem: 'Quommodo sedet sola civitas!' Portugal é, foi sempre uma nação de milagre, de poesia. Desfizeram o prestigio; veremos como elle vive em prosa. Morrer, não morre a terra, nem a familia, nem as raças: mas as nações deixam de existir. -- Pois embora, ja que assim o querem. A mim não me fica escrupulo.
Passámos a egreja da Alcaçova, que achámos ja fechada; e tomando sempre sôbre a esquerda, fomos pelo que hoje parece uma azinhaga de entre quintas, mas que visivelmente foi n'outras eras a rua mais fashionavel d'esta villa cortezan. Aqui estão quasi aopé da egreja umas portas e janellas do mais fino lavor e gôsto mosarabe que me lembra de ter visto.
E a proposito, porque se não hade adoptar na nossa peninsula ésta designação de mosarabe para characterizar e classificar o genero architectonico especial nosso, em que o severo pensamento christão da architectura da meia edade se sente relaxar pelo contacto e exemplo dos habitos sensuaes moirescos, e de sua luxuosa e redundante elegancia?
De que palacio incantado foram éstas portas tam primorosamente lavradas? Que bellezas se debruçaram d'essas arrendadas janellas para ver passar o cavalleiro escolhido do seu coração? São tam lindas, tam elegantes ainda éstas pedras desconjunctadas, e mal sustidas de um muro insosso e grosseiro que as facea, que naturalmente despertam a mais adormecida imaginação a quanto sonho de fadas e trovadores a poesia fez nascer dos mysterios da edade-média.
Pouco mais adeante está, em um mau nicho escalavrado e feio, um pretendido busto de D. Affonso Henriques, a que attribuem grande antiguidade. Não me fez esse effeito a mim.
Chegámos á porta do Sol; sentamo'-nos alli a gosar da majestosa vista. É majestosa mas triste. A ribanceira que d'alli corta abaixo, até ao rio, é arida e quasi calva: cobrem-n'a apenas, como a mal povoada nuca de um velho, alguns tufos de verdura cinzenta e grisalha de um arbusto rasteiro, meio frutex meio herbaceo que aqui chamam 'Salgadeira' e que a tradicção diz ter vindo de Affrica para segurar a terra n'estes taludes e precipicios. O aspecto e hábito da planta é realmente affricano e oriental, não tem nada de europeu. Mas ésta derradeira e occidental parte da nossa Hespanha é, geologicamente fallando, ja tam affrica, tam pouco europa, que não sería necessaria a transplantação talvez; e porventura ficou ésta memoria entre o povo do uso que os moiros faziam da planta para esse fim.
Ésta porta do sol dizem que é onde se faziam as execuções em tempos antigos. Foi bem escolhido o sítio; não o ha mais triste e melancholico. Aopé está um torreão quadrado da muralha que ahi fórma canto para seguir depois na direcção de sul a norte. D'este lado as fortificações e lanços de muro estão todas pouco estragadas; e do mirante a que subimos, póde-se formar perfeita idea do que era uma antiga cidade murada.
Sería aqui, dizia eu commigo, que o nosso Fr. Diniz de quem ja tenho saudades -- o velho guardião de San'Francisco veio chorar o seu ultimo threno sôbre as ruinas da antiga monarchia? Sería aqui n'este logar de desolação e melancholia que correram as suas derradeiras lagrymas! Elle que ja não chorava, acharia aqui quem desse aos seus olhos as fontes de agua que o coração lhe pedia para se desaffogar dos pezares que o rallavam na aridez e seccura de sua desconsolada velhice?
Passavam-me éstas ideas pelo pensamento quando o historiador que tantos capitulos nos retteve no vale, contando-nos os successos de Joanninha e da sua familia, nos disse:
'Sentemo-nos aqui na sombra que faz ésta muralha e acabemos a historia da menina dos rouxinoes. De tarde vamos á Ribeira saudar a memoria do Alfageme. Ámanhan de manhan está detalhado que iremos ver a Graça, o Sancto milagre, San' Domingos e San' Francisco. Concluamos hoje ésta historia.'
'Seja' respondemos nós.
Entraremos portanto em novo capitulo, leitor amigo; e agora não tenhas medo das minhas digressões fataes, nem das interrupções a que sou sujeito. Irá direita e corrente a historia da nossa Joanninha até que a terminemos... em bem ou em mal? D'antes um romance, um drama em que não morria ninguem era havido por semsabor; hoje ha um certo horror ao tragico, ao funesto que perfeitamente quadra ao seculo das commodidades materiaes em que vivemos.
Pois, amigo e benevolo leitor, eu nem em principios nem em fins tenho eschola a que esteja sujeito, e heide contar o caso como elle foi.
Escuta.
CAPITULO XXXII
Tornámos á historia de Joanninha. -- Preparativos de guerra. -- A morte. -- Carlos ferido e prisioneiro. -- O hospital. -- O infermeiro. -- Georgina.
'Escuta!' disse eu ao leitor benevolo no fim do último capítulo. Mas não basta que escute, é preciso que tenha a bondade de se recordar do que ouviu no capitulo XXV e da situação em que ahi deixámos os dous primos, Carlos e Joanninha.
N'este despropositado e inclassificavel livro das minhas Viagens, não é que se quebre, mas inreda-se o fio das historias e das observações por tal modo, que, bem o vejo e o sinto, so com muita paciencia se póde deslindar e seguir em tam imbaraçada meada.
Vamos pois com paciencia, caro leitor; farei por ser breve e ir direito quanto eu podér.
Lembra-te como n'uma noite pura, serena e estrellada, aquelles dous se despediram um do outro no meio do valle, como se despediram tristes, duvidosos, infelizes, e ja outros, tam outros do que d'antes foram.
N'essa mesma noite, a ordenada confusão de um grande movimento de guerra reinava nos postos dos constitucionaes. Á longa apathia de tantos mezes succedia uma inesperada actividade. Preparavam-se os sanguinolentos combates de Pernes e de Almoster, que não foram decisivos logo, mas que tanto appressaram o termo da contenda.
Carlos achou ordem de se appresentar no quartel-general, partiu immediatamente. O pensamento absorvido por ideas tam differentes, tam confuso, tam alheado de si mesmo, seguiu machinalmente o corpo. Foi, chegou, recebeu as instrucções que lhe deram, e voltou mais satisfeito, mais tranquillo.
Tractava-se de morrer. Não sabe o que é verdadeira angústia d'alma o que ainda não abençoou a morte que viu deante de si, o que a não invocou ainda como unico remedio de seu mal, ou, o que é mais desesperado, como unica sahida de suas fataes perplexidades.
Estes momentos são raros na vida, é certo; mas quando occorrem, não ha exaggeração nenhuma em dizer que antes, muito antes a morte do que elles.
Oh! e se a morte que se contempla é de honra e glória, se o enthusiasmo, tirando fortemente a corda dos nervos, os faz vibrar n'aquelles tons secretos e mysteriosos que arrebatam, e elevam o coração do homem á sublime abnegação de si, e de tudo o que é piqueno, baixo e vil na sua natureza -- oh então a morte parece um triumpho, uma bemaventurança porcerto!
Carlos esqueceu-se de tudo, menos da sua espada que affiou com escrupuloso cuidado, e das suas boas e seguras pistolas inglezas que limpou minuciosamente, carregou e escorvou com um verdadeiro amor de artista que se compraz no último acabamento de um trabalho predilecto.
O pouco da noite que lhe restava passou-se n'isto, a marcha começou antes do dia. E os primeiros raios do sol foram saudados pelo fuzilar das espingardas, e pelo trovejar dos canhões.
Combateu-se larga e incarniçadamente -- como entre irmãos que se odeiam de todo o odio que ja foi amor -- o mais cruel odio que tem a natureza!
O dia declinava ja quando n'um hospital em Santarem entravam muitas maccas de feridos, e entre elles, um todo crivado de ballas e cuberto de sangue que, assim pelos restos do uniforme como por certo ar bem conhecido -- e charecteristica então, se via claramente ser do exército constitucional.
Eram muitas e perigosas as feridas d'esse homem; estenderam-n'o n'uma especie de tarimba sôbre que havia alguma palha, e quando lhe chegou a sua vez foi examinado e pençado como os outros. Não dava signal de padecer, tinha os olhos fechados, o pulso forte mas não agitado de febre; não proferia uma syllaba, não soltava um ai, e prestava-se a tudo o que lhe diziam e faziam, menos a soltar da mão esquerda que apertava contra o peito o que quer que fosse que alli tinha seguro e que lhe pendia ao pescosso de uma estreita fitta preta.
Assim o deixaram largo tempo: elle adormeceu. Não sería largo, mas foi profundo o seu dormir. Quando acordou ja se não viu no vasto caravanseray d'aquelle confuso hospital, mas n'um pequeno quarto arejado, limpo, e quasi confortavel que em tudo parecia cella de convento, menos na boa cama em que jazia o doente, e na extremada elegancia do infermeiro que o velava.
O quarto era comeffeito uma cella do convento de San'Francisco em Santarem, o doente o nosso Carlos; e o infermeiro que o velava, uma bella mulher de estatura não acima de ordinaria mas nem uma linha menos, involvida nas amplissimas pregas de um longo roupão de seda d'aquella acertada côr que, em dialecto da rua Vivienne, se diz scabieuse; a cabeça toucada de finissima Bruxellas, com uns laços de preto e côr de granada que realçavam a transparencia das rendas, a infinita graça dos longos e ondados aneis louros do cabello, e a pureza symetrica de um rosto oval, classico, perfeito, sem grande mobilidade de expressão mas bello, bello, quanto póde ser bello um rosto em que pouco d'alma se reflecte, e em que a serena languidez de uns olhos azues entibía e modera a energia do sentimento que não é menos profundo talvez, mas certamente se expande menos.
De joelhos juncto ao leito de Carlos, com a mão direita d'elle nas suas, os olhos seccos mas fixos nas descahidas palpebras do soldado, aquella mulher estava alli como a estátua da dor e da anxiedade. A uma porta interior e que abria para uma especie de alcova obscura, em pé, os braços cruzados e mettidos nas mangas, o capuz na cabeça, estava um frade velho, alto mas curvado do pêso dos annos ou dos soffrimentos.
O frade contemplava o infêrmo e a infermeira, mas visivelmente não queria ser visto n'essa occupação, porque ao menor estremecimento do doente recuava apressado e como assustado para o interior da sua alcova.
Uma so vela de cera allumiava este quadro, accidentando-o de fortes sombras, e dando-lhe um tom de solemnidade verdadeiramente magico e sublime.
Carlos segurava ainda na esquerda com o mesmo affêrro o relicario ou talisman, o que quer que era que não queria desprender de seu coração. A bella infermeira beijava de vez em quando aquella mão tenaz que estremecia a cada beijo, por mais suave e mimoso que fosse o leve contacto d'esses labios delicados.
A outra mão estava nas mãos d'ella, mas era insensivel a tudo, essa.
O silencio era o do sepulchro: so se ouvia o respirar incerto e descompassado do infêrmo.
Derepente Carlos entreabriu as palpebras e exclamou em inglez: 'Oh Georgina, Georgina, I love you still.' -- (Georgina, Georgina, eu ainda te amo).
Duas lagrymas -- duas perolas, d'estas que se criam com tanta dor no coração e que ás vezes sahem com tanto prazer dos olhos -- romperam do celeste azul dos olhos da dama e suavemente correram por aquellas faces de uma alvura pallida e mortal.
Carlos accordou de todo, abriu os olhos e cravou-os fixamente no rosto angelico d'essa mulher.
Esteve assim minutos: ella não dizia nada nem de voz nem de gesto: fallavam-lhe so as lagrymas que corriam quietas, quietas, como corre uma fonte perenne e nativa d'agua que mana sem esfôrço nem impeto, por um declive natural e facil.
-- 'Onde estou eu, Georgina?'
-- 'Nos meus braços.'
-- 'Que me succedeu?'
-- 'Que não podes ser feliz senão n'elles: bem sabes.'
-- 'Sei... devia saber.'
-- 'Hasde sabe-lo agora. O passado...'
-- 'O passado! qual?'
-- 'O passado deixou de existir.'
-- 'E o futuro?'
-- 'Eu não creio no futuro.'
-- 'Porquê?'
-- 'Porque tu me disseste que não cresse.'
-- 'Eu!.. Eu sou um...'
-- 'Um homem.'
-- 'Oh!'
-- 'Basta e descança. Amanhan fallaremos.'
-- 'Estou ferido, muito; e doe-me agora... não me doía.'
-- 'Estás, mas sem perigo: e estou eu aqui. Dorme.'
-- 'Não posso. Que casa é ésta?'
-- 'San'Francisco de Santarem.'
-- 'Deus de misericordia!'
-- 'Es prisioneiro: sára, e eu te livrarei.'
-- 'Tu! -- E tu aqui, como?'
-- 'Vim buscar-te, e achei-te assim.'
-- 'Georgina!'
-- 'Que tens tu ahi tam seguro na mão esquerda?'
-- 'Vê: a medalha com o teu cabello.'
-- 'Então amas-me tu ainda?'
-- 'Se te amo! Como no primeiro...'
-- 'Não mintas, Carlos... E dorme.'
-- 'Oh meu Deus, meu Deus! Georgina aqui, eu n'este estado e... E a minha gente?'
-- 'A tua gente está salva.'
-- 'Aonde?'
-- 'Aqui mesmo, em Santarem.'
-- 'Quero... não quero... Oh sim, quero mas é morrer. Tende misericordia de mim, meu Deus!'
-- 'Socega, Carlos.'
Mas Carlos não socegava: immudeceu porque a torrente de seus pensamentos, o incontrado d'elles, e o inesperado d'aquella situação lhe imbargavam a voz, e o quebramento das fôrças lhe tolhia os movimentos do corpo; mas o espirito inquieto e alvoraçado revolvia-se dentro com um phrenesi louco. Era pasmar o que elle soffria.
Á fôrça de bebidas calmantes o accesso diminuiu, a noite passou mais tranquilla; e pela manhan o doente não dava cuidado ao facultativo que o veio ver.
Prohibiram-lhe fallar; e Georgina tinha a coragem de lhe resistir, de lhe não responder todas as vezes que elle tentava quebrar o preceito de que dependia a sua vida... e a d'ella, porque a infeliz amava-o... oh! amava-o como se não ama senão uma vez n'este mundo.
Passaram dias, semanas, Carlos estava melhor, estava salvo; Georgina pôde dizer-lhe um dia:
-- 'Carlos, meu Carlos, tu estás livre de perigo, vou restituir-te aos teus.'
-- 'Os meus!'
-- 'Os teus. Tua avó, tua prima...'
-- 'Joaninha! oh! Joanninha...'
-- 'Tua avó que tambem tem estado a morrer mas que emfim está escapa, ignora que tu estejas aqui. Occultámo-lo egualmente a tua prima.'
-- 'Ah!'
-- 'Sim, assentámos de lh'o não dizer a uma nem a outra até que tivessemos certeza da tua melhora. Hoje porêm vais ve-las. E eu...'
-- 'Tu!'
-- 'Eu não tenho aqui mais nada que fazer.'
-- 'Georgina!'
-- 'Carlos!'
-- 'Tu ja me não amas?'
-- 'Não.'
Seguiu-se um silencio torvo e abafado como o da calma que precede as grandes tempestades. O rosto de Georgina estava impassivel, Carlos estorcia-se debaixo de uma compressão horrivel e incapaz de se descrever.
CAPITULO XXXIII
Carlos e Georgina. Explicação. -- Ja te não amo! palavra terrivel. -- Que o amor verdadeiro não é cego. -- Frade no caso outra vez. Ecce iterum Crispinus; ca está o nosso Fr. Diniz comnosco.
-- 'Tu ja me não amas, Georgina, tu!' exclamou Carlos depois de uma longa e penosa lucta comsigo mesmo: 'Ja me não amas tu, Georgina? Ja não sou nada para ti n'este mundo? Aquelle amor cego, louco, infinito, que derramavas em torrentes sôbre a minha alma, em que trasbordava o teu coração; aquelle amor que eu cheguei a persuadir-me que era o maior, o mais sincero, talvez o unico verdadeiro amor de mulher que ainda houve no mundo, esse amor acabou, Georgina? Seccou-se no teu peito a fonte celeste d'onde manava? Nem as recordações de nossa passada felicidade, nem as memorias dos crueis lances que nos custou, dos sacrificios tremendos que por mim fizeste, nada, nada póde acordar na tua alma um echo, um echo sumido que fosse, da antiga harmonia de nossas vidas -- da nossa vida, Georgina, porque nós chegámos a confundir n'um só os dois seres da nossa existencia -- Oh! porque vivi eu até este dia? E tu, tu que refinada crueldade te inspirou o salvar uma vida que tinhas condemnado, que tinhas sacrificado quando a separaste da tua?'
-- 'Carlos,' respondeu Georgina com a fria mas compassiva piedade que mais o desesperava: -- 'Carlos, não abuses da pouca saude que ainda tens. O esfôrço d'alma que estás fazendo póde-te ser prejudicial. Socega. Tu illudes-te, e sem querer, procuras illudir-me tambem a mim. Entra em ti, Carlos, e discorramos pausadamente sôbre a nossa situação, que não é agradavel porcerto nem para um nem para outro, mas que póde supportar-se se tivermos juizo para a incarar toda e sem medo, e para nos convencermos com lealdade e franqueza do que ella realmente é. Ouve-me, Carlos: tu amaste-me muito...'
-- 'Oh como, oh quanto! Nenhum homem...'
-- 'Poucos homens, é certo, amaram ainda como tu... quem sabe! talvez nenhum. -- Não quero perder ésta última illusão... ja não tenho outra... Talvez nenhum amou como tu me amaste ou... ou cuidaste amar-me. Eu... oh! eu quiz-te... pelo eterno Deus que me ouve! eu quiz-te com uma cegueira d'alma, n'uma singeleza de coração, com um abandôno tam completo, uma abnegação tam inteira de mim mesma, que realmente creio, este é o amor que so a Deus se deve, que so ao Creador a creatura póde consagrar licitamente.
Bem castigada estou: mereci-o.'
-- 'Georgina, Georgina!'
-- 'Deixa-me, quero desabafar eu tambem agora. Ouve-me, tens obrigação de me ouvir. -- Se te dei provas d'este amor, tu o sabes; se desde que te amei, uma palavra, um gesto, um pensamento unico, um so e o mais leve relampejar da imaginação desmentiu em mim d'esta absoluta e exclusiva dedicação de todo o meu ser... dize-o tu.'
-- 'Não, minha alma, não, minha vida, não; tu és um anjo, tu es...'
-- 'Sou uma mulher que te amava como creio que ordinariamente se não ama.'
-- 'Não, certo, não.'
-- 'Fomos felizes, é verdade; e creio que poucos amantes ainda foram tam felizes como nós nos breves dias que isto durou. -- Tu partiste para a tua ilha; era forçoso partir, conheci-o e resignei-me. Consolavam-me as tuas cartas, as tuas cartas de fogo, escriptas, oh se o eram escriptas com o mais puro sangue do teu coração. Nunca duvidei do que me ellas diziam: não se mente assim, tu não mentias então. É falso que o amor seja cego: o amor vulgar póde sê-lo, amor como o meu, o amor verdadeiro tem olhos de lynce: eu bem via que era amada. Nunca me escreveste a protestar fidelidade, e eu sabía, eu via que tu me eras fiel. -- Assim passaram meses, annos. Na ilha e no Porto foste o mesmo. Eu padecia muito, mas confortava-me, vivia de esperanças... triste viver mas doce! Emfim vieste para Lisboa, para aqui... e as tuas cartas que não eram menos ternas nem menos apaixonadas...'
-- 'Se eu nunca deixei, nem um momento...'
Com um gesto expressivo, e de suave mas resoluta denegação, Georgina pôs a mão na bôcca do pobre Carlos, como para o impedir de dizer uma blasphemia. Elle segurou-a com as suas ambas e lh'a beijou mil vezes com um arrebatamento, uma furia, n'um paroxismo de lagrymas e de soluços, que partiriam o coração ao mais indifferente. Commoveu-se, vacillou a inalteravel rigidez do bello rosto da dama, abaixaram-se as longas palpebras de seus olhos; mas se chegou até elles alguma lagryma mais rebelde, prompta refluiu para o coração, porque ao levantá-los outra vez e ao fixá-los tranquillamente nos do seu amante, aquelles olhos puros, celestes e austeros como os de um anjo offendido, estavam seccos.
Ella continuou:
-- 'As tuas cartas, que não eram menos ternas nem menos apaixonadas, começaram todavia a ser menos naturaes, mais incarecidas... eram menos verdadeiras por fôrça. Senti-o, vi-o, e cuidei morrer. Uma familia da minha amizade vinha então para Portugal, accompanhei-a. Apenas cheguei, procurei e obtive os meios seguros de tranzitar pelos dous campos contendores: presagiava-me o coração que me havia de ser preciso. E foi; cheguei ao valle no dia em que tu o deixavas para aquella fatal acção que te ia custando a vida. Vim-te incontrar prisioneiro e meio morto no hospital dos feridos. Aopé de ti estava um frade...'
-- 'Um frade! Meu Deus, se seria elle?'
-- 'Era elle.'
-- 'Pois tu sabes?..'
-- 'Sei: eu disse-lhe quem era e o que tu me eras...'
-- 'Tu a elle... disseste?..'
-- 'Disse. Não sei se fiz mal ou bem, sei que me não importava o que fazia. Vi depois que me não inganára na confiança que posera n'elle. Trouxemos-te para este convento, trattámos de ti, conseguimos salvar-te a vida... E em quanto esse cuidado me livrava de outros, fui... fui feliz. A tua gente... a tua familia do valle tambem veio para Santarem... tua avó e tua prima, Carlos...'
-- 'Joanninha! Joanninha está aqui?'
-- 'Está; socega; ja t'o disse, logo a verás.'
-- 'Eu! Eu para quê? Eu não quero...'
-- 'Quero eu: hasde ve-la. Ja sabes que sei tudo.'
-- 'Tudo o quê, Georgina?'
-- 'Queres que t'o repitta? Repettirei. Que tu amas tua prima, que ella que te adora. E por Deus, Carlos eu ja lhe quero como se fôra minha irman. Intendes bem agora que te não amo? Comprehendes agora que tudo acabou entre nós, e que não vejo, não posso ver em ti ja senão o espôso, o marido da innocente criança que tomei debaixo da minha protecção, e a quem juro que hasde pertencer tu?'
-- 'Juras falso.'
-- 'Como assim! Pois queres mais victimas? Não estás satisfeito com a minha ruina? Eu aomenos não sou do teu sangue. E essa velha decrepita que é tua avó, que duas vezes foi em verdade tua mãe porque te criou, -- essa innocente que te ama na singelleza do seu coração... e esse pobre frade velho...'
-- 'Oh! aqui anda elle, bem o vejo, aqui anda o genio mau da minha familia. Malditto sejas tu, frade!'
O desgraçado não acabára bem de pronunciar éstas palavras, quando a porta da alcova se abriu de par em par, e a rigida, ascetica figura de Fr. Diniz estava deante d'elle.
CAPITULO XXXIV
Carlos, Georgina e Fr. Diniz. -- A peripecia do drama. --
Carlos estava meio sentado meio deitado n'uma longa cadeira de recôsto; Georgina em pé, com os braços cruzados e na attitude de reflexiva tranquillidade. Um sol brilhante e ardente, um sol de maio, feria os estreitos vidros da pequena janella que so dava luz áquelle quarto: a excessiva claridade era velada por uma longa e ampla cortina.
Carlos lançou derepente a mão a essa cortina e a affastou para avivar a luz do aposento. Um raio agudissimo de sol foi bater direito no macerado rosto do frade, e reflectiu de seus olhos incovados, um como relampago de íra celeste que fez estremecer os dous amantes.
Não foi porêm senão relampago; sumiu-se, apagou-se logo. Aquelles olhos ficaram mortaes, mudos, fixos, invidraçados como os de um homem que acabou de expirar e a quem não cerraram ainda as palpebras.
E assim mesmo aquelles olhos tinham o podêr magnetico de fixar os outros, de os não deixar nem pestanejar.
Curvo, incostado a um bordão grosseiro, o seu chapeo alvadio debaixo do braço, o frade deu alguns passos tremulos para onde estavam os dous, arrastando a custo as sôltas alpercatas que davam um som baço e batido, e faziam -- não sei por quê nem como -- estremecer a quem as sentia.
Parou a pouca distancia, e tirando a voz fraca e tenue, mas vibrante e solemne, do íntimo do peito, disse para Carlos:
-- 'Tu mal disseste-me, filho, e eu venho perdoar-te. Tu detestas-me, Carlos, de todos os podêres da tua alma, com toda a energia de teu coração; e eu venho-te dizer que te amo, que tomára dar a minha vida por ti, que do fundo das intranhas se ergue este immenso amor que não tem outro egual, a pedir-te misericordia, a clamar-te em nome de Deus e da natureza, a pedir-te, por quanto ha sancto no ceo e de respeito na terra, que levantes essa maldicção, filho, de cima da cabeça de um moribundo.'
Eram dittas em tal som estas vozes, vinham pronunciadas lá de dentro d'alma com tal vehemencia, que lh'as não articulavam os labios, rompiam-n'os ellas e sahiam.
O soldado parecia desaccordado, confuso e sem intelligencia do que ouvia. Georgina impassivel até alli, rigida e inabalavel com o seu amante, sentia commover-se agora d'aquella angústia do velho. É que partia pedras a dor que vinha n'aquellas fallas sepulchraes, que trassudava d'aquelle rosto cadaverico.
Ao mesmo tempo, um som confuso, um tumulto vago e abafado de mil sons que pareciam arredar-se, incontrando-se, tornando, indo e vindo, e dispersando-se para se tornar a unir, e tornando a dispersar-se emfim, reboava ao longe pela villa, extendia-se nas praças, concentrava-se nas ruas, e mandava áquella solitaria e remota cella do convento uns echos surdos, como os do mar ao longe quando se retira da praia no murmurar melancholico que precede um temporal d'equinoxio.
-- 'Ouves esse borburinho confuso, Carlos? É a tua causa que triumpha, é a d'estes loucos que succumbe, é a de Deus que a si mesmo se desamparou. A hora está chegada, escreveram-se as lettras de Balthasar; a confusão e a morte reinam sos e senhoras na face da terra. Eu quero ir morrer onde haja Deus... Perdoae-me, Senhor, a blasphemia!.. onde o seu nome não seja profanado e malditto...
Ao canto de uma pedra, debaixo de uma árvore hade ser, n'algum logar escuso d'essas charnecas, onde me não rasguem aomenos ésta mortalha, e m'a não insultem nos ultimos instantes, porque eu sou frade, frade, frade... o malditto frade! Mas frade quero morrer, e heide morrer. Oh! assim tivera eu vivido!'
-- 'Mas que foi; que succedeu?'
-- 'O resto do exército realista evacua n'este momento Santarem; vão em fuga para o Alemtejo. Os constitucionaes venceram na Asseiceira, e tudo está ditto para nós. Para mim, Carlos, falta uma palavra so: quererás tu dizê-la?'
-- 'Eu?'
-- 'Sim tu, Carlos. Revoca as palavras terriveis que proferiste, e em nome de Deus, filho, perdoa a teu...'
A Carlos revolvia-se-lhe no peito uma grande lucta. O horror, a compaixão, o odio, a piedade iam e vinham-lhe alternadamente do coração ás faces, e tornavam do rosto para o peito. Uma exclamação involuntaria lhe rebentou dos labios em meio d'este combate:
-- 'Padre, padre! e quem assacinou meu pae, quem cegou minha avó, e quem cubriu de infamia a minha... a toda a minha familia?'
-- 'Tens razão, Carlos, fui eu; eu fiz tudo isso: mata-me. Mas oh! mata-me, mata-me por tuas mãos, e não me maldigas. Mata-me, mata-me. É decreto da divina justiça que seja assim. Oh! assim meu Deus! ás mãos d'elle, Senhor! Seja, e a vossa vontade se faça...'
O frade cahiu de bruços no chão, e com as mãos postas e extendidas para o mancebo, clamava:
-- 'Mata-me, mata-me! aqui ha pouca vida ja: basta que me ponhas o pé sobre o pescoço; esmaga assim o reptil venenoso que mordeu na tua familia e que fez a sua desgraça e a de quantos o amaram. Sim, Carlos, sê tu o executor das íras divinas. Mata-me. Tantos annos de penitencia e de remorsos nada fizeram; mata-me, livra-me de mim e da íra de Deus que me persegue.'
CAPITULO XXXV
Reunião de toda a familia. -- Explicação dos mysterios. -- O coração da mulher. -- Parricidio. -- Carlos beija emfim a mão a Fr. Diniz e abraça a pobre da avó.
Georgina disse para Carlos:
-- 'Dá a mão a esse homem, levanta-o e dize-lhe as palavras de perdão que te pede.'
Carlos fez um gesto expressivo de horror e de repugnancia. Georgina ajoelhou aopé do frade, tomou as mãos d'elle nas suas, e lh'as affagou com piedade; depois levantou-lhe o rosto, incostou-o a si e gradualmente o foi accalmando. O velho parecia uma criança mimada e sentida que se vai accalantando nos braços da mãe: agora so murmurava de vez em quando alguns soluços, a mais e a mais raros.
Estavam de joelhos ambos, o frade e a dama; elle mal se tinha, ella amparava em seus braços e contra seu peito o amortecido corpo do velho. E Georgina disse com aquelle som de voz irresistivel que as filhas de Eva herdaram de sua primeira mãe, e que a ella ou lh'o tinham antes insinado os anjos, ou o apprendeu depois da serpente, -- um som de voz que é a última e a mais decisiva da seducções femininas -- disse:
-- 'Este homem vai morrer, Carlos: e tu hasde-o deixar morrer assim, meu
Carlos?'
Todo o odio, todas as offensas se callaram, desappareceram deante d'aquellas palavras do anjo supplicante. Meu Carlos ditto assim, não o ouvíra elle ha muito tempo, não lhe pôde resistir: extendeu os braços para o frade, cahiu de joelhos aopé d'elle, e um so abraço uniu a todos tres.
Como no eterno grupo de Lacoonte, o velho e os dous mancebos sentiam estreitar-se das cobras da mesma dor, e affogavam junctos da mesma angústia.
Assim estiveram longamente; e não se ouvía entre elles senão algum gemido sôlto, e aquelle sussurrar sumido das lagrymas que mais se ouve com o coração do que com os ouvidos.
O frade disse emfim com uma voz apenas perceptivel de timida e de fraca:
-- 'Carlos, meu Carlos, perdoa tambem... oh perdoa á memoria de tua desgraçada mãe!'
O mancebo saltou convulsamente como o cadaver na pilha galvanica. Em pé, hirto, horrivel, tremendo, exclamou com um brado de trovão:
-- 'Demonio! demonio incarnado em figura de homem, que vieste recordar-me? Dizias bem indagora, monstro: so ás minhas mãos deves morrer. E hasde.'
Lançou-se a um enorme velador de pau-sancto que lhe jazia aopé, massa terrivel d'Hercules, e bastante a fender craneos de ferro, quanto mais a descarnada caveira do frade! D'ambas as mãos a levava no ar; e o velho extendeu para elle a cabeça como na ancia de morrer... Georgina fechou involuntariamente os olhos, e um grande e medonho crime ia consummar-se...
Dous gritos agudissimos, dous gritos de desespêro e de terror, d'aquelles que so sahem da bôcca do homem quando suspenso entre a morte e a vida -- soaram repentinamente no apposento; uma velha decrepita e meia morta, arrastada por uma criança de pouco mais de dezeseis annos, estava deante de Carlos, e ambas cubriam com seus debeis corpos a fragil e extenuada figura da sua victima.
-- 'Filho, meu filho!' arrancou a velha com stertor do peito: 'é teu pae meu filho. Este homem é teu pae, Carlos.'
O ponderoso velador cahiu inerte das mãos do mancebo, e rolou pesado e baço pelo pavimento. Carlos cahiu por terra sem sentidos. De um pulo Georgina estava aopé d'elle, e o fez incostar na longa cadeira de braços. Estava lavado em sangue; era uma ferida do pescôço que o excesso da commoção lhe fizera rebentar. Os dous velhos vieram ajoelhar-se aopé d'elle. As duas mulheres moças lidavam pelo restaurar e lhe estancar o sangue. A cambraia dos lenços, as rendas do collo e das cabeças, tudo se fez em ataduras e compressas: o sangue parou emfim.
Admiravel belleza do coração feminino, generosa qualidade que todos seus infinitos defeitos faz esquecer e perdoar! Essas duas mulheres amavam esse homem. Esse homem não merecia tal amor: não, por Deus! o monstro amava-as a ambas: está tudo ditto. E ellas que o sabiam, ellas que o sentiam, e que o julgavam digno de mil mortes, ellas rivalizavam de cuidados e de ancia para o salvarem.
De tanto não somos capazes nós.
E por isso admirâmos tanto.
E perdoâmos tanto.
E esquecêmos tanto.
Mas amar tanto, não sabemos: verdade, verdade...
Amâmos melhor; sim, isso sim: tanto não.
O mancebo permanecia em deliquio. Fr. Diniz e a velha rezavam. Georgina e Joanninha -- ja vereis que era Joanninha -- olharam uma para a outra, coraram e ficaram suspensas. A ingleza extendeu a mão á amavel criança, estremeceu involuntariamente, mas disse-lhe com firmeza:
-- 'O ditto ditto, Joanninha! Eu ja o não amo; prometto.'
-- 'Eu amo-o cada vez mais, Georgina: elle é tam infeliz!'
-- 'Juras-me tu de o não deixar, de velar por elle sempre, de o defender de si mesmo que é o peior inimigo que tem?'
-- 'Se juro!'
-- 'Então adeus, Joanninha! Eu estou de mais aqui. Ja tenho ouvido o que não devia ouvir. Os segredos da tua familia não me pertencem. O coração d'esse homem não é meu, nem o quero. É um nobre e grande coração, Joanninha; mas... Não te deixes dominar por elle se o queres segurar. Adeus! -- Santarem está desamparada pelos realistas; eu vou para Lisboa. Consola tua boa avó, e esse pobre velho. Elle não é tam criminoso, estou certa...'
-- 'Oh não! Carlos cuida-o assassino de seu pae; e é falso. Minha avó ja me disse tudo.'
-- 'Falso!' murmurou Carlos sem abrir os olhos: 'é falso? Pois não foi elle que matou meu pae?'
-- 'Não, filho, clamou a velha: 'não, meu filho; teu pae é este infeliz.'
-- 'E minha mãe?'
-- 'Tua mãe... e eu somos duas desgraçadas. Que mais queres saber? Tua mãe amou esse homem...'
-- 'Ah!' disse Carlos: 'ah!' e abriu os olhos pasmados para a avó e para o frade que cravaram os seus no chão, e ficaram como dous réos na presença do seu inflexivel juiz.
-- 'Mas esse homem que é... que por fôrça querem que seja meu... meu pae... Sancto Deus! elle matou o outro.'
-- 'Defendi-me, foi defendendo ésta vida miseravel... Oh nunca eu o fizera! E paraquê? Paraque quiz eu viver? Para isto!'
-- 'E meu tio, o pae de Joanninha? Tambem esse era preciso que morresse?'
-- 'Ambos se junctaram para me assassinar, e me accommetteram atraiçoadamente na charneca. Não os conheci; foi de noite escura e cerrada. Defendi-me sem saber de quem, e tive a desgraça de salvar a minha vida á custa da d'elles. Filho, filho, não queiras nunca sentir o que eu senti, quando pegando, um a um, n'esses cadaveres para os lançar no rio, conheci as minhas victimas... Era hynverno, a cheia ia de valle a monte: quando abateu e se acharam os corpos ja meios desfeitos, ninguem conheceu a morte de que morreram; passaram por se ter affogado. Ninguem mais soube a verdade senão eu -- e tua infeliz mãe a quem o disse para meu castigo, a quem vi morrer de pezar e de remorsos, que expirou nos meus braços chorando por elle, e maldizendo-me a mim. Não sería bastante castigo, meu filho? -- Não foi, não. Este burel que ha tantos annos me roça no corpo, estes cilicios que m'o desfazem, os jejuns, as vigilias, as orações nada obtiveram ainda de Deus. A sua íra não me deixa, a sua cholera vai até a sepultura sôbre mim... Se me perseguirá além d'ella!..'
Fez-se aqui um silencio horroroso: ninguem respirava; o frade proseguiu:
-- 'Não me dei por bastante castigado com a agonia de tua mãe, a mais horrorosa e desesperada agonia que ainda presenciei, oh meu Deus!.. Tive o cruel ânimo de explicar a tua avó as negras circumstancias d'aquella morte, e de lhe patentear toda a fealdade e hediondez do meu crime. Rasguei-lhe o coração, e vi-lhe sahir sangue e agua pelos olhos, até que lhe cegaram. Que mais queres? Cuidei que podia morrer sem passar por ésta derradeira expiação. Deus não o quiz. Aqui estou penitente a teus pés, filho. Aqui está o assassino de tua mãe, de seu marido, de teu tio... o algoz e a deshonra de tua familia toda. -- Faze de mim como fôr tua vontade. Sou teu pae...'
-- 'Meu pae!.. Misericordia meu Deus!'
-- 'Misericordia, filho, e perdão para teu pae!'
Carlos levantou-se deliberadamente, veio ao velho, tomou-o a pêso nos braços, foi sentá-lo na cadeira que acabava de deixar, e pondo-se de joelhos, beijou-lhe a mão em silencio. Depois foi abraçar-se com a avó, que o apalpava soffregamente com as mãos trémulas, e murmurava baixo:
-- 'Agora sim, ja posso morrer, ja posso morrer porque o abracei, porque o senti juncto a mim, o meu filho, o filho da minha filha querida...'
Carlos é que não proferiu mais palavra; tinha-se-lhe rompido corda no coração, que ou lhe quebrára o sentimento ou lh'o não deixava expressar. Sahiu da cella fazendo signal que vinha logo: mas esperaram-n'o em vão... não tornou.
D'ahi a tres dias, veio uma carta d'elle, de juncto d'Evora onde estava com o exército constitucional.
CAPITULO XXXVI
Que não se acabou a historia de Joanninha. -- Processo ao coração de Carlos. -- Immoralidade. -- Defeito de organização não é immoralidade. -- Horror, horror, maldicção! -- Um barão que não pertence á familia lineana dos barões propriamente dittos -- Porta de Atamarma. -- Senatus consulto santareno. -- Nossa Senhora da Victoria afforada. -- Threnos sôbre Santarem.
-- Pois ja se acabou a historia de Joanninha?
-- Não, de todo ainda não.
-- Falta muito?
-- Tambem não é muito.
-- Seja o que for, acabemos, que está a gente impaciente por saber como se concluiu tudo isso, o que fez o frade, o que foi feito da ingleza, Joanninha e a avó que caminho levaram, e o pobre Carlos se...
-- Pois interessam-se por Carlos, um homem immoral, sem principios, sem coração, que fazia a côrte -- fazer a côrte ainda não é nada -- que amava duas mulheres ao mesmo tempo? Horror, horror! como dizem os dramaticos romanticos: horror e maldicção!
-- Horror seja, horror será... e horror é, sem dúvida. E maldicção que deitaram ao pobre homem. Mas immoralidade! Immoralidade é inganar, é mentir, é atraiçoar: e elle não o fez. Desgraça grande ter um coração assim; mas não me digam que é próva de o não ter. Eu digo que elle tinha coração de mais: o que é um defeito e grande, é um estado pathologico e anormal. Physicamente produz a morte; e moralmente póde matar tambem o sentimento. Bem o creio: mas é molestia commum, e com que vai vivendo muita gente, até que um dia...
-- Um dia, o orgam, que progressivamente se foi dilatando, não póde funccionar mais, cessa a circulação e a vida. Deve ser horrivel morte!
-- Fallam physicamente?
-- Physicamente. Mas no moral anda pelo mesmo. E se esse é o defeito de
Carlos...
-- Sentir muito?
-- Não; ter sentido muito: que o coração, como orgam moral, não se dilata a esse ponto senão pelo demaziado excesso e violencia de sensações que o gastaram e relaxaram. Se esse é o defeito, a molestia de Carlos, digo que ja sei o fim da sua historia sem a ouvir.
-- Então qual foi?
-- Que um bello dia cahiu no indifferentismo absoluto, que se fez o que chamam sceptico, que lhe morreu o coração para todo o affecto generoso, e que deu em homem politico ou em agiota.
-- Póde ser.
-- Mas qual das duas foi, deputado ou barão? queremos saber.
-- Saberão.
-- Queremos ja.
-- E se fossem ambas?
-- Oh horror, horror, maldicção, inferno! Ferros em braza, demonios pretos, vermelhos, azues, de todas as côres! Aqui sim que toda a artelharia grossa do romantismo deve cahir em massa sôbre esse monstro, esse...
-- Esse quê? Pois em se acabando o coração á gente...
-- Eu não creio n'isso. Acaba-se lá o coração a ninguem!..
Houve gargalhada geral á custa do pobre incredulo, e levantamo'-nos para ir ver o Sancto-milagre, que era a hora apprazada, e estava o prior á nossa espera.
Ámanhan o fim da historia da menina dos olhos verdes.
No caminho incontrámos o nosso antigo amigo, o barão de P. -- barão de outro genero, e que não pertence á familia lineana que n'esta obra procurámos classificar para illustração do seculo -- cavalheiro generoso, e typo bem raro ja hoje da antiga nobreza das nossas provincias, com todos os seus brios e com toda a sua cortezia d'outro tempo, que em tanto relêvo destaca da grosseria villan d'essas notabilidades improvisadas...
Vinha em nossa procura para nos guiar. Seguimo-lo.
Fomos de passagem observando algumas das mais interessantes coisas d'aquella interessantissima terra em que se não póde dar um passo sem que a reflexão ou a imaginação incontre objecto para se entreter. Inclinando um pouco á direita, démos na celebrada porta de Atamarma.
Por aqui entrou D. Affonso Henriques, por aqui foi aquella destemida surpreza que lhe intregou Santarem, e acabou para sempre com o dominio arabe n'esta terra.
Os illustrados municipaes Santarenos têem tido por vezes o nobre e generoso pensamento de demolir ésta porta! o arco de triumpho de Affonso Henriques, o mais nobre monumento de Portugal!
A idea é digna da epocha.
Felizmente parece que tem faltado o dinheiro para a demolição; e o senatus consulto dos dignos padres conscriptos não pôde ainda executar-se.
Não que eu creia este arco o genuino arco moiresco por onde entraram os bravos de D. Affonso; mas creio que essa porta da antiga villa se foi reparando, concertando e conservando em suas successivas alterações, até chegar ao que hoje está: e ainda assim como está, é um monumento de respeito que so barbaros pensariam desacatar e destruir.
Porcima d'ella está uma capellinha de N. S. da Victoria: quer a tradicção que primeiro erguida e consagrada á Virgem pelo heroico fundador da monarchia e da independencia portugueza. Este é um dos muitos pontos em que a religião das tradições deve ser respeitada e crida sem grandes exames, porque nada ganha a crítica em pôr dúvidas, e o espirito nacional perde muito em as acceitar.
Deixá-la estar a Virgem da Victoria sôbre o arco de Affonso Henriques. Prostremo'-nos e adoremos, como bons portuguezes, o symbolo da fé christan e da fé patriotica levantado pelas mãos insanguentadas do triumphador!
Mas sería elle ou não que levantou essa capellinha? os documentos faltam, os escriptores contemporaneos guardam silencio; a historia deve ser rigorosa e verdadeira...
Deve: e os grandes factos importantes que fazem epocha e são balizas da historia de uma nação, tambem eu os regeitarei sem dó quando lhes faltarem essas authênticas indispensaveis. Agora as circumstancias, para assim dizer, episodicas de um grande feito sabido e provado, quem as conservará senão forem os poetas, as tradições, e o grande poeta de todos, o grande guardador de tradições, o povo?
Eu creio na Senhora da Victoria de Santarem, e em muitos outros sanctos e sanctas, que a religião do povo tem por esses nichos e por essas capellas e por esses cruzeiros de Portugal, a recordar memorias de que se não lavrou outro auto, não se escreveu outra escriptura, de que não ha outro documento, e que os frades chroniqueiros não julgaram dever escrever no livro de terça ou de noa, em nenhum livro preto nem incarnado, porque o tinham por melhor escripto e mais bem guardado nos livros de pedra em que estava.
Coitados! não contaram com os apperfeiçoadores, reparadores e demolidores das futuras civilizações que, para pôr as coisas em ordem, tiram primeiro tudo do seu logar.
A camara de Santarem, não podendo demolir o arco, tomou um meio termo que appósto que ninguem é capaz de adivinhar. Afforou a capella por cima d'elle, com altar, com sanctos e tudo: e assim esteve afforada alguns annos, não sei paraquê nem porquê; o caso é que esteve.
O anno passado porêm (1842) começou a manifestar-se ésta reacção religiosa que os especuladores quizeram logo converter em ganancia pessoal, descontando-a no mercado das agiotagens facciosas; mas perdem o seu tempo, inda bem! Veio, digo, ésta reacção nas ideas das gentes; e a capella da Senhora da Victoria sôbre o arco, não sei tambem como nem porquê, foi desafforada, e restituida ao culto popular.
Subimos a ver a capella por dentro: é um rifacimento ridiculo e miseravel, sem nenhuma da solemnidade do antigo, nem elegancia moderna alguma.
Desappontou-me tristemente. Vamos ao Sancto-milagre depressa, que me quero reconciliar com Santarem: e ja começa a ser difficil.
Mas é injustiça minha. Que culpa tem ella, coitada?
Ai Santarem, Santarem, abandonaram-te, mataram-te, e agora cospem-te no cadaver.
Santarem, Santarem, levanta a tua cabeça coroada de tôrres e de mosteiros, de palacios e de templos!
Mira-te no Tejo, princeza das nossas villas: e verás como eras bella e grande, ricca e poderosa entre todas as terras portuguezas.
Ergue-te, esqueleto colossal da nossa grandeza, e mira-te no Tejo: verás como ainda são grandes e fortes esses ossos desconjuntados que te restam.
Ergue-te, esqueleto de morte, levanta a tua foice, sacode os vermes que te poluem, esmaga os reptis que te corroem, as osgas torpes que te babam, as lagartixas peçonhentas que se passeiam atrevidas por teu sepulchro deshonrado.
Ergue-te Santarem, e dize ao ingrato Portugal que te deixe em paz ao menos nas tuas ruinas, myrrhar tranquillamente os teus ossos gloriosos; que te deixe em seus cofres de marmore, sagrados pelos annos e pela veneração antiga, as cinzas dos teus capitães, dos teus lettrados e grandes homens.
Dize-lhe que te não vendam as pedras de teus templos, que não façam palheiros e estrebarias de tuas egrejas; que não mandem os soldados jogar a pella com as caveiras dos teus reis, e a bilharda com as cannellas dos teus sanctos.
Tiraram-te os teus magistrados, os teus mestres, os teus seminarios... tudo, menos o intulho e a caliça, as immundices e os monturos que deixaram accumular em tuas ruas, que espalharam por tuas praças.
Santarem, nobre Santarem, a Liberdade não é inimiga da religião do ceo nem da religião da terra. Sem ambas não vive, degenera, corrompe-se, e em seus proprios desvarios se suicida.
A religião do Christo é a mãe da Liberdade, a religião do Patriotismo a sua companheira. O que não respeita os templos, os monumentos de uma e outra, é mau amigo da Liberdade, deshonra-a, deixa-a em desamparo, intrega-a á irrisão e ao odio do povo...
Vamos ao Sancto-milagre.
CAPITULO XXXVII
A Graça e sua bella fachada gothica. -- Sepultura de Pedr'alvares Cabral. -- Outro barão que não é dos assignalados. -- Egreja do Sancto-milagre. -- Bellos medalhões mosarabes. -- De como, chegando o prior e o juiz, houve o A. vista do Sancto-milagre, e com que solemnidades. -- Monumento da muito alta e poderosa princeza a infanta D. Maria da Assumpção. -- Casa onde succedeu o milagre, convertida em capella de stylo philipino. -- O homem das botas, e o que tem elle que haver com o Sancto-milagre de Santarem. -- Admiravel e graciosa esperteza da regencia do Rocio. -- Aaroun-el-Arraschid: e theoria dos governos folgasões; os melhores governos possiveis. -- Volta o paladio scalabitano de Lisboa para Santarem.
Inclinámos o nosso caminho para a esquerda, e fomos passar deante do arrendado e elegante frontispicio gothico da Graça. A ausencia de não sei que regedor, ou insignificante personagem de egual importancia que tem as chaves da egreja e convento, nos fez perder toda a esperança de visitar a sepultura de Pedr'alvares Cabral que alli jaz, assim como outras bellas e interessantes antiguidades de não menor preço.
Fomos seguindo até casa do barão d'A., outro illegitimo, porque não pertence aos barões assignalados
Que, sem passar além da Taprobana,No velho Portugal edificaramNovo reino que tanto sublimaram.
Incontrámo-lo prompto a accompanhar-nos, e a presidir, como juiz da irmandade que é, á grande cerimonia da exposição e ostensão do Sancto-milagre.
Junctos descémos á egreja, que é perto.
A egreja pequena e do peior gôsto moderno por dentro e por fóra. Notavel não tem nada se não uns quatro medalhões de pedra lavrada com bustos de homens e mulheres em relêvo que visivelmente pertenceram a edificação antiga, e que actualmente estão incrustados na tosca alvenaria do cruzeiro.
Os bustos são de puro e finissimo lavor gothico, altos de relêvo e desenhados com uma franqueza que se não incontra em esculpturas muito posteriores.
São talvez reliquias da primitiva egreja do Sancto-milagre que nas successivas reedificações se teem ido conservando. Abençoado seja o escrupuloso que as salvou d'este último melhoramento que houve no desgraçado e desgraçioso templo: o que não foi ha muitos annos por certo.
Chamo gothico ao lavor d'aquellas cabeças por que é a phrase vulgar e impropria usada de toda a gente: segundo ja observei n'outra parte, com mais exacção se devêra dizer mosarabe.
Chegou o prior, o Sr. juiz deu as suas ordens, vieram uns poucos de irmãos com tochas, distribuiram-nos a cada um de nós a sua, e processionalmente nos dirigimos á porta lateral do altar-mor, da qual se sobe, por uma escada assás larga e commoda, á especie de camarim que está parallelo com o mais alto do throno em que perpetuamente se conserva o grande paladio santareno.
Subimos, accompanhados do prior em sobrepeliz e estola; chegados ao alto, ajoelhámos em roda d'elle que subiu a uns degrausinhos, abriu, com a chave dourada que trazia pendente ao pescosso, uma como porta de sacrario, depois ajoelhou, incensou, tornou a ajoelhar, disse alguns versetos a que respondeu o sacristão, e finalmente tirou de seu repositorio uma especie de ambula de ouro de fábrica antiga, mas não mais antiga que o decimo sexto, ou decimo quinto seculo, quando muito.
Depois de nos inclinarmos e receber a bençam que o padre nos deitou com a reliquia, foi-nos permittido erguer-nos, e chegar perto para ver e observar.
Entre uns cristaes ja bem velhos e imbaciados se descobre comeffeito o pequeno vulto amarellado-escuro que piedosamente se crê ser o resto da particula consagrada que a judia roubára para seus feitiços.
Escuso contar a historia do Sancto-milagre de Santarem que toda a gente sabe. O bom do prior, ex-frade trino gordo e bem conservado, não nos perdoou o menor ponto d'ella, que tivemos de ouvir com a maior compuncção.
Incerrada outra vez a ambula com as mesmas solemnidades, entrámos em conversação com o prior.
N'aquelle mesmo camarim juncto á devota reliquia se conservaram, por espaço de cinco ou seis annos, se bem me recordo do que o bom do parocho nos contou, os restos mortaes da senhora infanta D. Maria da Assumpção, que fallecêra em Santarem nos ultimos mezes da occupação d'aquella villa pelas fôrças realistas. O cadaver, mal imbalsemado e com más drogas, foi mettido n'um caixão de folha de Flandres. Em pouco tempo a corrupção estragou e rompeu a folha, e uma infecção terrivel apestava a egreja. Soffreu-se isto annos, representou-se ao govêrno por vezes, mas nenhuma resolução se pôde obter. Até que afinal, declarando o prior que, se não mandavam tomar conta d'aquelles tristes restos da pobre princeza, elle se via obrigado a mettê-los na terra, foi-lhe respondido que fizesse como intendesse; e elle intendeu que os devia sepultar no cruzeiro da egreja, como fez, do lado da epistola, isto é, á direita.
E ahi jaz em sepultura raza, sem mais distincção nem epitaphio, a muito alta e poderosa princeza D. Maria, filha do muito alto e poderoso principe D. João o VI, rei de Portugal, imperador do Brazil, e da conquista e navegação etc.
Assim é o mundo, as suas grandezas e as suas glórias!
A visita ao Sancto-milagre não é completa sem se ir ver a casa onde elle se operou. Conservou-se ella por alguns seculos em grande veneração, e em mil seiscentos e tantos se converteu porfim em capella. Hoje está abandonada, chove em toda ella, e apenas tem uma má porta que a defende das incursões dos animaes. Pena e desleixo grande, porque é elegante e graciosa a capellinha, lavrada de bons marmores, no melhor gôsto do decimo-sexto seculo, de renascença ja muito adiantada no classico: é um verdadeiro typo do stylo philippino, que tanto predomina n'essa epocha em toda a peninsula.
A historia do Sancto-milagre de Santarem muitas vezes tem andado ligada com a historia do reino; e ja n'este seculo, no tempo da guerra da independencia, veio prender com um dos factos mais importantes, e tambem com a mais curiosa e comica aventura de que em Lisboa ha memoria.
Alludo nada menos que ao 'homem das botas.' E perdoem-me as senhoras beatas a irreverencia apparente, que bem sabem não ser eu de motejar com as coisas sérias e sanctas. Mas o facto é que a historia do Sancto-milagre está ligada com a célebre historia do 'homem das botas.'
Saiba pois o leitor contemporaneo, e saiba a posteridade, para cuja instrucção principalmente escrevo este douto livro, que pela invasão de Massena, o grande paladio scalabitano foi mandado recolher a Lisboa, e ahi se conservou alguns annos até muito depois da completa retirada dos francezes.
Passado todo o perigo de que o exército invasor roubasse -- ou profanasse -- que era o mais provavel -- a sancta reliquia, começou a reclamá-la o senado e povo santareno, e a mostrar muito pouca vontade de lh'a restituir o senado e povo ulyssiponense. Era uma questão d'entre Alba e Roma que dava serio cuidado aos reflectidos Numas da regencia do Rocio.
Em poucas preplexidades tam graves se viu aquelle pobre govêrno que tantas teve, e de quasi todas se sahiu tam mal.
Não assim d'esta, que a evitou com o mais inesperado e admiravel stratagema, digno de ornar os maravilhosos fastos do grande Aaroun el-Raschid, ou de qualquer outro principe de bom humor, d'esses poucos felizes que em felizes tempos reinaram a brincar, e zombaram com o seu povo, mas fazendo-o rir.
Pois, senhores, apertada se via a regencia d'estes reinos com a restituição do Sancto-milagre que era de justiça fazer-se a Santarem, mas que Lisboa recusava, e ameaçava impedir. Temia-se alborôto no povo.
Não sei de quem foi o alvitre, mas foi de maganão de bom gôsto; e bom gôsto teve tambem o govêrno em o acceitar e approveitar. Para o dia em que o Sancto-milagre devia sahir de Lisboa Tejo acima, e que se esperava fosse com grande solemnidade e pompa ecclesiastica, -- fez-se annunciar por cartazes que um fulano de tal passaria o rio, de Lisboa a Almada, em umas botas de cortiça nas quaes se teria direito e inchuto, navegando a pé sem mais embarcação, vela nem remo.
A logração era gorda e grande; melhor e mais depressa foi ingullida. No dia apprazado despovoou-se a capital, e uns em barcos outros por navios, outros por essas praias abaixo, tudo se encheu de gente de todas as classes, e todos passaram o melhor do dia á espera do homem das botas.
No emtanto, muito surrateiramente imbarcava o Sancto-milagre no seu barco de agua-arriba, e navegava com vento e maré para as ditosas ribeiras de Santarem.
Ninguem o viu sahir, nem soube novas d'elle em Lisboa senão quando constou da sua chegada a Santarem, e das grandes festas que lhe fizeram aquelles saudosos e devotos povos ribatejanos.
Os Aarouns-el-Raschids do Rocio riram de soccapa: e nunca tam innocentemente se riu govêrno algum de ter inganado o povo.
Nós celebrámos a historia como ella merecia, e fomos jantar á Alcaçova, para irmos de tarde ver a Ribeira, e procurar os vestigios do seu inclyto alfageme.
CAPITULO XXXVIII
Jantar nos reaes paços de Affonso Henriques. -- Sautés e salmis. -- Desce o A. á Ribeira de Santarem em busca da tenda do Alfageme. -- A espada do Condestavel. -- Desappontamento. -- O salão elegante. Dissipam-se as ideas archeologicas. Os fosseis. -- Tudo melhor quando visto de longe. -- O baile público. -- Soirée de piano obrigado. -- Theatro. Desafinações da prima-dona. Syphlis incuravel das traducções. Destempêro dos originaes. -- A xácara de rigor, o subterraneo e o cemiterio. -- Sublime gallimathias do ridiculo. -- A bella e necessaria palavra 'gallimathias.' -- Se as saudades matam. -- Perigo de applicar o scalpello ou a lente ao mais perfeito das coisas humanas. -- De como a logica é a mais perniciosa de todas as incoherencias.
Esperava-nos comeffeito em casa do nosso bom hóspede, nos regios paços de Affonso Henriques, um esplendido jantar a que assistiram quasi todos os cavalheiros da terra. -- Não quero dizer as notabilidades, por ser palavra peralvilha a que tenho invencivel zanga. -- As iguarias de legítima eschola portugueza, não menos saborosas e delicadas por apparecerem estremes de sautés e salmis extrangeirados. Brilharam sôbre tudo os productos das duas grandes vendimas rivaes, do Ribatejo e Ribadouro. Foi largo e alegre o jantar.
Acabámos tarde, montámos logo a cavallo, e pela porta de Atamarma descémos á Ribeira; era quasi sol pôsto quando la chegámos.
É o suburbio democratico da nobre villa, hoje o ricco e o forte d'ella. Faz lembrar aquellas aldeas que se criaram á sombra dos castellos feudaes e que, libertas, depois, da oppressora protecção, cresceram e ingrossaram em substancia e fôrça: o castello, esse está vazio e em ruinas.
Por aqui se faz quasi todo o commercio da Extremadura e Beira com o
Alemtejo. Os habitantes laboriosos e activos conservam os antigos brios
e independencia do character primitivo: é a unica parte viva de
Santarem.
Cruzámos a povoação em todos os sentidos, procurando rastrear algum vestigio, confrontar algum sítio onde podessemos collocar, pela mais atrevida supposição que fosse, a tenda do nosso alfageme com as suas espadas bem 'corregidas', as suas armaduras luzentes e bem postas -- e o joven Nun'alvares passeando alli por pé, ao longo do rio -- como diz a chronica -- namorado d'aquella perfeição de trabalho, e dando a 'correger' a bella espada velha de seu pae ao rustico propheta que tantos vaticinios de grandeza lhe fez, que o saudou condestavel, conde d'Ourem e salvador da sua patria.
Nada podémos descubrir com que a imaginação se illudisse siquer, que nos désse, com mais ou menos anachronismo, uma leve base tamsomente para reconstruirmos a gothica morada do célebre cutileiro-propheta que a historia herdou das chronicas romanescas, e hoje o romance outra vez reclama da historia.
Em Santarem ha poucas casas particulares que se possam dizer verdadeiramente antigas; na Ribeira, nenhuma. As implastagens e replastagens successivas teem anachronizado tudo. É uma feliz expressão do Sr. Conde de Raczinski bem applicada por elle ao estado de quasi todos os nossos monumentos, ésta de anachronismo.
Mas alli, na villa alta ou Marvilla, no Santarem propriamente ditto, ha os templos, os conventos, a cêrca das muralhas que todavia conservam a physionomia historica da terra; aqui nem isso ha.
Voltei completamente desappontado da Ribeira, isto é, da sua pedra e cal: gósto immenso da sua gente.
Outra surpreza de mui differente genero nos esperava á noite em
Marvilla, no elegante salão da B. d'A. com quem fomos tomar cha.
Em meio das ruinas e desconfôrto d'aquelles desertos e mortos pardeiros circumstantes, ir incontrar uma casa em plena florescencia de civilização e de vida; ver a amabilidade e a elegancia fazendo graciosamente as honras d'ella -- por mais que se devesse esperar -- sempre espanta á primeira vista: parecia golpe de varinha de condão.
Em tam agradavel e joven companhia todas as ideas archeologicas se desvaneceram, apezar de dous ou tres fosseis que alli appareciam para se não perder detodo a côr local talvez.
Largamente se conversou, de Lisboa principalmente, dos nossos mutuos amigos, das festas do último hynverno, das probabilidades que se deviam esperar do futuro.
Ralhámos muito da sociedade portugueza; exaltámos París e Londres e não sei se Pekim e Nankim tambem, e concluimos que antes Timbokotuo do que a seccante capital do nosso pobre reino. E comtudo estavamos com saudades d'ella; e concessão d'aqui, concessão d'alli, viemos a que não era tam má terra como isso.
Admiravel condicção da natureza humana, que tudo nos parece melhor e menos feio quando visto de longe!
O baile público mais semsabor, detestavel de barulho e confusão, em que, para repousar os olhos n'um rosto conhecido e agradavel, foi preciso furar por entre centenas de cotovellos barbaros que se não sabe d'onde vieram, levar desalmadas pisadellas do dançante noviço, do deputado recemchegado, e das botas novas do novo director da Galocha -- e, mais horrivel que tudo! ver as absurdas toiletes, os penteados fabulosos, as caras incriveis e as antidiluvianas figuras de tanta mulher feia e desastrada... pois esse mesmo baile, quando ja não é senão reminiscencia que acorda no meio do infado ronceiro de uma terra de provincia, parece outro. As luzes, as flores, a musica, toda aquella animação lembra com prazer, o mais esquece, e involuntariamente se descai um pobre homem a suspirar por elle.
A soirée mais massante, de piano obrigado, com dueto das manas, polka das primas e casino das tias velhas -- recordada em eguaes circumstancias, tambem ja não accode á memoria senão como uma reunião escolhida e íntima, de facil e doce tracto... oh! o verdadeiro prazer da sociedade.
Pois o theatro... Que se lembre alguem, na provincia, dos martyrios que soffreu o ouvido com os berros da prima-dona, as desafinações do tenor, ou com o infadonho resonar d'aquella adormecida orchestra de San'Carlos!
A injoativa traducção de uma comedia da Rua-dos-condes, roída de incuravel syphilis, figura-se avelludada de todas as graças do stylo de Scribe.
E o destempêro original de um drama plusquam romantico, laureado das imarcessiveis palmas do Conservatorio para eterno abrimento das nossas bôccas! Lá de longe applaude-o a gente com furor, e esquece-se que fummou todo o primeiro acto ca fóra, que dormiu no segundo, e conversou nos outros, até á infallivel scena da xacara, do subterraneo, do cemiterio, ou quejanda, em que a dama, soltos os cabellos e em penteador branco, indoudece de rigor, -- o gallan, passando a mão pela testa, tira do profundo thorax os tres ahs! do stylo, e promette matar seu proprio pae que lhe appareça -- o centro perde o centro de gravidade, o barbas arrepella as barbas... e maldicção, maldicção, inferno!... 'Ah mulher indigna, tu não sabes que n'este peito ha um coração, que d'este coração sahem umas arterias, d'estas arterias umas veias -- e que n'estas veias corre sangue... sangue, sangue! Eu quero sangue, porque eu tenho sêde, e é de sangue... Ah! pois tu cuidavas? Ajoelha, mulher, que te quero matar... esquartejar, chacinar!' -- E a mulher ajoelha, e não ha remedio senão applaudir...
E applaude-se sempre.
E não é de mim que fallo, que eu gósto d'isto: os outros é que se infastiam e cansam de tanta barafusta, sempre a mesma...
Mas emfim o que digo é que na provincia não ha tal fastio, que esquece a canceira, e que nem o sublime gallimathias do ridiculo d'alli se percebe.
Peço aos illustres puritanos que, á fôrça de sublimado quinhentista, tem conseguido levar a lingua á decrepitude para a curar de suas infermidades francezas, peço-lhes que me perdoem o gallimathias, porque elle é muito mais portuguez que outra coisa. A célebre oração pro gallo Mathiae deu origem a ésta bella e expressiva palavra, que sim foi procreada em francez, mas hoje precisâmos ca muito mais d'ella que em parte nenhuma.
Volto ja da digressão philologica: tornemos á optica e á catoptrica.
Grande coisa é a distancia!
E dizem que saudades que matam! Saudades dão vida; são a salvação de muita coisa que, em seu pleno gôso e posse pacífica, pereceria de inanição ou morreria da oppressora molestia da saciedade.
Por isso eu não gósto de metter o scalpello no mais perfeito da construcção humana, nem de applicar a lente ao mais fino e delicado do seu funccionar...
Vamos usando d'estas palavras que herdámos, sem metter louvados na herança; não succeda descobrirmos que estamos mais pobres do que se cuidava... vamos repetindo éstas phrases que nos formularam nossos antepassados sem as analysar com muito rigor; não succeda vermos claro demais que temos passado a vida a mentir...
Detesto a philosophia, detesto a razão; e sinceramente creio que n'um mundo tam desconchavado como este, n'uma sociedade tam falsa, n'uma vida tam absurda como a que nos fazem as leis, os costumes, as instituições, as conveniencias d'ella, affectar nas palavras a exactidão, a logica, a rectidão que não ha nas coisas, é a maior e mais perniciosa de todas as incoherencias.
Não fallemos mais n'isto, que faz mal, e acabemos aqui este capítulo.
CAPITULO XXXIX
Processo de scepticismo em que está o auctor. -- Moralistas de requiem. -- O maior sonho d'esta vida, a logica. -- Differença do poeta ao philosopho. -- O coração de Horacio. -- O collegio de Santarem. -- Jesuitas e templarios. -- O alliado natural dos reis. -- 'Ficar na gazeta' phrase muito mais exacta hoje do que 'Ficar no tinteiro.' -- San'Frei Gil e o Doutor Fausto. -- De como o A. foi ao tumulo do sancto bruxo e o achou vazio. -- Quem o roubaria?
O final do capítulo antecedente é, bem o sei, um terrivel documento para este processo de scepticismo em que me mandaram metter certos moralistas de requiem de quem tenho a audacia de me rir, d'elles e da sua querella e do seu processo, protestando não me aggravar nem appellar, nem por nenhum modo recorrer da mirifica sentença que suas excellentissimas hypocrisias se dignarem proferir contra mim.
Feita ésta declaração solemne, procedamos.
E quanto a ti, leitor benevolo, a quem so desejo dar satisfação, a ti, se ainda te cansas com essas chymeras, dou-te de conselho que voltes a pagina obnoxia, porque essas reflexões do último capítulo são tam deslocadas no meu livro como tudo o mais n'este mundo. Dorme pois, e não despertes do bello-ideal da tua logica.
É uma descuberta minha de que estou vaidoso e presumido, ésta de ser a logica e a exacção nas coisas da vida muito mais sonho e muito mais ideal do que o mais phantastico sonho e o mais requintado ideal da poesia.
É que os philosophos são muito mais loucos do que os poetas; e de mais a mais, tontos: o que est'outros não são.
Voltemos, voltemos a pagina comeffeito, que é melhor.
Amanheceu hoje um bello dia, puro e sublime. Dorme nas cavernas do padre Eolo aquelle vento sêcco e duro, flagello dos estios portuguezes. Suspira no ar uma viração branda e suave que regenera e dá vida. Mal impregado dia para o passar a ver ruinas! No seio da sempre joven natureza, sob a remoçada espessura das árvores, sôbre a alcatifa sempre renovada das grammas verdes e variegadas boninas, queria eu que me corresse este dia em ocio bemaventurado de corpo e d'alma, sentindo pulsar lento e compassado o coração livre e sôlto de todo impenho, o verdadeiro coração de Horacio,
Solutus omni foenore!
Tomára-me eu no valle outra vez, com a irman Francisca a dobar á porta, a nossa Joanninha a deslindar-lhe a meada; e embora venha o terrivel spectro de Fr. Diniz projectar sua funesta e tragica sombra no idilio d'este quadro suave, que não póde destruir-lhe toda a amenidade bucolica, por mais que faça.
Lá voltaremos ao nosso valle, amigo leitor, e lá concluiremos, como é de razão, a historia da menina dos rouxinoes. Por agora almocemos, que é tarde, e terminemos os nossos estudos archeologicos em Marvilla de Santarem.
Cá estamos no Collegio, edíficio grandioso, vasto, magnífico, propria habitação da companhia -- rei que o mandou construir para educar os infantes seus filhos.
Creio que ésta e a de Coimbra eram as duas principaes casas que para isto tinham os Jesuitas em Portugal.
Foram os templarios dos seculos modernos, os Jesuitas. A potencia formidavel e quasi régia que aquelles levantaram com a espada, tinham estes fundado com a doutrina. Riquezas, podêr, influencia, uns e outros as tiveram com applauso e acquiescencia geral; uns e outros as perderam do mesmo modo.
Extinctas e perseguidas, ambas as ordens renasceram no mysterio, e se converteram em associações secretas para conspirarem; ambas tomaram diversos nomes e variadas máscaras para o fazerem mais seguramente.
Ambas em vão!
O predominio, crescente ha seculos, do elemento democratico annulla todas essas conspirações. Sos e sem elle, os reis tinham succumbido... É a alliada natural dos reis a democracia.
O edificio do Collegio é todo philippino, ja o disse: a egreja dos mais bellos specimens d'esse stylo, que em geral sêcco, duro e sem poesia, não deixa comtudo de ser grandioso.
Aqui esteve depois muitos annos o seminario patriarchal, cujas aulas frequentava a mocidade do districto. Hoje leem-se alli outras palestras da cathedra administrativa. É a séde do govêrno civil chamado: corrumper a moral do povo, sophismar o systema representativo é o thema das licções.
Todo outro insino se tirou de Santarem. Falla-se n'um liceu e não sei em que mais 'que ficou na gazetta:' phrase portugueza moderna que deve supprir a antiga e antiquada de -- 'ficou no tinteiro' -- por muitas razões, até porque hoje não fica nada no tinteiro senão o senso commum, tudo o mais de lá sai, tudo. E muitas graças a Deus quando não passa ás ballas do impressor para dar a volta do mundo.
Santarem é das terras de Portugal a melhor situada e qualificada para um grande estabelecimento de instrucção e de educação pública. Porque não hade estar aqui o Collegio-militar ou a Casa-pia, ou outra grande eschola, seja qual for? Porque hade ser ésta centralização d'insino em Lisboa? Em que se funda um privilegio dado á capital em prejuizo e á custa das provincias?
Sahimos do Collegio, fomos direitos a San'Domingos, um dos mais antigos estabelecimentos monasticos do reino e que eu tanto desejava visitar. Não sei descrever o que senti quando a inferrujada chave deu a volta na porta da egreja e o velho templo se patenteiou aos nossos olhos. Acabára de servir, não imaginam de quê... de palheiro!
A derradeira camada de palha que apodrecêra, adheria ainda ao lagedo humido, e exhalava um forte vapor mephitico que nos suffocava. Mal podémos ver os tumulos dos Docems e tantos outros interessantes monumentos que abundam na parte superior do templo. A inferior, ou corpo da egreja como dizem, é de um miseravel e moderno anachronismo.
Respirando a custo aquelle ar infecto, todo o tempo que lhe pudesse resistir, quiz approveitá-lo em examinar a principal e mais interessante reliquia da profanada egreja -- a capella e jazigo do grande bruxo e grande santo, San'Frei-Gil.
Algures lhe chamei ja o nosso Doutor Fausto: e é com effeito. Não lhe falta senão o seu Goethe.
Vixere fortes ante Agamemnona multi.
Houve fortes homens antes de Agamemnão, e fortes bruxos antes e depois do Doutor Fausto. Mas sem Homero ou Goethe é que se não chega á reputação e fama que alcansaram aquelles senhores. Nós precisâmos de quem nos cante as admiraveis luctas -- ora comicas, ora tremendas -- do nosso Frei Gil de Santarem com o diabo. O que eu fiz na 'Dona Branca' é pouco e mal esboçado á pressa. O grande mago lusitano não apparece alli senão episodicamente; e é necessario que appareça como protagonista de uma grande acção, pintado em corpo inteiro, na primeira luz, em toda a luz do quadro.
Então o seu ardente e anciado desejo de saber, os seus vastos estudos, os reconditos mysterios da natureza que descobriu até penetrar no mundo invisivel -- a sêde de oiro, de prazer e de podêr que o perseguia e o fez cahir nas garras do espirito maligno -- o fastio e saciedade que o desincantaram depois -- o seu arrependimento emfim, e a regeneração de sua alma pela penitencia, pela oração e pelo desprêzo da van sciencia humana -- então essas variadas phases de uma existencia tam extraordinaria, tam poetica, devem mostrar-se como ainda não foram vistas, porque ainda não olhou para ellas ninguem com os olhos de grande moralista e de grande poeta que são precisos para as observar e intender.
Lembra-me que sempre entrevi isto desde pequeno, quando me faziam ler a historia de San'Domingos, tam rabujenta e semsabor ás vezes, apezar do incantado stylo do nosso melhor prosador; e que eu deixava os outros capitulos para ler e reler somente as aventuras do sancto feiticeiro que tanto me interessavam.
Com todas éstas reminiscencias que me reviviam n'alma, com os admiraveis versos do Fausto a acudir-me á memoria, e com uma infinidade de associações que essas ideas me traziam, caminhei direito á capella do sancto, cheio de alvorôço, e como tocado, para assim dizer, de sua magica vara de condão.
A capella -- oh desappontamento! a cappella de San'Frei Gil é um mesquinho rifacimento moderno, do lado esquerdo da egreja, sem nenhum vestigio de antiguidade, nenhum ornato characteristico, pesada, grosseira -- velha sem ser antiga -- um verdadeiro non-descriptum de mau gôsto e semsaboria. Quem tal dissera?
O tumulo do sancto está elevado do altar n'uma especie de mau throno.
Subi acima da degradada e profanada credencia para o examinar deperto.
É de pedra o jazigo; mas ultimamente ve-se que tinham pintado a pedra; não tem lavor algum. -- E estava vazio, a loisa levantada e quebrada!..
Quem me roubou o meu sancto?
Quem foi o anathema que se atreveu a tal sacrilegio?..
CAPITULO XL
As Claras. -- Aventura nocturna. -- Se as freiras mettem medo aos liberaes? -- O Psalmo. -- Tres frades. -- Práctica do franciscano. -- O corpo de San' Fr. Gil. -- Que se hade fazer das freiras? -- Mal do govêrno que deixar comer mais aos barões.
Èra de noite, reinava a confusão, a desordem, o susto e a anciedade nos muros de Santarem, tres homens chegavam, por horas mortas, ao antigo mosteiro das Claras, davam á portaria um signal surdo e mysterioso; respondiam-lhe de dentro com outro egual; e d'ahi a pouco, sem rumor e com as mais escrupulosas precauções se abria quietamente a porta da clausura.
Os tres homens entraram, a porta fechou-se sôbre elles do mesmo modo precatado.
Que será?
Os homens levavam uma especie de cofre que parecia conter preciosidades de grande valor: tal era o desvello com que o resguardavam.
Ha um mysterio que se figura criminoso n'esta aventura. Mas os tempos são para tudo.
Era no anno de 1834.
Entremos n'esse convento das pobres Claras, tam afflictas e desconsoladas agora que as ameaçam de dissolução como aos frades.
Não será assim: aquellas instituições não mettem medo aos verdadeiros liberaes, e os outros lá teem o espolio dos frades para devorar; estão entretidos: as freiras salvam-se porora.
Taes eram as esperanças dos tres homens que entravam a essas deshoras nos vedados precinctos do mosteiro. Sigamo-los porêm, que é tempo.
Chegavam elles a uma pequena capella do claustro das freiras, foram depor sôbre o altar o cofre que traziam, e ajoelharam devotamente deante d'elle. Logo se ouviu ao longe o psalmear baixo e sumido de vozes femininas; e d'ahi a pouco, toda a communidade das Claras, de tochas na mão, em duas alas, e a abbadessa com o seu baculo atraz, entravam processionalmente no claustro e se dirigiam á mesma capella.
O psalmo que cantavam era este:
[6] 'Meu Deus, vieram os barbaros ás tuas herdades, polluiram o teu sancto templo, pozeram Jerusalem como um grannel de fructos.
'Pozeram os cadaveres de teus filhos de cevo ás aves do ceo; as carnes dos teus sanctos ás alimarias da terra.
'O sangue d'elles derramaram-n'o como agua nos valles de Jerusalem; ja não havia quem sepultasse.
'Estamos feitos o oppróbrio dos nossos vizinhos; o escarneo e a zombaria dos que vivem por nossos arredores.
'Até aonde, ó Senhor, te hasde irar emfim; e se hade accender o teu zêlo como fogo?
'Vérte a tua íra sôbre as gentes que te não conheceram, contra os reinos que não invocaram o teu nome;
'Que devoraram a Jacob; e desolaram suas terras.
'Não te lembres de nossas iniquidades passadas, e depressa nos alcancem as tuas misericordias; ja que tam pobres de mais estamos.
'Ajuda-nos Deus, salvador nosso; e pela gloria do teu nome livra-nos,
Senhor, amercea-te de nossos peccados por causa do teu nome.'
Cantavam assim as pobres das freiras, cantavam em latim que ellas mal intendiam; mas dizia-lhes o instincto do coração, dizia-lhes a tam excitavel imaginação feminina, que era chegada a hora de se cumprir a seus olhos, e sôbre ellas mesmas tambem, a tremenda prophecia do psalmo que intoavam.
Havia pois lagrymas n'aquellas vozes que assim cantavam, sahiam d'alma aquelles sons e n'alma vibravam tambem com profunda e solemne melancholia.
Chegadas juncto á capella aonde estava o cofre, as freiras pararam conservando as mesmas duas alas da procissão e continuando no accentuado mormúrio de seu psalmo.
Os tres vultos de homem permaneceram de joelhos e curvados deante do altar.
Findou o psalmo e seguiu-se breve intervallo de silencio. Depois, os tres homens levantaram-se, e cahindo-lhes para os lados as longas capas em que vinham involtos, viu-se que o do meio era um frade velho, magro, curvado e sêcco, trajando ainda, apezar da lei, o burel preto dos franciscanos e cingido com sua corda. Os outros dous eram dominicos e vestiam de preto e branco segundo as côres de seu tambem proscripto instituto.
O velho franciscano subiu com passo trémulo os degraus do altar, beijou o cofre que estava sôbre elle, e voltando-se para a communidade que o contemplava em religioso silencio, disse com uma voz cava que parecia vir do sepulchro mas accentuada e forte:
'Irmans, vimos intregar-vos este depósito precioso. Deus não quer que os cadaveres dos seus sanctos fiquem expostos ás aves do ceo e ás alimarias da terra. Este é o sancto corpo de um dos maiores sanctos que produziu ésta terra de Portugal quando era abençoada. Hoje é malditta e não devia conservar as suas reliquias. Os filhos de San'Domingos foram expulsos de sua casa, assim como nós fomos, nós os filhos de Francisco, incontrámo'nos sem tecto nem abrigo uns e outros, e junctámos as nossas miserias para as chorarmos como irmãos que somos, como filhos de paes que tanto se amaram e ajudaram. Perigrinaremos junctos por essas solidões da terra, e junctos iremos bater por essas portas que cerrou a impiedade e a indifferença, a pedir o pão de cada dia porque temos fome.
'Que importa! não professâmos nós, não nos honrâmos nós de ser mendigos?
De que vivêmos nós sempre senão de esmolla?
'Não choreis irmans, não choreis sôbre nós. Deus que o permittiu bem sabe o que fez. Louvado seja elle sempre! Nós tinhamos peccados para mais! Ainda foi misericordioso comnosco o Senhor da justiça e do castigo.
'A nós tiraram-nos tudo, tudo! Até éstas mortalhas que tinhamos escolhido em vida e que nem a morte ousava roubar-nos.
'A furto e como quem se esconde para um acto criminoso, nós as vestimos ésta noite para commetter o que elles chamarão um furto, e que era uma obrigação sagrada nossa.
'Fomos á antiga casa de nossos irmãos e roubámos o corpo do bemaventurado San'Frei Gil.
'Aqui vo-lo intregâmos; guardae-o. Emquanto estes muros estiverem em pe, que o abriguem dos desacatos d'essa gente sem Deus nem lei. A vós não ousarão expulsar-vos d'aqui: talvez vos matem á fome... Não póde ser: Deus não hade permitti-lo.
'Mas qualquer que seja a sua vontade, resignae-vos a ella, minhas irmans. So elle sabe como nos ama e como nos castiga. Louvemo'-lo por tudo.'
Aqui foi um chorar e um supplicar fervente como so se ouve na hora da angústia.
As afflictas monjas, estavam prostradas nas lages humidas do claustro, sôbre as sepulturas de suas irmans, sôbre seus proprios jazigos que haviam de ser. O frade com os braços extendidos pronunciou as solemnes palavras de benção, descrevendo com a direita o augusto symbolo da redempção:
'Bemdiga-vos Deus omnipotente, Pae, Filho e Espirito-sancto!' 'Amen!' respondeu o côro; e os tres proscriptos se retiraram, deixando a salvo o seu thesoiro.
Assim desappareceu do tumulo o corpo de San'Frei Gil de Santarem.
Ninguem sabía d'elle: soube eu e guardei o segredo religiosamente.
Os tempos são outros hoje: os liberaes ja conhecem que devem ser tolerantes, e que precisam de ser religiosos. Não ha perigo em dizer-lhe onde elle está.
Quando houver em Portugal um govêrno que saiba ser govêrno, hade regular e consolidar a existencia das freiras, hade approveitá-la para as piedosas instituições do insino da mocidade, da cura dos infermos, e do amparo dos invalidos.
Os barões andam-lhe com o cheiro nos poucos bens que lhes restam ás pobres das freiras. Mal do govêrno que deixar comer mais aos barões!
CAPITULO XLI
O roubador do corpo do sancto descuberto pela arguta perspicacia do leitor benevolo. -- Grande lacuna na nossa historia. -- Porque se não preenche? -- Página preta na historia de Tristam Shandy. -- Novellas e romances, livros insignificantes. -- O adro de San'Francisco e as suas acacias. -- Que será feito de Joanninha? -- O peito da mulher do norte. -- Vamos embora: ja me infada Santarem e as suas ruinas. -- A corneta do soldado e a trombeta do juizo final. -- Eheu, Portugal, eheu!
Porcerto, leitor amigo, no franciscano velho que vai de noite roubar os ossos do sancto ao seu tumulo, e os vem esconder na clausura das freiras, porcerto, digo, reconheceu ja a tua natural perspicacia ao nosso Frei Diniz, o frade por excellencia -- frade por teima e acinte.
Pois esse era, não ha dúvida.
Assim se passou aquella scena e assim m'a contaram. Do que mediára entre ella e o acontecido com o frade, Carlos, Joanninha, a avó e a ingleza, d'isso é que nada pude saber.
É uma grande lacuna na nossa historia; mas antes fique assim do que enchê-la de imaginação.
Oh! eu detesto a imaginação.
Onde a chronica se calla e a tradição não falla, antes quero uma pagina inteira de pontinhos, ou toda branca -- ou toda preta, como na veneravel historia do nosso particular e respeitavel amigo Tristão Shandy, do que uma so linha da invenção do chroniqueiro.
Isso é bom para novellas e romances, livros insignificantes que todos leem todavia, ainda os mesmos que o negam.
Eu tambem me parece que os leio, mas vou sempre dizendo que não...
Emfim, tornemos ao frade, e tornemos ás minhas viagens.
Cheio d'elle e da sua memoria, palpitando com a recordação das tremendas scenas que, havia tam poucos annos, se tinham passado em seu antigo mosteiro, eu me approximei emfim do real convento de San'Francisco de Santarem.
Dei pouca attenção ao bello adro e á solemne vista que d'elle se descobre -- e menos ainda ás doentias acacias que ahi vejetam infezadas e rachiticas, como plantadas de má mão e em má hora -- porque môças são ellas, é visivel: poseram-n'as ahi depois de extincto o convento. São triste mas verdadeiro symbolo da apagada e facticia vida que se quiz dar ao que era morto.
Vamos dentro, e vejamos pelas baixas e aguçadas arcadas do claustro, pelas altas naves do templo se descubrimos algum vestigio do último guardião d'esta casa, e d'essa fadada familia cujo destino em hora aziaga tam estreitamente se ligou com o d'elle.
Ja me interessa isto mais, confesso, ai! muito mais, do que todos esses tumulos e inscripções que por ahi estão, e que tanto characterizam este um dos mais antigos e mais historicos edificios do reino.
Mas em vão interrogo pedra a pedra, lage a lage: o echo morto da solidão responde tristemente ás minhas perguntas, responde que nada sabe, que esqueceu tudo, que aqui reina a desolação e o abandôno, e que se apagaram todas as lembranças de outro estado...
Que foi feito de ti, Joanninha, e dos teus amores? Que será feito d'esse homem que ousou amar-te amando a outra? E essa outra onde está? Resignou-se ella devéras? Sepultou comeffeito, sob o gêlo apparente que veste de triplice mas falsa armadura o peito da mulher do norte, todo aquelle fogo intenso e íntimo que solapadamente lhe devora o coração?
Não tenho esperanças de saber nada d'isso aqui.
So pude descubrir que, no dia immediato á scena nocturna das Claras, Fr. Diniz sahiu de Santarem, não se sabe em que direcção -- que n'esse mesmo dia Georgina sahíra tambem pela estrada de Lisboa, levando em sua carruagem a avó e a neta, ambas meias mortas e ambas meias loucas -- que não houvera mais novas de Carlos -- e que a sua última carta, aquella que escrevêra de juncto d'Evora, Joanninha a levava apertada nas mãos convulsas quando partíra.
Pois tambem eu me quero partir, me quero ir embora. Ja me infada Santarem, ja me cansam éstas perpétuas ruinas, estes pardeiros interminaveis, o aspecto desgracioso d'estes intulhos, a tristeza d'estas ruas desertas. Vou-me embora.
E comtudo San'Francisco é uma bella ruina, que merecia examinada de vagar, com outra paciencia que eu ja não tenho.
Se tudo me impacienta aqui!
Da bella egreja gothica, fizeram uma arrecadação milítar; andou a mão destruidora do soldado quebrando e abolando esses monumentos preciosos, riscando com a baioneta pelo verniz mais pulido e mais respeitado d'esses jazigos antiquissimos: os lavores mais delicados esmoucou-os, degradou-os. Levantaram as lages dos sepulchros; e ao som da corneta militar acordaram os mortos de seculos, cuidando ouvir a trombeta final...
Decididamente vou-me embora, não posso estar aqui, não quero ver isto.
Não é horror que me faz, é náusea, é asco, é zanga.
Maldittas sejam as mãos que te profanaram, Santarem... que te deshonraram, Portugal... que te invilleceram e degradaram, nação que tudo perdeste, até os padrões da tua historia!..
Eheu, eheu, Portugal!
CAPITULO XLII
Protesto do auctor. -- Desaffinação dos nervos. -- O que é preciso para que as ruinas sejam solemnes e sublimes. -- Que Deus está no Colliseu assím como em San'Pedro. -- Quer-se o auctor ir embora de Santarem. -- Como, sem ver o tumulo d'elrei D. Fernando? -- Em que estado se acha este. -- Exemplar de stylo byzantino. -- Coroa real sôbre a caveira. -- O rei d'espadas e o symbolo do imperio. -- Quem nunca viu o rei cuida que é de oiro. -- Brutalidades da soldadesca n'um tumulo real. -- O que se acha nas sepulturas dos reis. -- A phrenologia. -- Vindicta publica, tardia mas ultrajante. -- Camões e Duarte Pacheco. -- A sombra falsa da religião. -- Regimen dos barões e da materia. -- A prosa e a poesia do povo. -- Synthese e analyse. -- O senso íntimo. -- Se o auctor é demagogo ou Jesuita? -- Jesu Christo e os barões.
Não chamem exaggerado ao que vai escripto no fim do último capitulo; senti o que escrevi, senti muito mais do que escrevi. O que poderá haver é desacêrto nas palavras, porque em verdade não sei explicar a impressão que me faz uma ruina n'este estado. Desaffinam-me os nervos, vibram-me n'uma discordancia e dissonancia insupportavel. Queria ver antes estes altares expostos ás chuvas e aos ventos do ceo, -- que o sol os queimasse de dia, -- que á noite, á luz branca da lua, ou ao tibio reflexo das estrellas, piasse o mocho e sussurrasse a coruja sôbre seus arcos meio-cahidos.
Não me parecia profanado o templo assim, nem descahido de majestade o monumento. Podia ajoelhar-me no meio das pedras sôltas, entre as hervas humidas, e levantar o meu pensamento a Deus, o meu coração á glória, á grandeza, o meu espirito ás sublimes aspirações da idealidade. O material, o grosseiro, o pesado da vida não me vinham affligir ahi.
Deus, a idea grande do mundo -- Deus, a Razão Eterna -- Deus, o amor -- Deus, a glória -- Deus, a fôrça, a poesia e a nobreza d'alma -- Deus está nas ruinas escalavradas do Colliseu, como nos zimborios de bronze e marmore de San'Pedro.
Mas aqui!.. nos pardeiros de um convento velho, concertado pelas Obras-públicas para servir de quartel de soldados -- aqui não habita espirito nenhum.
Quero-me ir embora d'aqui!
E como? sem ver o tumulo d'elrei Fernando? Não póde ser, é verdade.
Onde está elle?
No côro alto.
Subamos ao côro alto.
Oh! que não sei de nôjo como o conte!
O bello jasigo do rei formoso e frivolo, tam dado ás delicias do prazer como foi seu pae ás austeridades da justiça, em que estado elle está!
Oh nação de barbaros! Oh malditto povo de iconoclastas que é este!
O tumulo do segundo marido de D. Leonor Telles é um sarcophago de pedra branca, fina e friavel, elegante e simplesmente cortada, com mais sobriedade de ornatos do que tem de ordinario os monumentos do seculo XIV, mas de uma acabada sculptura, casta e continente, como o não foi a vida do rei que ahi incerraram depois de morto.
Percebem-se ainda vestigios das vivas côres em que foram induzidos os relevos da pedra branca: -- stylo byzantino de que não sei outro exemplar em Portugal. Este é -- ou antes, era -- precioso.
Era; porque a brutalidade da soldadesca o deturpou a um ponto incrivel. Imaginou a estupida cubiça d'estes Allanos modernos que devia de estar alli dentro algum grande haver de riquezas incantadas, -- talvez cuidaram achar sôbre a caveira do rei a coroa real marchetada de perolas e rubis com que fosse interrado, -- talvez pensaram incontrar appertado ainda entre as sêccas phalanges dos dedos myrhados, aquelle globo de oiro macisso que lhes figura o rei d'espadas do sujo baralho de sua tarimba, e que elles teem pela indisputavel e infallivel insignia do supremo imperio; -- talvez supposeram que mesmo depois de morto, um rei devia de ser de oiro... Emfim quem sabe o que elles cuidaram e pensaram? O que se sabe, porque se ve, é que quizeram abrir e arrombar o tumulo. Tentaram, primeiro, levantar a campa; não poderam: tam solidamente está soldada a pedra decíma ao corpo ou caixão do jazigo, que o todo parece macisso e inconsutil. Mas n'este impenho quebraram e estallaram os lavores finos dos cantos, os caireis delicados das orlas; e a campa não cedeu: parece chumbada pelo anjo dos últimos julgamentos com o sêllo tremendo que so se hade quebrar no dia derradeiro do mundo.
A cubiça estolida dos soldados não se aterrou com a religião do sepulchro, nem lhe causou attrição, ao menos, ésta resistencia quasi sobrenatural das pedras do moimento. Ve-se que trabalhou alli, de alavanca e de ariete, algum possante e ponderoso pé-de-cabra; mas que trabalhou em vão muito tempo.
Desinganaram-se emfim com a tampa; e resolveram atacar, mais brutalmente mas com mais vantagem, as paredes do sarcophago, que justamente suspeitaram de menos espessos. Assim era; e conseguiram na parede da frente abrir um rombo grosseiro por onde entra facil um braço todo e póde explorar o interior do tumulo á vontade.
Assim o fiz eu, que metti o meu braço por essa abertura barbara, e achei terra, pó, alguns ossos de vertebras, e duas caveiras, uma de homem, outra de criança.
Não me lembra que haja memoria alguma de infante que ahi fosse sepultado tambem, segundo faziam os antigos muitas vezes que punham os cadaveres das crianças nos jazigos dos paes, dos parentes, até de meros amigos de suas familias.
Tive, confésso, uma especie de prazer maligno em imaginar a estupida compridez de cara com que deviam de ficar os brutaes profanadores, quando achassem no tumulo do rei o que so teem os tumulos -- de reis ou de mendigos -- ossos, terra, cinza, nada!
Por mim, estive tentado a furtar a caveira d'elrei D. Fernando. Se acreditasse na phrenologia, parece-me que não tinha resistido. Não creio na sciencia, felizmente -- n'este caso -- para a minha consciencia. Tambem não sei o que faria se a caveira fosse de outro homem. Mas o 'fraco rei' que fez 'fraca a forte gente' não são reliquias as suas que se guardem.
Oh! e quem sabe? Ésta profanação, este abandôno, este desacato do tumulo de um rei, alli na sua terra predilecta -- D. Fernando era santareno de affeição -- não será elle o juizo severo da posteridade, a vindicta pública dos seculos, que tardia mas ultrajante, cai emfim sôbre a memoria reprovada do mau principe, e lhe deshonra as cinzas como ja lhe deshonrára o nome?
Quero acreditar que tal não podia succceder aos tumulos de D. Diniz, de D. Pedro I, dos dois Joannes I e II, de...
Sim: e aonde está o de Camões? O de Duarte Pacheco aonde esteve? que ainda é mais vergonhosa pergunta ésta última.
Em Portugal não ha religião de nenhuma especie. Até a sua falsa sombra, que é a hypocrisia, desappareceu. Ficou o materialismo estupido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cynica no meio das ruinas profanadas de tudo o que elevava o espirito...
Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apezar d'esta paralysia que lhe pasma a vida d'alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas uma nação piquena, é impossivel; hade morrer.
Mais dez annos de barões e de regimen da materia, e infallivelmente nos foge d'este corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espirito.
Creio isto firmemente.
Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo, está são: os corruptos somos nós os que cuidâmos saber e ignorâmos tudo.
Nós, que somos a prosa vil da nação, nós não intendemos a poesia do povo; nós, que so comprehendemos o tangivel dos sentidos, nós somos extranhos ás aspirações sublimes do senso-íntimo que despreza as nossas theorias presumpçosas, porque todas veem de uma acanhada anályse que procede curta e mesquinha dos dados materiaes, insignificantes e imperfeitos; -- em quanto elle, aquelle senso-íntimo do povo, vem da Razão divina, e procede da synthese transcendente, superior, e inspirada pelas grandes e eternas verdades que se não demonstram porque se sentem.
E eu que escrevo isto serei eu demagogo? Não sou.
Serei fanatico, jesuita, hypocrita? Não sou.
Que sou eu então?
Quem não intender o que eu sou, não vale a pena que lh'o diga...
Perdoa-me, leitor amigo, uma reflexão última no fim d'este capítulo ja tam seccante, e prometto não reflectir nunca mais.
Jesu Christo, que foi o modêlo da paciencia, da tolerancia, o verdadeiro e unico fundador da liberdade e da egualdade entre os homens, Jesu Christo soffreu com resignação e humildade quantas injustiças, quantos insultos lhe fizeram a elle e á sua missão divina; perdoou ao matador, á adúltera, ao blasphêmo, ao impio. Mas quando viu os barões a agiotar dentro do templo, não se pôde conter, pegou n'um azorrague e zurziu-os sem dor.
CAPITULO XLIII
Partida de Santarem. -- Pinacotheca. -- Impaciencia e saudades. -- Sexta-feira. -- Martyrio obscuro. -- A figura do peccado. -- Estamos no valle outra vez. -- Evocação de incanto. -- A irman Francisca e Fr. Diniz. -- A teia de Penelope. -- E Joanninha? -- Joanninha está no ceo. -- A mulher morta a dobar esperando que a interrem. -- A esperança, virtude do christianismo. -- Uma carta.
Estou devéras fatigado de Santarem; vou-me embora.
Despedimo'-nos saudosos d'aquella boa e leal familia que nos hospedára com tanto carinho, com toda a velha cordialidade portugueza; partimos.
Apenas comecei a respirar o ar fresco da manhan nos olivaes, senti desaffogar-se-me alma d'aquella constricção cansada que se experimenta na longa visita a um museu de antiguidades, a uma galeria de pinturas.
Perdoem-me que não diga 'pinacotheca': bem sei que é moda, e que a palavra é adoptavel segundo as mais strictas regras de Horacio, pois 'cai da fonte grega' direitamente e sem mistura: mas soa-me tam mal em portuguez que não posso com ella.
Santarem fatigou-me o espirito, como todas as coisas que fazem pensar muito. Deixo-a porêm com saudade, e não me heide esquecer nunca dos dias que aqui passei.
De quê e como sou eu feito, que não posso estar muito tempo n'um logar, e não posso sahir d'elle sem pena?
Ja me está custando ter deixado Santarem. Porque não haviamos de partir ámanhan, e ter ficado ainda hoje alli?
E hoje que é sexta-feira?... Mau dia para começar viagem!
Sexta-feira! Era o dia aziago do nosso valle, da pobre velha cega que ahi vivia sua triste vida de dores, de remorsos e desconfôrto, esperando porêm em Deus, conformada com seu martyrio: martyrio obscuro, mas tam insanguentado d'aquelle sangue que mana gotta a gotta e dolorosamente do coração rasgado, devorado em silencio pelo abutre invisivel de uma dor que se não revela, que não tem prantos nem ais.
Era na sexta-feira que o terrivel frade, o demonio vivo d'aquella mulher de angústias, lhe apparecia tremendo e espantoso deante de seus olhos cegos, elevado pela imaginação ás proporções descommunaes e gigantescas de um vingador sobrenatural.
Era a figura tangivel, e visivel á vista de sua alma, do enorme peccado que contra ella estava sempre.
Creio que escuso dizer que não tenho eu ésta superstição dos dias aziagos que tinha a desgraçada velha, que a sua Joanninha partilhava. Mas confesso que, recordando as fatalidades d'aquella familia e d'aquelle dia, não gostei de voltar n'elle ao valle de Santarem.
Estavamos porêm no valle; e ja eu via de longe aquellas árvores e aquella janella que tanto me impressionaram, quando éstas reflexões me acudiam ao espirito e m'o contristavam.
Affrouxei insensivelmente o passo, deixei tomar larga dianteira aos meus companheiros de viagem; e quando chegava perto da casa, tinha-os perdido de vista.
Involuntariamente parei defronte da janella; mordia-me um interêsse, uma curiosidade irresistivel... Nem viva alma por aquelles arredores; apeei-me e fui direito para a casa.
Apenas passei as árvores, um spectaculo inesperado, uma evocação como de incanto me veio ferir os olhos.
No mesmo sítio, do mesmo modo, com os mesmos trajos e na mesma attitude em que a descrevi nos primeiros capitulos d'esta historia, estava a nossa velha irman Francisca...
Ella era, e não podia ser outra; sentada na sua antiga cadeira, dobando, como Penelope tecia, a sua interminavel meada. Não havia outra differença agora senão que a dobadoira não parava, e que o fio seguia, seguia, inrollando-se, inrollando-se contínuo e compassado no novêllo; e que os braços da velha lidavam lentamente mas sem cessar no seu movimento de authomato que fazia mal ver.
Defronte d'ella, sentado n'uma pedra, a cabeça baixa, e os olhos fixos n'um grosso livro velho, que sustinha nos joelhos, estava um homem sêcco e magro, descarnado como um esqueleto, livido como um cadaver, immovel como uma estátua. Trajava um non-descriptum negro, que podia ser sotana de clerigo ou tunica de frade, mas descingida, sôlta, e pendente em grossas e largas pregas do extenuado pescosso do homem.
Tambem não podia ser senão Frei Diniz.
Cheguei juncto d'elles; não me sentiu nenhum dos dois; nem me viu elle, o que so via dos dois.
Sem mais reflexão, e continuando alto na serie de pensamentos que me vinha correndo pelo espirito, exclamei:
-- 'E Joanninha?'
-- 'Joanninha está no ceo': -- respondeu sem sobresalto, sem erguer os olhos do seu livro, a sombra do frade -- que outra coisa não parecia.
-- 'Joanninha, pobre Joanninha! Pois como foi, como acabou a infeliz?'
-- 'Joanninha não é infeliz: foi ser anjo na presença de Deus.'
-- 'E... e Carlos?' balbuciei eu hesitando, porque temia a susceptibilidade do frade.
-- 'Carlos!' respondeu elle erguendo emfim os olhos e cravando-os em mim...
E oh! que nunca vi olhos como aquelles, nem os heide ver!
-- 'Carlos!... E quem é que m'o pergunta? quem é que tanto sabe de mim e dos meus?.. Dos meus! Eu não tenho meus: sou so.'
-- 'So! Não está aqui, que eu vejo?..'
-- 'Ve essa mulher morta que ahi ficou, que a matei eu, e que aqui está á espera que dê a hora de a eu interrar, mais nada. Eu estou so e quero estar so. Morreu tudo. Que mais quer saber?'
-- 'Venho de Santarem...'
-- 'Santarem tambem morreu; e morreu Portugal. Aqui não, vive senão o meu peccado, que Deus não perdoou ainda, nem espero...'
-- 'A nossa religião fez uma virtude da esperança.'
-- 'Fez.'
-- 'E n'isso se distingue das outras todas.'
-- 'Pois ainda ha quem o saiba n'esta terra?'
-- 'Ha mais do que não houve nunca -- pelo menos ha mais quem o saiba melhor.'
-- 'Póde ser: os juizos de Deus são incomprehensiveis.'
-- 'E infinita a sua misericordia.'
-- 'Mas a sua cholera implacavel, a sua justiça tremenda.'
-- 'A misericordia é maior.'
-- 'Quem lhe insinou tudo isso?'
-- 'O evangelho, o coração, e minha mãe que m'os explicou ambos.'
-- 'Sente-se aqui... aopé de mim.'
Sentei-me. O frade pegou-me na mão com as suas ambas, e pôs-me os olhos com uma expressão que nenhuma lingua póde dizer, nem nenhum pincel pintar.
Esteve assim algum tempo, como quem me observava. Vi-lhe apontar claramente uma lagryma, vi-lh'a retroceder, e ficarem-lhe inchutos os olhos. Senti-lhe estrangular um suspiro que lhe vinha á garganta; percebi distinctamente o estremeção que lhe correu o corpo; mas observei que todo se serenou depois.
Disse-me então com voz magoada mas placida e sem aspereza ja nenhuma:
-- 'Sabe a historia do valle?'
-- 'Sei tudo até á partida de Carlos para Evora.'
-- 'Aqui tem a carta que elle escreveu.'
Tirou do breviario um papel dobrado, amarello do tempo, e manchado, bem se via, de muitas lagrymas, algumas recentes ainda.
-- 'Leia.'
Li.
Ésta era a carta de Carlos.
CAPITULO XLIV
Carta de Carlos a Joanninha.
Evora-monte... de maio de 1834.
É a ti que escrevo, Joanna, minha irman, minha prima, a ti so.
Com nenhum outro dos meus não posso nem ouso fallar.
Nem eu ja sei quem são os meus: confunde-se, perde-se-me ésta cabeça nos desvarios do coração. Errei com elle, perdeu-me elle... Oh! bem sei que estou perdido.
Perdido para todos, e para ti tambem. Não me digas que não; tens generosidade para o dizer, mas não o digas. Tens generosidade para o pensar, mas não pódes evitar de o sentir.
Eu estou perdido.
E sem remedio, Joanna, porque a minha natureza é incorrigivel. Tenho energia de mais, tenho podêres de mais no coração. Estes excessos d'elle me mataram... e me matam!
Tu não comprehendes isto, Joanninha, não me intendes decerto; e é difficil.
Es mulher, e as mulheres não intendem os homens. Sempre o entrevi, hoje sei-o perfeitamente. A mulher não póde nem deve comprehender o homem. Triste da que chega a sabê-lo!..
E d'ahi... quando se tem de morrer, antes saber a morte de que se morre, do que expirar na ignorancia do mal que nos matou.
Tu es joven e inexperiente, a tua alma está cheia de illusões doces; vou dissipar-t'as em quanto se não condensam, que te offusquem a razão e te deixem para sempre escrava cega do maior inimigo que temos, o coração.
Quero contar-te a minha historia: verás n'ella o que vale um homem.
Sabe que os não ha melhores que eu; e tam bons, poucos. Olha o que será o resto!
Tu não ignoras ja hoje o porque fugi da casa materna: sabía-a manchada de um grande peccado, e imaginei-a polluida de um enorme crime.
Esse homem que é meu pae, não o podia ver; hoje que sei o que me elle é... Deus me perdoe, que ainda o posso ver menos!
Minha avó, julguei-a cumplice no crime; ella so o era no peccado. Perdoe-lhe Deus; e bem póde e bem deve, ja que a fez tam fraca. Minha pobre mãe succumbiu por sua culpa, por sua irremissivel complacencia...
Deus póde e deve, repitto... mas eu, como lhe heide perdoar eu este rubor que sinto nas faces ao nomear minha mãe?
Tem padecido e soffrido muito... coitada! A sua penitencia é um martyrio, a sua velhice uma longa paixão, e esse homem que a perdeu um verdugo sem piedade. Mas tudo isso é com Deus, não é commigo.
Eu sou filho; minha mãe morreu sem perdoar -- não posso perdoar eu.
E quem me hade perdoar a mim? Ninguem, nem quero.
Não serás tu, minha irman; não, que não deves. Porque eu amei-te com um coração que ja não era meu; acceitei o teu amor sem o merecer, sem o podêr possuir, trahi quando te amava, menti quando t'o disse, menti-te a ti, menti-me a mim, e não guardei verdade a ninguem.
Mas espera, ouve; deixa-me ver se posso atar o fio d'esta minha incrivel historia -- incrivel para ti, bem simples para quem conheça o coração do homem.
Sahi de Portugal, e posso dizer que não tinha amado ainda. Inclinações de criança, galanteios de sociedade, ligações que nasceram da vaidade, ou que so os sentidos alimentam, não merecem o nome de amor.
Eu não tinha amado.
Ha tres especies de mulheres n'este mundo: a mulher que se admira, a mulher que se deseja, e a mulher que se ama.
A belleza, o espirito, a graça, os dotes d'alma e do corpo geram a admiração.
Certas fórmas, certo ar voluptuoso criam o desejo.
O que produz o amor não se sabe; é tudo isto ás vezes, é mais do que isto, não é nada d'isto.
Não sei o que é; mas sei que se póde admirar uma mulher sem a desejar, que se póde desejar sem a amar.
O amor não está definido, nem o póde ser nunca. O amor verdadeiro; que as outras coisas não são isso.
Eu vivi poucos mezes em Inglaterra; mas foram os primeiros que posso dizer que vivi. Levou-me o acaso, o destino -- a minha estrella, porque eu ainda creio nas estrellas, e em pouco mais d'este mundo creio ja -- levou-me ao interior de uma familia elegante, ricca de tudo o que póde dar distincção n'este mundo.
Extranhei aquelles habitos de alta civilização, que me agradavam comtudo; moldei-me facilmente por elles, affiz-me a vejetar docemente na branda atmosphera artificial d'aquella estufa sem perder a minha natureza de planta extrangeira. Agradei: e não o merecia. No fundo d'alma e de character eu não era aquillo por que me tomavam. Menti: o homem não faz outra coisa. Eu detesto a mentira, voluntariamente nunca o fiz, e todavia tenho levado a vida a mentir.
Menti pois, e agradei porque mentia. Sancto Deus! para que sahiria a verdade da tua bôcca, e para que a mandaste ao mundo, Senhor?
Havia tres meninas n'aquella familia. Dizer que eram as tres graças é uma vulgaridade cansada, e tam bannal que não dá idea de coisa alguma. Tres anjos seriam; tres anjos posso dizer com mais propriedade. E quando em nossos longos passeios solitarios, por aquelles campos sempre verdes, por aquellas collinas coroadas de arvoredo, tapessadas de relva macia, os seus vestidos brancos, singelos, simples, trajados sem arte, fluctuavam com a brisa da tarde... e os longos anneis de seus cabellos -- os de uma eram loiros, os de outra castanhos, não ha nome para a indefinida côr dos da terceira -- quando esses longos anneis descahiam de sua ondada spiral com o orvalho humido do crepusculo -- e que a essa luz vaga e mysteriosa eu as contemplava todas tres com adoração e recolhimento devoto d'alma -- sinceramente exclamava: 'São tres anjos celestes que é forçoso adorar!..'
E assim é que os adorava os tres anjos, todos tres, e não podia adorar um sem os outros.
Que me queriam ellas, é certo; que insensivelmente se habituaram á minha companhia e ja não podiam viver sem ella... ai! era preciso ser um monstro para o não confessar com lagrymas de gratidão e de remorso.
Os mais difficeis e delicados apices da perfeição de sua tam caprichosa e tam expressiva lingua, as bellezas mais sentidas de seus auctores queridos, o espirito e tom difficil de sua sociedade tam desdenhosa e fastienta, mas tam completa e tam calculada para sublimar a vida e a desmaterializar -- isso tudo, e um indefinivel sentimento do gentil, que so com natural tacto se adquire, é verdade, mas que se não alcansa com elle so -- isso tudo o apprendi alli das suaves licções que insensivelmente recebia a cada instante.
Se valho alguma coisa, tudo valho por ellas; se tenho merecido alguma consideração no mundo, toda lh'a devo.
Ves que confesso a dívida, verás como a paguei.
O tom perfeito da sociedade ingleza inventou uma palavra que não ha nem póde haver n'outras linguas emquanto a civilização as não aparar. To flirt é um verbo innocente que se conjuga alli entre os dois sexos, e não significa namorar -- palavra grossa e absurda que eu detesto -- não significa 'fazer a côrte'; é mais do que estar amavel, é menos do que galantear, não obriga a nada, não tem consequencias, começa-se, acaba-se, interrompe-se, addia-se, continúa-se ou descontinúa-se á vontade e sem compromettimento.
Eu flartava, nós flartavamos ellas flartavam...
E não ha mais doce nem mais suave intertenimento d'espirito do que o flartar com uma elegante e graciosa menina ingleza; com duas é prazer angelico, e com tres é divino.
Para quem nasceu n'aquillo, não é perigoso; para mim degenerou, breve, aquella placida sensação em mais profundo sentimento.
Veio a admiração primeiro.
E como as eu admirava todas tres as minhas gentis fascinadoras!
E ellas conheciam-n'o, riam, folgavam e estavam incantadas de me incantar.
Fizeram nascer os desejos!
Julguei-me perdido, e quiz fugir.
Não me deixaram e zombaram de mim, da ardencia do meu sangue hespanhol, da vehemencia das minhas sensações...
Em breve eu amava perdidamente uma d'ellas -- queria muito ás outras duas; mas amar, amar devéras, d'alma cuidava eu, de coração ia jurá-lo, era a segunda -- Laura, a mais gentil, mais nobre, mais elegante e radiosa figura de mulher que creio que Deus moldasse n'uma hora de verdadeiro amor de artista que se dignou tomar por esse pouco de greda que tinha nas mãos ao formá-la.
CAPITULO XLV
Carta de Carlos a Joanninha: continúa.
Laura não era alta nem baixa, era forte sem ser gorda, e delicada sem magreza. Os olhos de um côr-de-avelan diaphano, puro, avelludado, grandes, vivos, cheios de tal majestade quando se iravam, de tal doçura quando se abrandavam, que é difficil dizer quando eram mais bellos. O cabello quasi da mesma côr tinha, demais, um reflexo dourado, vacillante, que ao sol resplandecia, ou antes, relampejava, -- mas a espaços, não era sempre, nem em todas as posições da cabeça: -- cabeça pequena, modelada no mais classico da statuaria antiga, poisada sôbre um collo de immensa nobreza, que harmonizava com a perfeição das linhas dos hombros.
A cintura breve e estreita, mas sem exaggeração, via-se que o era assim por natureza e sem a menor contrafeição d'arte. O pé não tinha as exiguidades fabulosas da nossa peninsula, era proporcionado como o da Venus de Medicis.
Tenho visto muita mulher mais bella, algumas mais adoraveis, nenhuma tam fascinante.
Fascinante é a palavra para ella.
O rosto oval e perfeitamente symetrico, pallido; so os beiços eram vermelhos como a rosa de côr mais viva.
A expressão de toda ésta figura é que se não descreve. A bôcca breve e fina surria pouco; mas quando surria, oh!..
Ve-la n'um baile, vestida e calçada de branco, cingida com um cinto de vidrilhos pretos -- toilete inalteravel para ella desde certa epocha -- sem mais ornato, sem mais flores, apenas um farto fio de perolas derramando-se-lhe pelo collo -- era ver alguma coisa de superior, de mais sublime que uma simples mulher.
Tal era Laura, Laura que eu amei quanto podia e sabía amar. Era pouco, sei-o agora; entao parecia-me infinito.
Disse-lh'o a ella, disse-lh'o um dia que passeavamos sós, e depois de andarmos horas e horas esquecidas, sem trocar uma phrase. Pensavamos, eu n'ella, ella não sei em quê.
Sería em mim?
Sería mas não m'o confessou.
E ouviu-me sem dizer palavra, sem olhar para mim uma so vez, sem fugir com a mão que lhe eu appertava, que lhe beijava, e que sentia fria e humida nas minhas que escaldavam.
Era tarde, dirigimo'-nos para casa. Á porta disse-me: 'Não entre'; e vi-a banhada em lagrymas. Quiz segui-la, fez-me um gesto imperioso que me confundiu. Pela primeira vez, depois de tanto tempo, fui so, triste e melancholico para a minha pobre habitação, onde passei a noite.
Quando era madrugada quiz-me deitar. Não dormi.
No dia seguinte recebi uma carta de Julia: assim se chamava a mais velha, a mais sensivel e a mais carinhosa das tres irmans.
O bilhete parecia indifferente; não continha senão palavras usuaes, pedia-me que fosse almoçar com ella... não fallava nas irmans.
Senti que era chegada a minha hora, pareceu-me que ia ser expulso d'aquelle Eden de innocencia em que tinha vivido. A lettra de Julia, uma lettra linda, perfeita, natural, figurava-se-me um aggregado de signaes caballisticos terriveis que incerravam o mysterio da minha condemnação.
Vesti-me, fui, achei-me so com Julia no parlour elegante de seu exclusivo uso.
Era um pequeno gabinete de estudo, ornado somente de umas etagères com livros e musicas, uma harpa e um cavallete.
Sôbre o cavallete estava o meu retratto esboçado, na estante da harpa uma romança franceza a que eu tinha feito lettras portuguezas...
A urna asoviava sôbre a mesa, Julia fazia o cha e não parecia attender a mais nada.
É preciso que eu te descreva a piquena Julia -- Julietta como nós lhe chamavamos -- nós, as duas irmans e eu que rivalizavamos a qual lhe havia de querer mais...
Oh! que saudade e que remorso para toda a minha vida n'estas recordações de fraternal intimidade!
Julia era piquena, delicadissima, propriamente infantina no rosto, na figura, na expressão e no hábito de toda a sua incantadora e diminutiva pessoa.
Nenhuma ingleza, desde o tempo da rainha Bess, teve pé e ancle mais delicado. Nenhuma, desde o rei Alfredo, se occupou tam elegantemente dos elegantes cuidados de um interior britannico -- gentil quadro 'de genero' como não ha outro.
Lady Julia R. era a mais piquena e a mais bonita subdita britannica que eu creio que tenha existido.
Vista á lua, no meio do seu parque, volteiando por entre os raros exoticos que no curto verão inglez se expoem ao ar livre, facilmente se tomava pela bella soberana das fadas realizando aquella preciosa visão de Shakspeare, o 'Midsumer night's dream.'
Seus olhos de azul celeste, sempre humidos e sempre doces, os cabellos de um claro e assedado castanho todos soltos em anneis á roda da cabeça e cahindo pelos hombros, espalhando-se pelo rosto, que era uma lida contínua para os tirar dos olhos, um corpo airoso, uma bôcca de beijar, os dentes miudos, alvissimos e apertados, a mão piquena estreita, e de cera -- tudo isto fazia de Julia um typo ideal de bondade, de candura, de innocencia angelica.
E era um anjo... oh se era!
Contemplei-a muito tempo em silencio: ella surria-me tristemente de vez em quando, mas não fallava. Emfim almoçámos, levaram o trem.
Ella disse á sua aia:
-- 'Phebe, eu estou so com Carlos; e quero estar so. Em casa para ninguem.'
-- 'Sim, minha senhora.' Resposta obrigada do criado inglez a tudo.
E ficámos sos completamente.
CAPITULO XLVI
Carta de Carlos a Joanninha: continúa.
Julia levantou finalmente para mim os seus olhos humidos, assombrados das mais longas e assedadas pestanas que ainda vi em olhos de mulher, e disse-me:
-- 'Carlos, eu estou triste. Devia consolar-me; diga-me alguma coisa que me console. Falle-me.'
-- 'Que heide eu dizer?..'
-- 'É um cavalheiro, Carlos: diga-me que o é, e desassombre-me d'este terror em que estou.'
-- 'Pois duvída, Julia?..'
-- 'Não duvido. Queremos-lhe todos muito aqui... muito demais... receio: como havemos de duvidar?'
-- 'Oh Julia, perdoe-me!' exclamei eu lançando-me a seus pés, tomando-lhe as mãos ambas nas minhas, e beijando-lh'as mil vezes n'um paroxysmo de verdadeira contricção. 'Perdoe-me, Julia: bem sei que fiz mal, e prometto...'
-- 'Não prometta nada, senão que hade ser cavalheiro. Isso sei eu e sinto que o póde cumprir.'
-- 'Juro por... por ella.'
-- 'Ella!.. Ella ama-o, Carlos. É melhor dizer a verdade de uma vez, e incarar todas as consequencias de uma posição difficil, do que illudir-se a gente sem as evitar. Laura ama-o, mas não deve nem póde amá-lo. Se fosse livre, não sei o que diria -- não sei o que faria eu... Mas não se tratta de mim' -- proseguiu com volubilidade febril -- 'não se tratta de mim, Carlos, tratta-se d'ella. Laura não o póde amar, está compromettida. Hade partir em tres mezes para a India.'
-- 'Para a India!'
-- 'Sim: é verdade: velo-ha. O seu noivo é capitão ao serviço da companhia, e parte em casando.'
Eu sentia-me morrer o coração dentro do peito: foi a primeira dor verdadeira d'alma que soffri... Aquelle era o primeiro amor sincero da minha vida, e aquella foi tambem a primeira excruciante pena d'amor por que passei.
Eu que de taes penas zombára sempre, que as desterrava da realidade para os romances, eu!.. Ai! que poeta ou que novellista soube nunca pintar um padecer como eu experimentei n'aquella hora?
Não sei o que fiz nem o que disse; não me recordo senão que senti as lagrymas de Julia cahirem-me sôbre a face e misturarem-se com as minhas que corriam em abundancia. Levantei os olhos para ella, e a expressão que vi nos seus... oh! como a heide esquecer nunca?
Quanto ha de piedade e compaixão no thesouro infinito de um coração feminino se derramava d'aquelles olhos celestes para me consolar. Lá não ficava senão uma tristeza profunda, desanimada e mortal...
Não sei que vago pensamento, que idea louca... ou antes, que presentimento indeterminado e confuso me atravessou pelo espirito -- ou sería pelo coração? -- n'aquelle momento...
Se Julia?..
Mas não póde ser.
-- 'Julia, Julia' bradei eu 'quero vê-la: heide vê-la uma vez ao menos. Não me negue este último favor. Sei que devo, que preciso, que é forçoso fugir d'ella. Mas antes heide dizer-lhe...'
-- 'O quê?..'
-- 'Que a amo como nunca amei, como nunca mais heide amar...'
-- 'Ai Carlos!'
-- 'Que para sempre, sempre...'
Julia levantou-se sem dizer palavra, e lançando sôbre mim um olhar de ineffavel compaixão, sahiu rapidamente do quarto.
Achei-me so, não sei o que pensei nem se pensei. Sentia-me aturdido da cabeça, exhausto do coração -- n'uma depressão d'espirito que tocava na estupidez. Se me apontassem uma pistola aos peitos, não levantava o braço para a arredar... Ja não sentia pena nem desejo. Parecia-me que começava a morrer; e não achava que morrer custasse muito.
N'este estado fiquei não sei que tempo; muito não foi. Percebi que se abria a porta, não tive fôrça para levantar os olhos. Até que senti uma doce e querida mão na minha... era Julia... e era Laura tambem... sancto Deus! que estavam aopé de mim ambas.
Julia tinha a minha mão na sua; e Laura incostada ao hombro da irman, deixava cahir sôbre mim aquelles olhos em que a severidade habitual se tinha relaxado n'uma indulgencia tam doce, n'uma compaixão tam celeste que, juro por Deus, n'aquella hora acreditei firmemente que tinha deante de mim dous anjos seus, baixados nas azas da piedade divina para me trazer todo o perdão, toda a misericordia do ceo á minha alma.
Como te direi eu, Joanna, querida Joanninha, como te direi a ti que me amas, a ti que eu amo -- porque te amo, e Deus me castigue que deve! porque te amo, cegamente te amo com este infame e abominavel coração que Elle me deu -- como te heide eu dizer a ti, e para quê, as palavras que alli dissemos, os protestos que alli fiz, os juramentos que alli se deram, as promessas que alli foram trocadas?
Julia foi para a janella -- indulgente chaperão que nos não via e fingia não nos ouvir. O dia passou-se assim, um longo dia de junho que tam curto e rapido nos pareceu. Era noite quando fomos jantar.
Á mesa Laura appareceu em trajos de viagem; partia n'aquella noite para o paiz de Galles onde tinha uma amiga, com quem ia estar até o dia terrivel, e preparar-se para elle, me disse, longe de mim, no seio da amizade.
Imagine-se aquelle jantar. Nem comer fingiamos. Ao sahir da mesa achámos á porta da casa a caleche posta, o cocheiro na almofada, e o criado á portinhola. Montámos, as tres irmans e eu.
Eram duas milhas d'alli á estalagem onde tocava a malla-posta e onde Laura devia incontrá-la. Fizemo-las sem proferir palavra nenhum dos quatro.
A lua ia grande e bella com sua luz triste e fria por um ceo sem nuvens. Era uma d'aquellas noites raras, mas admiraveis do breve estio britannico.
A areia que rangia com o attrito das rodas da carruagem nas lisas ruas do parque, os ramos descahidos das árvores por que roçavamos levemente ao passar, os veados mansos que se levantavam para nos ver -- os phaesães que erguiam seu rasteiro voo de moita para moita ao sentir o estalido do chicote, com que o cocheiro mais moderava do que excitava os seus cavallos, tudo para mim eram impressões de nunca sentida e inexplicavel tristeza. Ficava-me a alma apoz tudo aquillo, sentia fugir-me a felicidade para sempre, e que era eu que a affugentava, e que me ia incontrar so, desamparado e proscripto no deserto da vida.
Não me sentia fôrça para blasphemar, para maldizer de Deus, senão tinha-o feito.
Tinha: e outras ancias mais angustiadas e mortaes me teem afflicto na vida; em nenhuma me senti tam capaz de renegar de Deus e descrer d'elle como n'esta.
Sería effeito de sua inexhaurivel piedade que talvez quiz acudir á minha alma antes que se perdesse, sería por certo -- pois n'esse mesmo instante distinctamente me appareceu deante dos olhos d'alma a unica imagem que podia chamá-lo do abysmo: era a tua, Joanna! Era a minha Joanninha piquena, innocente, aquelle anginho de criança, tam viva, tam alegre, tam graciosa que eu tinha deixado a brincar no nosso valle: o nosso valle rustico, tam grosseiro e tam inculto! oh como as saudades d'elle me foram alcançar no meio d'aquellas allinhadas e perfeitas bellezas da cultura britannica! Os raios verdes de teus olhos, faiscantes como esmeraldas, atravessaram o espaço, e foram luzir no meio d'aquell'outros lumes que me cegavam. A esteva brava, o tojo aspero da nossa charneca mandavam-me ao longe as exhalações de seu perfume agreste, e matavam o suave cheiro do feno macio d'essas relvas sempre verdes que me rodeavam. As folhas crespas, sêccas, alvacentas das nossas oliveiras como que me luziam por entre a espessura cerrada da luxuriante vegetação do norte, promettendo-me paz ao coração, annunciando-me o fim de uma peleja em que m'o dilaceravam as paixões.
E tu, Joanna, tu, pobre innocente, e desvallida criancinha, tu apparecias-me no meio de tudo isso, extendendo para mim os teus bracinhos amantes como no dia que me despedira de ti n'esse fatal, n'esse querido, n'esse doce e amargo valle das minhas lagrymas e dos meus risos, onde so me tinham de correr os poucos minutos de felicidade verdadeira da minha vida, onde as verdadeiras dores da minha alma tinham de m'a cortar e destruir para sempre...
Oh! de quê e como é feito o homem, para quê e porque vive elle? Que vim eu, que vimos nós todos fazer a este mundo?
Eu sentado alli nas almofadas de seda d'aquella splendida e macia carruagem, rodeado de tres mulheres divinas que me queriam todas, que eu confundia n'uma adoração mysteriosa e mystica -- cego, louco d'amores por uma d'ellas, no momento de lhe dizer adeus para sempre... eu tinha o pensamento fixo n'uma criança que ainda andava ao collo! -- Revendo-me nos olhos pardos de Laura que eu adorava, eram os teus olhos verdes que eu tinha n'alma! Os sentidos todos embriagados d'aquelle perfume de luxo e civilização que me cercava, -- era o nosso valle rustico e selvagem o que eu tinha no coração...
Oh! eu sou um monstro, um aleijão moral devéras, ou não sei o que sou.
Se todos os homens serão assim?
Talvez, e que o não digam.
Joanna, minha Joanna, minha Joanninha querida, anjo adorado da minha alma, tem compaixão de mim, não me maldigas. Não quero que me perdoes, nem tu nem ninguem, que o não mereço: mas que tenhas dó e lástima de mim.
Ai! que isso mereço eu, oh sim.
Deixa-me parar aqui. Falta-me o ânimo para me estar vendo a este terrivel espelho moral em que jurei mirar-me para meu castigo, d'onde estou copiando o horroroso retratto de minha alma que te desenho n'este papel.
Sabía que era monstro, não tinha examinado por partes toda a hediondez das feições que me reconheço agora.
Tenho espanto e horror de mim mesmo.
CAPITULO XLVII
Carta de Carlos a Joanninha: continúa.
Chegámos ao Inn (estalagem), triste casa solitaria no meio dos campos á borda da estrada. A malla chegava ao mesmo tempo quasi.
Eu dei a mão a Laura para sahir da caleche e entrar no coche; e apenas tivemos tempo para um convulsivo shake-hands e para nos dizer adeus! adeus! com a affectada seccura que exige a lei das conveniencias britannicas.
A malla partiu ao grande trote... E dir-te-hei a verdade ou queres que minta? Não, heide dizer-te a verdade. Pois senti como um alívio desesperado, uma consolação cruel em a ver partir. Senti o que imagino que deve sentir um infêrmo depois da operação dolorosa em que lhe amputaram parte do corpo com que já não podia viver, e que era forçoso perder ou perder a vida.
Tambem deve de ser assim a morte: um descanço apathico e nullo depois de inexplicavel padecer.
Era como morto que eu estava; não soffria pois.
E ja não pensava em ti, ja te não via na minha alma: eu não existia, estava alli.
Voltámos ao parque; apeei silenciosamente as minhas duas gentis companheiras, e eu fui so, apé, com passo firme e resoluto para a minha habitação. Nenhuma d'ellas me procurou retter, nem me disse nada, nem tentou consolar-me. Paraquê?
L. William R. chegava, na manhan seguinte, de uma de suas habituaes excursões a Londres. Veio ver-me assim que chegou, e trazer-me cartas de Portugal que eu esperava ha muito. -- Disse-me que partia no outro dia para Swansea, a terra de Galles para onde Laura fôra; e que me incarregava de fazer companhia ás duas filhas que ficavam sos.
A mim!..
Estive tres dias sem as ver: em todos tres não fiz mais do que escrever a Laura.
No quarto dia fui ao parque. Julia deu um grito de alegria quando me viu: raro exemplo de excepção ás formuladas regras que tyrannizam a vida ingleza, que prescrevem até a cara com que se hade morrer, e teem graduado o tom em que se deve exhalar o último suspiro.
Mas a natureza chega a triumphar ás vezes até da propria etiqueta britannica.
Julia cuidava que eu não queria voltar áquella casa, tinha-se resignado a não tornar a ver-me; não pôde reprimir a alegria que lhe causou a minha inexperada apparição.
Passámos todo o dia junctos e sos: quasi todo se nos foi passeando no parque, ou sentados á sombra de seus espessos arvoredos, ou mirando-nos nas crystallinas aguas de uma vasta represa povoada de aves aquaticas e rodeada d'aquelles immensos mantos de velludo verde de que perpetuamente se infeita a terra ingleza e que so desapparecem quando vem o hynverno extender-lhe porcima seus alvos lençoes de neve.
Quiz ver o que eu escrevia á irman; dei-lhe a carta, leu-a, meditou-a, restituiu-m'a sem dizer palavra.
Que horas passámos n'este silencio, n'esta eloquente mudez que não vem senão do muito de mais que a alma sente, do muito de mais que diria se fallasse!
Á despedida, essa noite, deu-me uma bolsa de rede que Laura tinha estado fazendo para mim e que lhe deixára para me intregar. Senti que tinha dentro o que quer que fosse a bolsa, não quiz examinar. Achei, quando voltei a casa, que era o fadado cinto de vidrilhos pretos que eu tanto tinha admirado em certo baile onde foramos junctos, e que Laura não deixára de pôr nunca mais em se vestindo de branco e que fizesse alguma toilette.
Ainda o conservo aquelle cinto precioso, Joanna; ainda a tenho, no meu thesoiro mais guardado, aquella joia, aquella reliquia. E amo-te, e amo-te a ti so como realmente nunca amei nem poderei tornar a amar. Mas aquelle cinto é uma sorte, um talisman, um amuleto em que está o meu destino.
Amei... isto é, amei... pois sim, amei, ja que não ha outra palavra n'estas estupidas linguas que fallam os homens; pois amei outras mulheres, e nos dias de maior enthusiasmo por ellas, não deixei nunca de beijar devotamente aquelle cinto, de o appertar sôbre o meu coração, de me incommendar a elle -- como o salteador napolitano se incommenda ao escapulario da madona que traz ao peito, com as mãos insanguentadas de matar, ou carregado do roubo que acaba de fazer.
Ai, Joanna, não te digo eu que estou perdido, sem remedio, e que para mim não ha, não póde haver salvação nunca?
Vivi assim dois mezes. Laura não me escrevia: recebia as minhas cartas e respondia a Julia: por este modo nos correspondiamos. Julia era parte de nós, era uma porção do nosso amor, viviamos n'ella a nossa vida. E ja as confundia ambas por tal modo no meu coração que me surpreendia a não saber a qual queria mais. Julia parecia feliz d'este estado; eu era-o. Insensivelmente me habituei a elle, ja não tinha saudades do passado. E quando se approximou o casamento de Laura, que ella tinha de voltar de Galles, e que eu, fiel ao que promettêra, devia pretextar negócio urgentissimo em Londres que me obrigasse a ausentar-me até á sua partida para a India, eu tive uma pena, uma difficuldade em cumprir o que promettêra que me invergonhava.
Parti porêm; e alli me demorei um mez. Julia escrevia-me todos os dias e eu a ella. Na véspera do dia fatal em que Laura ia ser de outro homem, Julia escreveu-me éstas palavras sos: -- 'O nosso romance acabou; começa uma historia séria. Laura manda-lhe o seu último adeus.'
E nunca mais se escreveu nem se pronunciou o nome de Laura entre nós dous.
O galeão que me levava para o Oriente as ruinas de toda a minha esperança ha muito que navegava; entrava outubro e o hynverno inglez com suas mais asperas, e n'este anno tam precoces, severidades. Eu sentia-me morrer de tristeza e de isolamento no meio da populosa e turbulenta Londres, Julia percebeu-o, e mandou-me voltar a -- -- shire. Voltei.
CAPITULO XLVIII
Carta de Carlos a Joanninha: continúa.
O que eu senti quando, apezar de tam desfigurados pelos tres-altos de neve que os cubriam, comecei a reconhecer aquelles sitios da vizinhança do parque, e a confrontar as árvores, os pastios, os casaes d'aquelles arredores!
Era outra a expressão de physionomia da paizagem, mas as queridas feições eram as mesmas, e uma a uma lh'as ia estremando.
Emfim o meu stage parou á entrada do parque, e eu tomei apé pela longa avenida. Eram nove horas da manhan, e a manhan brumosa, fria, mas o tempo macio, não estava cru, segundo a expressiva phrase do paiz.
Por entre a nevoa que me incubria a antiga mansão e involvia as árvores circumstantes n'um sudario cinzento e melancholico, fui caminhando, quasi pelo tacto, até meia alameda talvez.
Parei a reflectir na minha posição e no que eu ia ser n'aquella casa que de novo me abria suas portas hospitaleiras, quando, atravez da neblina brancacenta e onde ella era mais rara, descubri um vulto que vinha a mim de entre as árvores do parque.
O vulto era de mulher e parecia uma sombra, uma apparição phantastica em meio d'aquella scena mysteriosa, so, triste.
Na distancia figurava-se-me alto em demazia: Julia não era nem podia ser; Julia a mais diminutiva e delicada de quantas fadas bonitas e graciosas teem trazido varinha de condão. Laura... ai! Laura tam longe estava d'alli... Quem sería pois? So se fosse!.. Quem?
Aquella elegancia, aquelle cabello sôlto e annellado, aquelle ar gentil não podia ser senão d'ella...
D'ella, quem?
Ainda te não fallei, quasi, da última das tres bellas irmans que me incantavam, não t'a descrevi, não t'a nomeei pelo seu nome. Repugnava-me fazê-lo. Mas é preciso: custa-me, não ha remedio.
Era Georgina...
Georgina que tu conheces, Georgina que... era Georgina a que vinha a mim n'aquella -- fatal ou feliz? -- manhan; Georgina que de todas tres era a que menos me fallava, que eu verdadeiramente menos conhecia.
Este meu coração, á fôrça de ferido e de mal curado que tem sido, pressente e adivinha as mudanças de tempo com uma dor chronica que me dá. Pressenti não sei quê ao ver approximar-se Georgina...
-- 'Como foi bom em vir! Estou realmente feliz de o ver. E Julia, a pobre
Julia, que alegria que vai ter, hade curá-la de todo.'
-- 'Pois quê! Julia está doente?'
-- 'Não o sabía!... Ai! não, bem sei que não: ella não lh'o quiz dizer. Julia está doente; mas não é de cuidado. Eu sempre quiz advirti-lo antes que a visse, por isso calculei as horas do coche e vim para aqui esperá-lo.'
Éstas palavras eram simples, não tinham nada que me devesse impressionar extraordinariamente, e todavia eu sentia-me agitado como nunca me sentira. Olhava para Georgina como se a visse a primeira vez, e pasmava de a ver tam bella, tam interessante.
É uma situação d'alma ésta que não sei que a descrevessem ainda poetas nem romancistas: desprezam-n'a talvez, ou não a conhecem. Está recebido que as subitas impressões causadas por um primeiro incôntro sejam as mais interessantes, as mais poeticas.
Eu não nego o effeito theatral d'essas primeiras e repentinas sensações; mas sustento que interessa mais ess'outra inesperada e extranha impressão que nos faz um objecto ja conhecido, que víramos com indifferença atéalli, e que derrepente se nos mostra tam outro do que sempre o tinhamos considerado...
Mas ésta mulher é bella realmente! E eu que nunca o vi! Mas aquelles olhos são divinos! Onde tinha eu os meus atégora? Mas este ar, mas ésta graça onde os tinha ella escondidos? etc. etc.
Vão-se gradualmente, vão-se pouco a pouco descobrindo perfeições, incantos; e o sentimento que resulta é mil vezes mais profundo, mais fundado, sôbretudo, que o das taes primeiras impressões tam cantadas e decantadas.
Que mais te direi depois d'isto? Entrámos em casa, vi Julia, fallámos de Laura muito e muito. Mas eu ja o não fiz com o enthusiasmo, com a admiração exclusiva com que d'antes o fazia...
Julia recobrou, breve, a saude, e com ella o equilibrio do espirito. Renovou-se toda a alegria, todo o incanto das nossas conversações íntimas, dos nossos longos passeios. Laura lembrava com saudade; mas suavizava-se, imbrandecia gradualmente aquella saudade.
Georgina, que atéalli parecia impenhar-se em se deixar eclipsar pela irman, agora, ausente ella, brilhava de toda a sua luz, em graça, em espirito, por um natural singelo e franco, por uma exquisita doçura de maneiras, de voz, de expressão, de tudo.
Julia revia-se n'ella, e eu acabei pela adorar. Vergonha eterna sôbre mim! mas é a verdade: quiz-lhe mais do que a Laura, ou pareceu-me querer-lhe mais... que tanto vale.
Eu sei?.. Não, não lhe queria tanto. Mas amei-a.
Amei, sim, e fui amado!
Tres mezes durou a minha felicidade. É o mais longo periodo de ventura que posso contar na vida. Falsa ventura, mas era.
A imperiosa lei da honra exigiu que nos separassemos, que partisse para os Açores. Fui. Ninguem sacrificou mais, ninguem deu tanto como eu para aquella expedição. A historia fallará de muitos serviços, de muitas dedicações. Quem saberá nunca d'esta?
A historia é uma tola.
Eu não posso abrir um livro de historia que me não ria. Sôbretudo as ponderações e adivinhações dos historiadores acho-as de um comico irresistivel. O que sabem elles das causas, dos motivos, do valor e importancia de quasi todos os factos que recontam?
Ainda não sei como parti, como cheguei, como vivi os primeiros tempos da minha estada n'aquelle escôlho no meio do mar, chamado a ilha Terceira, onde se tinham refugiado as pobres reliquias do partido constitucional.
Habituei-me porfim. A que se não affaz o homem?
Levaram-me uma tarde á grade de um convento de freiras que ahi havia. O meu ar triste, distrahido, indifferente excitou a piedade das boas monjas. Uma d'ellas, joven, ardente, apaixonada, quiz tomar a empresa de me consolar. Não o conseguiu, coitada! O meu coração estava em -- -- shire em Inglaterra, estava na India, estava no valle de Santarem,
Pelo mundo em pedaços repartido;
estava em toda a parte, menos alli, que nada d'elle estava nem podia estar.
Era Soledade que se chamava a freirinha, e com o seu nome ficou. Disseram o que quizeram os falladores que nunca faltam, mas mentiram como mentem quasi sempre, inganaram-se como se inganam sempre.
Eu não amei a Soledade.
E comtudo lembro-me d'ella com pena, com sympathia... Se eu sou feito assim, meu Deus, e assim heide morrer!
Viemos para Portugal; e o resto agora da minha historia sabes tu.
Cheguei porfim ao nosso valle, todo o passado me esqueceu assim que te vi. Amei-te... não, não é verdade assim. Conheci, mal que te vi entre aquellas árvores, á luz das estrellas, conheci que era a ti so que eu tinha amado sempre, que para ti nascêra, que teu so devia ser, se eu ainda tivera coração que te dar, se a minha alma fosse capaz, fosse digna de junctar-se com essa alma d'anjo que em ti habita.
Não é, Joanna; bem o ves, bem o sentes, como eu o sinto e o vejo.
Eu sim tinha nascido para gosar as doçuras da paz e da felicidade doméstica; fui creado, estou certo, para a glória tranquilla, para as delicias modestas de um bom pae de familias.
Mas não o quiz a minha estrella. Embriagou-se de poesia a minha imaginação e perdeu-se: não me recobro mais. A mulher que me amar hade ser infeliz por fôrça, a que me intregar o seu destino, hade vê-lo perdido.
Não quero, não posso, não devo amar a ninguem mais.
A desolação e o oppróbrio entraram no seio da nossa familia. Eu renuncio para sempre ao lar doméstico, a tudo quanto quiz, a tudo quanto posso querer. Deus que me castigue, se ousa fazer uma injustiça, porque eu não me fiz o que sou, não me talhei a minha sorte, e a fatalidade que me persegue não é obra minha.
Adeus Joanna, adeus prima querida, adeus irman da minha alma! Tu accompanha nossa avó, tu consola esse infeliz que é o auctor da sua e das nossas desgraças. Tu, sim, que podes; e esquece-me.
Eu, que nem morrer ja posso, que vejo terminar desgraçadamente ésta guerra no unico momento em que a podia abençoar, em que ella podia felicitar-me com uma balla que me mandasse aqui bem direita ao coração, eu que farei?
Creio que me vou fazer homem politico, fallar muito na patria com que me não importa, ralhar dos ministros que não sei quem são, palrar dos meus serviços que nunca fiz por vontade; e quem sabe?.. talvez darei porfim em agiota, que é a unica vida de emoções para quem ja não póde ter outras.
Adeus minha Joanna, minha adorada Joanna, pela última vez, adeus!
CAPITULO XLIX
De como Carlos se fez barão. -- Fim da historia de Joanninha. -- Georgina abbadessa. -- Juizo de Fr. Diniz sôbre a questão dos frades e dos barões. -- Que não póde tornar a ser o que foi, mas muito menos póde ser o que é. O que hade ser, Deus o sabe e proverá. -- Vai o A. dormir ao Cartaxo. -- Sonho que ahi tem. -- Volta a Lisboa. -- Caminhos de ferro e de papel. -- Conclusão da viagem e d'este livro.
Acabei de ler a carta de Carlos, intreguei-a a Fr. Diniz em silencio.
Elle tornou-me:
-- 'Leu?'
-- 'Li.'
-- 'Que mais quer saber? Sinto que lhe posso dizer tudo: não o conheço, mas...'
-- 'Mas deve conhecer-me por um homem que se interessa vivamente...'
-- 'Em quê? nas eleições, na agiotagem, nos bens nacionaes?'
-- 'Não senhor. Fui camarada de Carlos, não o vejo ha muitos annos e...'
-- 'Nem o conhecia se o visse agora: ingordou, inriqueceu, e é barão...'
-- 'Barão!'
-- 'É barão, e vai ser deputado qualquer dia.'
-- 'Que transformação! Como se fez isso, sancto Deus! E Joanninha e
Georgina?'
-- 'Joanninha inlouqueceu e morreu. Georgina é abbadessa de um convento em Inglaterra.'
-- 'Abbadessa?'
-- 'Sim. Converteu-se á communhão catholica; era ricca, fundou um convento em -- -- shire e lá está servindo a Deus.'
-- 'E ésta pobre senhora, a avó de Joanninha?'
-- 'Ahi está como a ve, morta de alma para tudo. Não ve, não ouve, não falla, e não conhece ninguem. Joanninha veio morrer aqui n'esta fatal casa do valle, eu estava ausente, expirou nos braços d'ella e de Georgina. Desde esse instante a avó cahiu n'aquelle estado. Está morta, e não espero aqui senão a dissolução do corpo para o interrar, se eu não for primeiro, e Deus queira que não! quem hade tomar conta d'ella, ter charidade com a pobre da demente? Mas depois... oh! depois... espero no Senhor que se compadeça emfim de tanto soffrer e me leve para si.'
-- 'Mas Carlos?'
-- 'Carlos é barão: não lh'o disse ja?'
-- 'Mas por ser barão?..'
-- 'Não sabe o que é ser barão?'
-- 'Oh se sei! Tam poucos temos nós?'
-- 'Pois barão é o succedaneo dos...'
-- 'Dos frades... Ruim substituição!'
-- 'Vi um dos taes papeis liberaes em que isso vinha: e é a unica coisa que leio d'essas ha muitos annos. Mas fizeram-m'o ler.'
-- 'E que lhe pareceu?'
-- 'Bem escripto e com verdade. Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberaes não tiveram menos.'
-- 'Errámos ambos.'
-- 'Errámos e sem remedio. A sociedade ja não é o que foi, não póde tornar a ser o que era; -- mas muito menos ainda póde ser o que é. O que hade ser, não sei. Deus proverá.'
Ditto isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviario e poz-se a rezar. A velha dobava sempre, sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos alguns segundos. Nenhum me deu mais attenção nem pareceu conscio da minha estada alli.
Sentia-me como na presença da morte e atterrei-me.
Fiz um esfôrço sôbre mim, fui deliberadamente ao meu cavallo, montei, piquei desesperado d'esporas, e não parei senão no Cartaxo.
Incontrei alli os meus companheiros; era tarde, fomos ficar fóra da villa á hospedeira casa do Sr. L. S.
Rimos e folgámos até alta noite: o resto dormimos a somno sôlto.
Mas eu sonhei com o frade, com a velha -- e com uma enorme constellação de barões que luzia n'um ceu de papel, d'onde choviam, como farrapos de neve, n'uma noite pollar, notas azues, verdes, brancas, amarellas, de todas as côres e matizes possiveis. Eram milhões e milhões e milhões...
Nunca vi tanto milhão, nem ouvi fallar de tanta riqueza senão nas mil e uma noites.
Acordei no outro dia e não vi nada... so uns pobres que pediam esmola á porta.
Metti a mão na algibeira, e não achei senão notas... papeis!
Parti para Lisboa cheio de agoiros, de inguiços e de tristes presentimentos.
O vapor vinha quasi vazio, mas nem por isso andou mais depressa.
Eram boas cinco horas da tarde quando desimbarcámos no Terreiro-do-Paço.
Assim terminou a nossa viagem a Santarem: e assim termina este livro.
Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porêm fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra.
Se assim o pensares, leitor benevolo, quem sabe? póde ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e va perigrinando por esse Portugal fóra, em busca de historias para te contar.
Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar.
Escusada é a jura porêm.
Se as estradas fossem de papel, fa-las-iam, não digo que não.
Mas de metal!
Que tenha o govêrno juizo, que as faça de pedra, que póde, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra.
NOTAS
AO LIVRO PRIMEIRO.
*Nota A.*
Que viage á roda do seu quarto, quem está a beira dos Alpes
pag. 1.
É visivel allusão ao popular e inimitavel opusculo de Xavier de Maistre, Voyage autour de ma chambre, que decerto foi principiado a escrever em Turim, e que muitos suppoem que fôsse concluido em San'Petersburgo.
*Nota B.*
Designio politico determinado a minha visita (a Santarem)
pag. 2.
É puramente historico isto; e tambem é verdade que em grande parte d'aqui se originou a persiguição brutal que soffreu o A. d'ahi a poucos meses.
*Nota C.*
N'uma regata de vapores
pag. 3.
Regata chamavam, e não sei se chamam ainda, em Veneza ás carreiras de barcos appostados ao desafio. A palavra e a coisa introduziu-se em Inglaterra, onde é moda e popularissima.
*Nota D.*
Eu coroarei de trevo a minha espada
pag. 24.
Estes versos são uma especie de parodia dos famosos fragmentos de Alceu de que so existe memoria nos scholios que nos conservou Eustathio. Nas Flores sem fructo, pag. 56 a traducção d'aquelle bello fragmento.
*Nota E.*
Depois de tantas commissões de inquerito, deve de andar orçado o número de almas
pag. 25.
Os protocollos das commissões de inquerito de ha oito para dez annos a ésta parte, sôbre o estado das classes trabalhadoras e indigentes em Inglaterra, é a próva real dos grandes calculos da economia politica, sciencia que eu espero em Deus se hade desacreditar muito cedo.
*Nota F.*
There are more things etc.
pag. 26.
A traducção chegada d'estes memoraveis versos de Shakspeare é:
Ha mais coisas no ceo, ha mais na terraDo que sonha a tua van philosophia.
*Nota G.*
Um Chourineur... uma Fleur-de-Marie
pag. 28.
Personagens, bem conhecidos geralmente, do romance tam popular de Eug.
Sue, Os Mysterios de París.
*Nota H.*
Fossem lá á rainha Anna
pag. 34.
Addison, o poeta, foi ministro da rainha Anna de Inglaterra, e membro do célebre gabinete chamado de All-wits.
*Nota J.*
Quando chegou alli pelos Prazeres
pag. 56.
Um dos dois cemiterios de Lisboa -- seja ditto para intelligencia do leitor provinciano -- chama-se Dos Prazeres, por uma ermida de N. S.^a que alli existia com ésta invocação desde antes do terreno ter o presente destino. É notavel a coincidencia do nome.
*Nota K.*
O verdadeiro alfageme... tinha pelo povo e não queria saber de partidos
pag. 64.
É facil de ver que o interlocutor d'este dialogo conhecia esse curioso personagem da historia do Condestavel, não pelas chronicas mas pelo drama que tem o seu nome.
*Nota L.*
Do Sacré-Coeur e das suas elegantes devotas
pag. 89.
O convento que tem este nome em París, é casa de educação de meninas nobres, e recolhimento de senhoras tambem.
*Nota M.*
Graciosa sculptura de Antonio Ferreira
pag. 106.
Antonio Ferreira, que viveu no fim do seculo passado, princípio d'este, modelava em barro com a mesma graça e naturalidade flamenga, com que pintava o morgado de Setubal: as suas piquenas figurinhas são tam estimadas pelos intendedores como os melhores biscoitos de Sevres e de Saxonia antiga.
*Nota N.*
Ave phenix que nasceu de nossos avós não saberem grego
pag. 115.
A fábula daquella ave immortal teve origem nas edades obscuras da Europa quando o grego era ignorado. O que os antigos diziam da phenix, palmeira em grego, tomaram nossos barbaros avós por ditto de uma passarolla com que os outros nunca sonharam.
NOTAS
AO LIVRO SEGUNDO.
*Nota A.*
Ficámos sem Nibelungen
pag. 3.
Collecção de antigas rhapsodias germanicas contendo o maravilhoso e poetico de suas origens historicas e que é para os povos theutonicos o que era a Ilíada para os hellenos. So se não sabe o nome do Homero allemão que as redigiu e uniformizou como hoje se acham.
*Nota B.*
Caranguejar para as Lamas
pag. 3.
Fundo baixo do Tejo, ao longo da praia de Sanctos, que tem este nome e é onde vão apodrecer as carcassas dos navios velhos e ja inuteis.
*Nota C.*
Os pés no fender
pag. 4.
Fender se chama em inglez a pequena e baixa tea de metal que defende o fogão nas salas, paraque não caiam brazas nos sobrados. Descançam n'elle os pés naturalmente quando a gente se está confortavelmente aquecendo em liberdade.
*Nota D.*
Perfumados resplendores do Old sack
pag. 5.
Tem-se disputado muito sôbre qual seja a bebida espirituosa celebrada por Shakspeare tantas vezes com este nome. A opinião mais acceita é que fosse boa e velha aguardente de França.
*Nota E.*
Renegaram de San'Tiago por castelhano
pag. 5.
O grito de guerra commum a todas as nações christans hespanholas era: San'Tiago! Quando na accessão da casa de Avis nos alliámos intimamente com a Inglaterra contra Castella, começámos a invocar San'Jorge.
*Nota F.*
Vacca e riso de Fr. Bartholomeu dos Martyres
pag. 9.
Singela e original expressão do sancto arcebispo n'uma carta de convite a um seu amigo. Fez-se, como devia ser, proverbial ésta phrase.
*Nota G.*
Feliz expressão do Sr. Conde de Raczinski
pag. 124.
Na sua obra intitulada 'Les arts en Portugal', Paris 1845.
*Nota H.*
O centro perde o centro de gravidade, o barbas arrepella as barbas
pag. 127.
Centro e barbas são qualificações e nomes de impregos theatraes.
Appendix A
Chamavam assim por escarneo, em Portugal, ao general Loison a quem faltava um braço.
Célebre urso do Jardim das Plantas em París.
Pag. 40, 41, 42.
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- TextGrid Repository (2023). Almeida Garrett, João Baptista da Silva Leitão de. Viagens na minha terra: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). https://hdl.handle.net/21.11113/0000-000F-FA8D-9