HENRIQUETA

ROMANCE ORIGINAL

POR

D. MARIA PEREGRINA DE SOUZA

PRECEDIDO DA

Biographia da Auctora

PELO

VISCONDE DE CASTILHO

EDITOR

ANTONIO LEITE CARDOZO PEREIRA DE MELLO

1876

Henriqueta

CAPITULO I

Qual é a primavera que nos indica o tempo que fará no outonno? E quem póde saber no começo da vida o que o espera no resto?...

Ah! se uma mãe extremosa, que guia os primeiros passos de seu filho, podesse ler no futuro, quantas vezes não desmaiaria de pasmo, ou morreria de afflicção?... Felizmente nos dotou a Providencia com duas imperfeições, que fazem toda a nossa felicidade n'este mundo: o esquecimento do passado, e a ignorancia do futuro.

Não pensava Henriqueta assim, e daria metade da sua riqueza para adivinhar o porvir.

Esta menina era formosa, boa, instruida e affavel, Seus paes não tinham mais filhos, e não pouparam despezas, nem canceiras para lhe darem boa e illustrada educação.

Ella tinha preenchido todos os desejos de seus affeiçoados paes. Ninguem a via e ouvia, que a não admirasse; ninguem a tratava, que a não amasse. Não ha porém alguem perfeito. Henriqueta tinha na alma semente venenosa, que, se a não destruisse antes de germinar, podia vir a dar péssimo fructo.

Era esta semente a vaidade, que lhe vinha de conhecer, que muito valia.

Tantas vezes lhe haviam feito saber, que tinha muitos dotes e merecimentos, que se julgou no fundo d’alma digna, de que todos os joelhos se curvassem diante d'ella. Não tinha o máo gosto de fazer ver, que era o idolo de si mesma, mas agasalhava com amor dentro no peito a crença, de que merecia adorações. Era o germen que havia naturalmente de originar muitos males.

Teve a formosa donzella muitos casamentos, pelos merecimentos do seu dote, não dos seus dotes pessoaes. Vivia na aldeia e de poucos era vista. Henrique de Moraes, seu pae, de todos os pretendentes extremou dois, mancebos de que lhe deram excellentes informações, e os nomeou a sua filha, para que escolhesse. Ella nunca os havia visto. Devia pôr o dedo áa cégas. Era o jogo do par ou pernão?

Para Henrique de Moraes parecia-lhe bastante saber, que os dois pretendentes eram ricos, de boas familias, e de, bom porte. Para muitos paes seria esta ultima circumstancia traste de luxo.

Para Henriqueta não a satisfaziam, com razão, estas informações. Quereria vel-os antes de se decidir; porém aquelle que viesse á sua presença ficava quasi escolhido. Seria grande a antipathia, que lhe ganhasse, para se resolver a rejeital-o depois.

— Tenho decidido, disse ella por fim; verei Julio de Castro: dizem que foi bom filho, e que é muito amavel. De Carlos da Silva tambem as informações são boas, mas pende a balança a favor de Julio.

Oito dias depois estava Henriqueta agitada e anciosa. Seu bello e interessante rosto dava signaes de inquietação.

Tudo na quinta de Rivaes mostrava alvoroço e contentamento. Esperava-se o noivo da menina. Ainda que os criados não tinham noticias officiaes do que se tratava, estavam em dia.

Nada, ou pouco se occulta áquelles, que vivem debaixo das mesmas telhas que nos cobrem, que nos servem, e nos espiam.

Ouviu-se o trote d’alguns cavallos. Todos os criados correram á porta, as criadas ás janellas.

Henriqueta estava com sua mãe e tremia. Entrou o pae e mais um mancebo, que apresentou dizendo:

—O snr. Julio de Castro.

E a este disse:

— Minha mulher e minha filha...

A donzella ficou satisfeita. Tinha o seu futuro esposo phiysionoinia muito sympathica e agradavel; e ainda melhor lhe pareceu pelo ver ficar estatico diante d'ella, olhando-a com enlevo. Ella córou e abaixou os olhos.

Henrique de Moraes chegou-lhe cadeira, e Julio saindo da sua distracção disse sorrindo:

— Peço perdão pela minha basbaquice. Imaginei que estava sonhando.

Conversou depois com muita amabilidade. Todos ficaram namorados d’elle, paes, filha e mesmo os criados, que elle brindou na passagem com muita generosidade.

Dentro em pouco fez-se o casamento.

Foram os noivos viver no Porto, mas faziam frequentes e demoradas visitas á quinta de Rivaes, que não ficava longe.

A lua de mel foi muito lónga, durou dois annos. A paixão de Julio porém, que primeiro foi quasi um frenesi, foi dando logar a sentimentos mais brandos, ainda que sempre ternos.

Se Henriqueta não tivera opinião tão elevada de seus encantos e merecimento, contentar-se-ia, e seria feliz com a affeição socegada e meiga de seu marido: mas tendo-o visto arrebatado de sua belleza, parecia-lhe mal vel-o só occupado de suas virtudes. Elle quiz trazel-a á razão, mas enganou-se no caminho. Em vez de conduzil-a com mimo e doçura a deixai-o vagar a seus negocios em liberdade e algumas vezes a distracções, que ella não partilhava, tentou acostumal-a com rude franqueza a ir onde lhe parecia, ou era mister.

O genio de Henriqueta começou a azedar-se. E não tomava ella o trabalho de occultar seu desgosto. Julio se zangava e mais se afastava de sua mulher. Ambos começaram a lançar alicerces de um templo de infortunio.

CAPITULO II

Aos dias de paz e ventura seguiram-se dias de guerra surda e de amargura. Henriqueta tinha para si, que seu marido desde que deixara de ser seu amante, havia tomado outros amores; e o fazia seguir por toda a parte, espiava-o, consumia-o. Máo plano para attrahir um marido!... Julio, em retribuição, fugia-lhe cada vez mais. A frieza d’elle se communicou ao coração da esposa. Esta já o não amava, mas zelava-o sempre. Se ás vezes se reprehendia a si

mesma pela pouca affeiçao que sentia por Julio, logo se desculpava pensando:

— Sou muito bôa por comparar a minha indifferença com a d’elle. Perco-lhe o affecto com razão, e fui abandonada sem motivo: os escandalos apartam amor.

Assim estes dous loucos se tornaram desgraçados reciprocamente; em vez de procurarem a ventura domestica, que ambos podiam e deviam gozar, tinham ao menos a prudencia de occultar aos olhos do publico seus desgostos particulares. Henriqueta não fazia pequeno sacrificio n’isso, principalmente quando alguem lhe gabava a amabilidade de seu marido, ou o seu bom porte.

Julio era menos infeliz que sua mulher, pois não tinha no coração o inferno dos zêlos, e se alguma cousa em casa o mortificava, sabia, e esquecia seu desgosto.

E’ a vantagem que os homens teem. Se em casa não são felizes, o mundo que é uma especie de segunda familia para elles, (se ás vezes não é a primeira) os consola dos desgostos domesticos.

Henriqueta pois soffria mais, e tambem o merecia, porque era mais culpada. Era ella sempre que encetava questões desagradaveis. Um dia lhe disse seu marido:

— A tua amiga Clementina andava fazendo compras na calçada dos Clerigos, e me disse contava hoje á noite comtigo. Tem visitas.

— Irei, se tu fores—respondeu ella.

— Não posso acompanhar-te. Quero ir ao theatro. Ha peça nova.

Ella calou-se, mas ficou com ar descontente. Fingiu-se Julio desentendido, e agarrando seu filho, que corria pela casa, o beijou muitas vezes e disse a sua mulher:

— Muito se parece o nosso Augusto comtigo! Tem os olhos mais lindos!..

Eu conheço a belleza dos meus pelos seus effeitos. Não ha supplicio egual para ti ao de vel-os uma hora no dia.

—Só se eu passasse a minha vida prezo a ti com uma grilhêta, é que te mostrarias satisfeita.

— N’isso creio que mostro ter-te affeição... Os laços que nos prendem ás pessoas que amamos, nunca nos parecem cadeias insuportaveis.

— Eu não chamei cadeias insuportaveis aos laços que nos prendem. Não invertas as minhas palavras.

— Como tomaste o recado para ti!.. Não te nomeei.

— Mas eu percebo-te.

— Bom é isso.

— Henriqueta, não sei que gosto tomas em nos tornar infelizes!...

— Bem sei que ha muito tempo te faça infeliz.

— Estás cada vez mais impertinente.

—E’ com a edade. Ha um anno a esta parte envelheço todos os dias a teus olhos muitos annos.

Julio pegou no chapeo, dizendo:

— Vir-me-á a ser impossivel passar alguns momentos com meus filhos!... Estás insuportavel!

E saiu zangado.

Henriqueta fechou a porta, para chorar á vontade.

Seu filho corria pelo aposento sobre uma bengala de seu pae. Até aquelle dia nunca o pequeno fez reparo nas lagrimas de sua mãe; mas n’esta occasião olhava-a ( attentamente, e, vindo a ella, gritou:

— Mamã... mamã; não chore que lhe dou o meu cavallinho.

Henriqueta abraçou e beijou seu filho com a maior ternura e pensou:

— Preciso d'ora em diante guardar-me de Augusto. Não deve vir a presumir que tenho razões de queixa de seu pae.

O constrangimento em que se pôz por causa de seu filho, foi-lhe saudavel. E quando veio a noite resolveu ir a casa de Clementina. Podia saber d’ella se Julio passeara só pela calçada dos Clérigos, e veria tambem se lá estava uma outra senhora, de quem mais zelava Julio, ou se ella iria ao theatro, como desconfiava.

Não estava lá. Fatal coincidencia, que mais azedou a espoza de Julio.

Clementina era a peior amiga que Henriqueta podia ter; porque tinha um porte regular; mas não amava a virtude tanto como devia. Nem a ella comtudo dizia a filha de Henrique de Moraes as suas tristezas; mas n’esta noite era tão infeliz, que ella as adivinhou, e lh’o disse.

— Não sei que tens! Que te mortifica?

— Nada. Doe-me a cabeça alguma cousa. Fiz mal em sair e retiro-me já para casa.

— Estás douda?! Se queres descansar, vai um pouco para o meu quarto. Não consinto, que te ausentes. Quando se não está, bom, é que são as precisas distracções. Tomara eu saber o que se póde fazer sosinha em casa!... Faria rir, se tu, na tua edade te emparedavas! E tens muito geito para isso! E, olha, está aqui um amigo de meu marido que se iria deitar ao Douro, se tu fugisses já.

— E' muito natural.

— Fóra de graça, fizeste hoje uma conquista papa fina!

— Que estás a dizer?!

— A verdade. Ha um certo sujeito que morria de amores por ti antes de ver-te. Veio ao Porto a negocios, e protestou que não se iria sem conhecer-te. Mas tu... é preciso prometter uma missa ás almas para se alcançar a dita de enchergar-te!

— Estás hoje muito divertida.

—Fallo sério. Tens um adorador, e vou apresentar-t'o.

— Fazes com que me retire immediatamente.

—Tens medo ?!

E Clementina soltou uma risada.

— Não tenho medo ; mas não devo comprometter a minha fama fallando com um louco.

— Não temas, que queira comprometter a tua reputação. Não sou eu tua amiga? Bem sei o que te fica bem e o que te fica mal. Nenhum risco corres em fallar com o amigo de meu marido. Elle não quer passar por teu amante; é-o sómente no fundo do coração. Não te espantes com tão pouco, e não deves dar-te por entendida de cousa que deves ignorar. As creancices é que compromettem o credito. Todos sabem que adoras teu marido, que, a fallar verdade, devia mostrar-se mais grato ao amor de uma esposa como tu; e acompanhar-te mais a miudo. Mas parece que gosta mais de andar por sua conta e risco... Leva-te poucas vezes ao theatro, e ha um seculo que ninguem te vê nos bailes.

— Não gosto de bailes.

— Se teu marido te levasse mais vezes, havias de gostar. Permitte-me que te diga uma coisa... bem sei que não tem remedio... mas sou muito franca. Porque não casastes antes com Carlos da Silva? Como elle te não faria feliz!

— Conheces Carlos da Silva?

— Se conheço?! E’ o amigo de meu marido, em que te fallei.

— E elle está aqui?! Deixa-me retirar.

— Estás dicididamente douda! Que se diria, se tu saías a esta hora?... Não consinto que faças disparates. Essas parvoices é que muitas vezes compromettem a melhor fama. Que pódes receiar ? Creio que não tens medo de te namorares de Carlos. E teu marido não é zeloso. O mundo te conhece.

— Porém, se Carlos diz...

— O pobrezinho não diz nada que te desdoure. Antes de tu chegares estava n’um alvoroço... Quando te viu, ficou assombrado e murmurou a meu marido:—Que formosura! Nunca vi uma mulher assim.

Clementina detinha Henriqueta, que no fundo d’alma não tinha já desejos de se ausentar. Queria conhecer aquelle que rejeitara, e ao qual parecia tão bem. Não se lembrava que Julio tambem ao vel-a a primeira vez ficara enlevado.

O marido de Clementina veio n'este momento apresentar o amigo á amiga de sua mulher.

Henriqueta o recebeu o mais natural que pôde, mas o coração batia-lhe a rebate, como para advertil-a de que se aproximava inimigo, e era mister retirar a tempo. No entanto não tornou a esposa de Julio a fallar em ausentar-se. Carlos era tão amavel... e fazia-lhe a côrte com tanta delicadeza e modestia...

O mancebo occultava no fundo do coração a paixão, que o devorava, para não espantar a caça (em phrase de caçador) e ella sem o pensar, se deixava apanhar na rede. Quando se retirou ia melancolica e perturbada. Pela primeira vez sentia desprazer de achar já em casa seu marido; e tambem pela primeira vez, desde muito, não lhe deu piques pelas pessoas que elle veria. O pobre Julio se regosijava de ver sua mulher docil e boa; e ella tinha a culpavel loucura de comparal-o em segredo a Carlos, e de achar este superior ao outro.

— Fui injusta ! pensava ella suspirando. E a razão não lhe dizia que, se fôra injusta quando rejeitara Carlos, era agora criminosa em preferil-o.

CAPITULO III

Depois da fatal noite, em que a filha de Henrique de Moraes viu Carlos da Silva, encontrou-o muitas vezes, e mais e mais lhe parecia amavel e interessante, e cada vez menos temivel. Já não tinha difficuIdade em sair sem seu marido, antes procurava pretextos para isso. A louca enganava-se a si mesma. Julgava-se no mesmo terreno, e adiantava-se a passos de gigante no caminho da perdição.

— Não amo Carlos, dizia comsigo, é por compaixão que o soffro. Se a sua conversação me agrada, o mesmo succede a Clementina. Se eu fosse solteira, poderia apaixonar-me por elle; mas no meu estado nada tenho a receiar.

Dizia ella isto para se illudir, mas no fundo do coração lhe bradava ha muito uma voz que se acautelasse. Esta voz importuna foi desprezada, e a imprudente continuou a seguir seu gosto, frequentando cada vez mais a casa de Clementina, e todas as outras, onde encontrava Carlos.

E’ mais perigosa para uma mulher uma amiga louca, que um amante apaixonado. Se Henriqueta não tivesse Clementina por amiga, talvez houvera arredado Carlos a tempo; mas as insinuações da amiga eram sempre em favor do amante, que nada mais desejava senão adorar em segredo, e chorar o bem que perdera.

Julio no entanto se applaudia de ter conduzido sua mulher aos termos, em que queria viver: saía e entrava sem que ella o mortificasse já. Ha muito precisava elle ir a Inglaterra, por causa de negocios; e como via sua esposa sem os malditos zelos, que tão tristes dias lhe deram antes, julgou a occasião propicia, e fallou n’isso a Henriqueta. Ella empallideceu; teve medo de ver-se só. Já ha muito que não fazia caricias a seu marido, porque não era impostora, mas n’esta occasião lançou-lhe os braçôs ao pescoço, e desfez-se em meiguices pedindo-lhe que a não abandonasse.

— Abandonar-te! minha Henriqueta, respondeu Julio, retribuindo-lhe suas caricias, abandonar-te! Antes morrer mil vezes. Mas deixar-te por alguns mezes, não é abandonar-te. Quando nos tornarmos a ver seremos outra vez noivos.

— Julio! bradou ella angustiada, não vãs!... Ouço dizer que a mulher longe do marido é fraca... Tenho medo de ficar só.

Elle julgava serem estas expressões restos do genio zeloso de sua mulher, e lhe respondeu sorrindo:

— Ou só ou comigo é sempre forte a minha virtuosa esposa... Fio-me tanto em ti, Henriqueta, como em mim.

Ella cobriu o rosto com as mãos. Esteve quasi tentada a confessar a seu marido, que poderoso inimigo ameaçava a sua honra; mas seria destruir a felicidade do pae de seus filhos, e a paz domestica, e suscitar rixas entre seu marido e Carlos. EIles viam-se e tractavam-se com politica, mas não se amavam; e pouco bastaria, para que se tornassem inimigos declarados.

— Expulsarei a imagem de Carlos, pensou ella... Começa na verdade a interessar-me demasiado! Evitarei tornar a vel-o. Irei passar algum tempo com meus paes, e farei com que elles obriguem Júlio a não me deixar.

Tomando esta resolução disse a seu marido, que queria ir passar alguns dias a Rivaes. Julio adivinhou que ella queria ajudar-se da auctoridade dos paes para o não deixar partir. Dissimulou e lhe disse que sim; que o pae estava sempre a pedir sua neta, e a mãe, Augusto. Que iriam todos alegrar seus paes. E ria comsigo mesmo de que ella fosse adiante de sens desejos.

Tinha disposto a sua partida para muito breve, e estimava deixar a sua familia em companhia dos paes de Henriqueta.

A tenção que sua esposa tomara de evitar Carlos, foi n’essa mesma occasião quebrada. Veio Clementina a buscal-a para ir jantar com ella, e á noite ir ao theatro.

E ella foi!... Carlos era amigo da casa, acompanhon-as sempre. De manhã foram passear ao jardim, jantaram todos, e á noite foi tambem com ellas ao theatro.

Já alguem murmurava de Clementina. A ella pareciam ser dirigidos os obsequios do mancebo. Henriqueta, ajudada por sua amiga, que gostava d’estas scenas de apparatosa sensibilidade, disse a Carlos que era preciso romper a relação d’amisade que os unia, pois, por innocente que fosse, podia parecer a alguem pouco conveniente. Carlos quiz reagir. Henriqueta persistiu, e Clementina sustentava que a sua amiga tinha razão, mas accrescentava logo com um suspiro;—E é pena, meus ricos amigos!... Tinheis nascido um para o outro. Se a minha amiga tivesse conhecido o snr. Carlos em solteira!... Mas tambem eu sou muito franca; porque não veio v. s.ª ver aquella que pretendia para esposa?... Agora soffra as consequencias do seu desleixo. Etu tambem, Henriqueta, porque rejeitaste o senhor Carlos, que tão bom porte tem tido sempre, e credito de que é um excellente cavalheiro?... Mas tudo isto vem fóra de tempo. Não ha remedio agora senão sujeitarem-se a viver longe um do outro.

Com estas e outras phrases, de sensibilidade affectada e de virtude forçada e manca aggravava o mal.

Carlos ficou, ao que parecia, em profunda melancolia o resto do dia. Henriqueta tambem triste e abatida; e a sua perigosa amiga espalhava entre os dois consolações e preceitos de virtude duvidosa.

A esposa de Julio recolheu-se a casa com a alma despedaçada de angustia. Pensava que tinha feito uma grande cousa!... E Carlos se retirou mais que consolado. Ia contente. Deu-lhe a certeza de ser amado com paixão a profunda magoa, com que Henriqueta lhe dissera que era preciso não tornarem a ver-se. Em taes casos o melhor remedio é poucos ajustes e declarações. A ausencia sem preleminares de despedidas vale mais que todas as razões e phrases de boas tenções.

Henriqueta foi pura a quinta de seus paes com seus filhos e marido. Este voltou para a cidade promettendo regressar no dia seguinte. Não tornara a fallar na sua viagem, e Henriqueta quasi esquecera tal projecto. Ella não pensava senão em Carlos, que julgava não tornaria a ver Julio não tornou a Rivaes. Escreveu a dizer que graves negocios o detinham no Porto.

Henriqueta folgou com isso. A sua pesada melancolia daria que pensar a Julio; dos paes se occultava ella, mettendo-se pelos sitios mais reconditos da quinta, emquanto elles se entretinham com os pequenos. As cartas de Clementina ateavam aquelle incendio, qne lhe ia dentro do peito. Cinco dias depois recebeu carta de seu marido o da sua pessima amiga. A d’esta foi lida primeiro. Vinha toda cheia do que dissera Carlos; até havia chegado a fallar em suicidio! Henriqueta chorou com desesperação. Ouvia os pés de seu pae, e se apressou a esconder a carta de Clementina, e a abrir a de Julio.

— Ah!... disse o pae ao vel-a, já sabes, que teu marido partiu para Inglaterra?... Mas não é preciso chorar assim. Elle prometteu-me que se não demoraria muito.

As lagrimas de Henriqueta seccaram-se. Ficou aterrada por um pedaço, mas foi-se animando, e quasi se alegrou de saber que estava livre por algum tempo. Seu amante estava Ionge: ella estava com seus paes; que podia temer? Nada tinha na verdade que receiar, se antes não tivesse feito conhecer que a paixão d’elle achara echo em seu coração.

Pensou com satisfação que teria tempo para chorar e esquecer Carlos, emquanto Julio andava longe; mas não procurou esquecel-o, e só cuidou em choral-o.

Um dia, em que triste e abatida se embrenhava na mata da quinta, para se entregar a seus criminosos devaneios, viu vir para ella um homem em trajes aldeãos; quiz evital-o, mas elle correu e se precipitou a seus pés. Era Carlos.

A esposa de Julio mostrou encolerisar-se; mas elle a apazigoou com mil juramentos de lhe querer só dizer um adeus eterno. Protestava ao mesmo tempo uma paixão respeitosa, um amor sem esperança. Carlos ia partir para o Brasil, sem outro fim que fugir da terra em que vivia a uni ca mulher que o podia fazer feliz.

Ella lhe perdoou tanta ousadia com a condição de não tornar a procural-a. E retirou-se, ordenando-lhe que não a pretendesse tornar a ver. Ordem sem força para aquelle que sabia ser amado, e conhecia a fraqueza e imprudencia d'ella!

Henriqueta fez mil planos para o futuro; e um d’elles (o mais rasoavel e bom) era de não se afastar mais de seus paes e seus filhos.

Depressa a fatigou, porém, o constrangimento. Fechava-se no seu quarto para chorar, e chorava muito. A voz da consciencia dizia-lhe que tinha commettido muitos erros, e que estava em risco de os commetter muito maiores.

CAPITULO IV

O tempo corria muito agradavel para Henrique de Moraes e sua mulher, e para seus netos. Se alguma cousa contristava os primeiros, era verem, que sua filha andava triste, fugia d’elles, havia perdido suas bellas cores e o appetite. E quanto não se esforçava ainda Henriqueta para occultar suas penas e males!... Elles estavam persuadidos que as saudades de Julio é que

cansavam a doença e tristeza d'ella; quão longe estavam de pensar que tudo nascia agora de remorsos!...

Henrique de Moraes escreveu a seu genro a pintar-lhe o estado de sua filha, para que elle abreviasse a sua volta.

Pouco tempo depois recebeu ella carta de seu marido. Córou ao lêl-a, depois fez-se pallida. Saíu de casa, correu pela quinta, como se quizesse fugir a si mesma; foi a um bosquezinho, arremessou-se sobre um banco e soluçou sem constrangimento. Um homem vestido de trabalhador correu alli e lhe disse com um tom de auctoridade, que não dizia com seu traje humilde:

— Isto passa das marcas!... Queres que os teus criados venham aqui e te achem n'esse estado? Que accrescimo de loucura tens hoje? Henriqueta, ganha juizo. Deitas-te a perder com taes excessos. Dize, porque choras! E’ por me fazeres feliz?

— Cala-te, Carlos, bradou ella endireitando-se, e deixa-me. Hoje não posso soffrer teus discursos... Fizeste-me a mulher mais desgraçada do mundo!... Não me queixo... Tive a principal culpa do meu aviltamento e desgraça... Mas deixa-me... deixa-me agora chorar e morrer de vergonha! Não me importunes! Parte d’esta terra!... Não me tornes a apparecer... é o unico favor que te peço.

Carlos replicou com paixão e ternura:

— Que parta !... que te não torne a vêr! Ó minha Henriqueta ! pede-me antes a morte. Perdoa-me tuas penas... Fiz-te desgraçada, porque me não amas. Se me amasses, lamentarias o nosso amor?

— Não te amo, Carlos?! Achas que te não amo? Por tua causa deshonrei e atraiçoei os melhores dos paes, os mais ternos e innocentes filhinhos, e um marido magnanimo e nobre; um marido...

— Um marido que ha oito mezes te deixou sem saudades, e que passa a vida alegre com alguma amante abjecta.

— Para desculpar nosso crime não calumniemos os ausentes. Não sei de Julio nada de mal, e ainda que o soubesse... já não tenho direito do ser zelosa. Oxalá que elle não pensasse mais em mim!... Lê esta carta, que acabo de receber... Oh! meu Deus!... Chama-me a sua virtuosa esposa!... Lamenta os meus padecimentos... Vai deixar todos os seus negocios para vir viver comigo!... Lamenta a ambição que de mim o separou! Trabalhava para deixar nossos filhos mais ricos, mas diz que a felicidade está primeiro que a riqueza... A felicidade!... a felicidade!... morreu para nós.

E ella cobriu o rosto e chorou como desesperada.

Carlos pegara na carta, e sem a ler a rasgou em pedacinhos, amarfanhou-os, e os lançou longe. Depois lhe disse:

— Julio vai chegar. E’ preciso que te occultes a suas vistas, Henriqueta.

—Oh!...bem o queria!...Carlos, chegou o tempo de me provares o teu amor... de me fazeres vêr que, se eu te sacrifiquei os meus deveres... deveres de filha... esposa e mãe... os deveres mais sagrados, não tenho ao menos empregado mal meu criminoso affecto, faz-me um sacrificio... (muito ligeiro em proporção do que eu te fiz) mata-me... mata-me e foge! Ainda deves ter aquelle punhal com que te quizeste suicidar á minha vista. Mata-me, Carlos, e eu abençoarei a mão que me ferir.

— Henriqueta... meu amor, estas em uma allucinação terrivel!... Socega, e escuta-me.

— Ah!... não!... estou em meu juizo. Allucinada estava eu quando perdi o direito de ser respeitada... quando me aviltei a meus olhos e aos tens.

— Aos meus és sempre um anjo. Não me peças que te mate. E’ pedir impossiveis. Não teria animo, ainda que o quizesse.

— E tiveste animo para me tornares desgraçada!

— Fiz-te desgraçada porque te amava muito, e tu me amavas pouco. Se tu tivesses por mim a paixão que me inflamma, quanto não seriamos felizes!... Iriamos para a Bahia...

— Cuidas que eu teria animo para affrontar assim a opinião do mundo?

— Mudarias de nome; passarias por minha esposa, e sel-o-ias diante de Deus. O matrimonio que contraistes foi iniquo... foi sacrilego. Rompe-o. Deixa livre esse homem que te não merecia. Vem... vem comigo...

— Cala-te, Carlos!... Fazes-me horror! Deixar meus filhos!... meus paes!... Lançar sobre elles e sobre meu marido uma nodoa infamante! Deshonrar entes que devia honrar e fazer honrar!... Ai Jesus!... que digo? a deshonra é certa...

— Foge Henriqueta, foge de toda essa gente que te insultará porque tu tiveste um coração sensivel. A honra ou deshonra são cousas que ás cegas applica o mundo como lhe parece. Muitos, dignos do patibulo, são estimados; outros, merecedores d'uma coroa, soffrem despresos. Foge de quem te ha de despresar porque foste mulher fraca, e não criminosa.

— Não... isso não! Fugir é augmentar meus erros.

— Terás animo para soffrer a colera de teu marido?... As reprehensões de teus paes?... As vistas dos teus criados?... O despreso de toda essa gente selvagem que se regosijará de vêr sem prestigio a mulher que a opinião publica tinha sempre respeitado?... Vem comigo, serás a minha esposa... O meu anjo!... Estarás cercada de respeitos que mereces, e das minhas adorações e amor. Ah! minha querida Henriqueta!... se não é por ti, e por mim, se te não importa a tua vergonha e a minha desesperação, ao menos por nosso filho, foge d’esta casa!... Vê que elles terão animo para deital-o á roda ou ao monturo!... para abafal-o!...

— Não acabes de matar-me... Deixa-me!... E’ quasi noite.

— Adeus... até ámanhã. Pensa no que te disse. Além-mar nos espera... Vem ámanhã... Adeus. Ouço gente.

Carlos se retirou precipitadamente. Vinha um criado procurar Henriqueta.

CAPITULO V

Tudo se preparava em casa de Henrique de Moraes para uma festa de familia. Julio tinha chegado a Lisboa, não dissera o dia em que vinha, mas não estaria longe esse dia.

Todos andavam alegres, menos Henriqueta, que tinha immenso trabalho para occultar sna desesperação. Era naturalmente franca e custava-lhe muitissimo dissimular. Precisava sorrir quando quereria soltar gritos de angustia.

Recolheu-se um dia mais tarde que o costume de seu passeio solitario. As sombras que se estendiam sobre a natureza valeram para esconder a vermelhidão de seus olhos, e a angustia de suas vistas.

— Já estava para te mandar procurar, lhe disse seu pae, que passeava na sala com sua netinha ao collo.

— Tardei bastante... não sirvo senão para dar-lhes cuidados e tristezas, replicou ella com voz alterada.

— Que tens?.. Parece-me que estás mais incommodada.

— Não, meu querido pae. Creio que estou rouca; e doe-me a cabeça, mas estes incommodos de nada valem.

— Estás mais doente do que dizes. Apesar do gosto que tens, vaes sempre a peior. Teu marido póde ralhar-nos quando chegar. Deixamos-te muito senhora da tua vontade, e tu não trataste da saude como devias. Elle póde dizer que fomos máos depositarios, que não és a mesma, que eras, que já te não quer.

Este gracejo de Henrique de Moraes era um agudo punhal para o coração da mulher culpada, que estava dizendo comsigo:

— Terrivel verdade diz meu pae, sem o saber!...

E disse depois o melhor que pôde:

— Meu pae, dá licença que eu vá ámanhã ao Porto a casa de Julio? (Já se não atrevia a dizer: a minha casa.) Tinha alguns arranjos a fazer alli.

— Essa é boa!.. Estás emancipada. Mas se queres escutar os meus conselhos, os arranjos a que tens de attender primeiro, é de te tratar. Cuida da tua saude. Vaes ao Porto, falla com o teu medico.

— Sim, meu bom pae.

Elle continuava a passear com a menina, e proseguiu dizendo:

— Estimo que venha teu marido, porque me davas muito cuidado, e porque tambem o amo como filho, e terei muito gosto de o vêr; mas quando penso que me vão ser roubados meus netos... Hei de pedir-lhe que me deixe um d’elles. Vós podeis contentar-vos com um, emquanto não tiverdes mais.

Henriqueta passou a mão pela testa, e disfarçando seu abalo, replicou:

— Quer ficar com Virginia, não é assim?

— Com Virginia ou Augusto, não escolho, bem que este amorzinho me encante. E tua mãe é doida pelo pequeno.

— Elles são muito felizes por terem tão bons protectores!.. Não sabe, meu rico pae, quanto isto me consola.

— Que dizes?.. Consolar-te de que? Duvidas ainda que teu marido esteja a chegar?.. E’ preciso, minha filha, que não sejas tão exigente. Um homem não póde estar sempre agarrado á saia de sua mulher. Mas, como tenho visto o mal que te fez a ausencia de Julio, hei de pedir-lhe que te não deixe mais. Na minha ultima carta já eu lhe dizia que mais vale viver contente e feliz que possuir grossos cabedaes: e a resposta d’elle approvava o que eu lhe dissera, e assegurava-me que ía viver só para sua virtuosa esposa e seus innocentes filhos; que ía deixar-se do seu commercio de vinhos. Estás satisfeita?

— Sim, meu pae... respondeu ella, forcejando por suster suas lagrimas e suspiros. Depois approximou-se d'elle, dizendo-lhe com meiga tristeza:—Meu querido pae, deixe-me beijar Virginia, e abençôe-me... Quero ir deitar-me, por me doer a cabeça... e quero levantar-me cedo.

A pobre Henriqueta beijou sua filhinha com sofreguidão e lhe inundou o rosto de lagrimas, abraçou seu pae e lhe beijou a mão. Elle lhe afagou as faces, dizendo:

— Deus te abençôe. Choras!..

— Choro tanto de ternura e alegria, como de tristeza... O amor que o pae tem a meus filhos...

— Está bom... Chorar de tristeza ou de ternura deve augmentar-te as dôres de cabeça.

— Tem razão... Adeus, meu pae.

E saiu precipitada. No corredor encontrou sua mãe, de quem se despediu. Alli estava já muito escuro, e suas lagrimas não foram vistas.

Vinha um criado com luz e ella se apressou a deixar sua mãe.

Chegando ao quarto arrancou os cabellos com desesperação, e correnda para o leito se arremessou n'elle estorcendo-se, e ferrando nos lençoes para abafar seus gritos. Uma criada entrou com luz.

— Põe essa luz longe, balbuciou ella: doe-me a cabeça.

— O snr. Henrique e a senhora, mandam perguntar se quer tomar alguma cousa, disse a criada.

— Não quero nada, Rosa.

— A senhora disse que vinha logo cá vêl-a.

— Que não venha... que não venha. Ella custa-lhe andar depois da queda que deu; e eu do que preciso é de socego. Vou dormir... mas queria antes beijar meu filho. A’manhã partirei muito cedo para o Porto. Vai-o buscar. Mas... olha uma cousa. Eu espero voltar ámanhã, mas... quem sabe? Posso ter occupações que me demorem. Toma conta em meus filhos... e trata minha mãe como agora. Tu és uma boa rapariga.

— O’ snr.ª D. Henriqueta!.. quem póde ser máo n’esta casa?..

— Tens razão... só uma pessoa como...como ha algumas, podia aqui ser má. Vai buscar meu filho.

Rosa foi buscar o menino, e voltou logo com elle.

Henriqueta tinha-se erguido do leito; estava sentada longe da luz, e disse á criada:

— Deixa aqui um pouco Augusto. Vem buscal-o logo.

Rosa saíu. Henriqueta fechou a porta e pegando em seu filho nos braços tornou a sentar-se. As lagrimas lhe corriam em fio, contemplando o bello rostinho do pequeno e o comia de beijos.

— Que tem mamã?.. disse a creança lançando os bracinhos ao pescoço d’ella. Está a chorar?.. Mordeu-lhe alguma vespa? Tambem mordeu uma na menina, e ella chorou tanto!.. (coitadinha!..) mas eu hei de matal-as todas... todas! A avó diz que se podem matar, porque não fazem mel como as abelhas.

— Segue sempre os conselhos de teus avós... e dá-lhes muitos abraços e beijos, dizia Henriqueta suffocada em chôro, e apertando seu filho ao coração. Faze-lhes sempre a vontade... e sê muito amiguinho de tua irmã, e... e... Queria dizer-lhe mais, porém os soluços lhe embargaram a voz.

— E porque chora mamã?..

— Porque... tenciono ir ámanhã ao Porto, e... estou com dôres de cabeça; mas vou-me deitar, e ámanhã levantar-me-ei bôa.

E forcejou por suffocar o pranto, e continuou:

— Obedece sempre a teus avós e... a teu pae... para que elle te perdôe... quando fizeres alguma cousa que lhe não agrade.

— Sim, mamã. Elle ha de me trazer um cavallinho de Inglaterra!..

— Não deves esperar que elle te traga nada. Andam a metter-te tolices na cabeça. Tomáras tu que elle te trouxesse o seu amor... e t’o conservasse sempre.

— Não se agonie commigo, mamã. Beije-me e chame-me o seu Nini, que eu hei de ser sempre bonito, e não hei de tornar a fallar no cavallinho que o papá me ha de trazer.

Henriqueta cobriu seu filho de beijos e lagrimas.

— Torna a chorar, mamã?..

E o pequeno poz-se tambem a chorar.

— Já te canso penas, meu filho?.. Perdôa-me... não chores... não chores, meu Nini, olha... estou já melhor... já não choro. Pede a Deus, quando te deitares, por mim...

Pede-lhe que nos tornemos a vêr... no céu, accrescentou mentalmente.

— Leve-me comsigo, mamã. Leve-me comsigo e não chore.

— Oxalá que podesse!.. Mas não!.. Deus me livre!.. Tua avó ficaria muito triste, se a deixavas, meu filhinho.

— Pois então não ha de chorar mais, não?..

— Não, meu filho, não choro mais. E se fores bom... nunca mais me has de vêr triste. Mas não digas a ninguem que me vistes chorar. Se tua avó o sabia, chorava tambem, e não a devemos affligir. Deves fazer sempre por lhe dar alegria. Ama-a sempre muito e ao avô. Faze-lhes muitas meiguices e a teu pae, para... que elle seja teu amigo.

— Assim, mamã?

E elle acariciava as faces de sua mãe. Ella fechou um momento os olhos, depois continuou, beijando-o:

— Sim, meu adorado filho? E sê muito bom para tua irmã. Ella (pobrezinha!..) chegará a tempo em que talvez ninguem a ame. Seu avô não é novo, sua avó padece... mas tu has de amal-a e protegel-a.

— Sim, mamã. Não irei no carro do cazeiro, antes hei de ficar sempre a brincar com ella; e hei de matar as vespas todas, para que lhe não ferrem.

— Sim, meu filhinho. Sê o seu protector. Defende-a sempre...

A criada forcejava por abrir a porta, julgando-a cerrada. Henriqueta foi-a abrir com seu filho nos braços, e dando-lhe um ultimo beijo, o poz no chão para ir com a criada, e ficou á porta emquanto o avistou; depois entrou e debruçou-se no leito pensando:

— E’ para sempre!.. para sempre!.. Nunca mais o verei... nem a Virginia... nem a meus paes!.. nem... nem a todos os que tenho amado em tempos felizes!..

Quando a criada tornou, achou-a deitada; parecia dormir. Saiu succintamente. A infeliz não fechou os olhos senão para não vêr o reflexo da luz da lamparina. A cabeça lhe doía horrivelmente.

No dia seguinte foi para o Porto, e de lá escreveu a seus paes, dizendo que sabia que seu marido vinha por terra, e que ía ao seu encontro, e mettendo-se n’uma sege partiu de casa, seguida por um criado que tinha ha pouco. Julio chegou n'um vapor, e dizendo-se-lhe que sua mulher fôra por terra ao seu encontro, se affligiu e admirou de tal disparate. Subiu ao seu quarto para descansar, e achou a seguinte carta:

«Não te escrevo para pedir-te perdão da deshonra que te lego e a nossos filhos... sei que o não mereço. As reprehensões que me faz a consciencia não são menores que as que tu estás em direito de fazeres á minha memoria. Deixo-te para ser desgraçada. Não poderia encarar-te!.. Ah!.. Julio!.. que não herdem nossos filhos o odio que terás com justiça á mãe. Elles são innocentes. E bem tenrinhos ficam abandonados de sua criminosa mãe!.. Adeus, Julio... fiz a tua desgraça e a minha!.. Se ousasse, te pediria que me perdoasses na hora da morte... mas sou indigna de todo o perdão!.. odeia-me... Esquece-me!.. e ama Augusto e Virginia, e meus pobres paes. Adeus até o dia tremendo, em que tão espantosas contas tenho de dar... Adeus.»

Narrar o desesperado frenesi de Julio é impossivel.

Por felicidade estava só, e pôde dar livre curso á sua angustia sem testemunhas. Quando teve valor para senhorear suas sensações, montou a cavallo e partiu em seguimento de sua criminosa esposa; passados dias voltou e procurou occultar ao mundo sua deshonra e a de seus filhos.

Deixaremos porém os trahidos para seguir a traidora.

CAPITULO VI

Henriqueta chegou á Bahia com Carlos, e lá passou por sua esposa. Se não fossem os remorsos e as saudades poderia ella ser feliz no primeiro anno em que foi rodeada de attenções pelo seu amante; mas apenas este saía de casa, ella ía á janella d’onde via o mar, e chorava amargamente.

Como queria viver muito retirada, Carlos estava com ella n’uma quinta, e nos primeiros tempos só ía á cidade, quando a necessidade o forçava a isso; porém a sua paixão foi esfriando, e os pretextos começaram a ser frequentes para deixal-a. Henriqueta não se queixava. Tinha deixado de ser zelosa. Até ás vezes o via sair com prazer, para poder entregar-se a seus negros pesares. A criminosa infeliz não era a mesma, nem no physico, nem no moral. Seu rosto se defecava e emmurchecia, seu caracter se purificava no crisol da infelicidade. No coração e alma era mais virtuosa, para assim dizer, do que no tempo em que o seu porte era bom; pois odiava o crime mais que nunca; e, se não fôra um filho que tinha de Carlos, tel-o-ia deixado, ou antes não o teria seguido. Mas o pequeno Eduardo não era bem visto de seu pae. Era feio, doente, e lhe recordava uma culpa, que tão más consequencias tivera. A mãe era mãe. Amava o pequeno e se compadecia d’elle. E não se atrevia a deixal-o ao pae, temendo

que o abandonasse, nem a leval-o comsigo para morrer de miseria.

Estava ella um dia com seu filho nos braços, e derramava lagrimas, lembrando-se dos filhos que não tornaria a ver. Ouviu cavallos. Devia ser o pae de Eduardo; enxugou os olhos e procurou aparentar socego. Carlos entrou com um amigo; unica pessoa a quem ella tinha consentido vêr, para satisfazer Carlos.

— Emilia, disse Carlos, (ella havia tomado este nome) faze favor de entregar o pequeno a uma negra. Não posso ouvil-o rabujar. Tenho-te pedido muita vez que não estejas com elle ao collo; isso faz-te mal.

Henriqueta entregou, suspirando, a criança a uma escrava. Rodrigo, o amigo de Carlos, disse a este:

— Não ha casa, que eu goste de frequentar como a tua. Além do favor que me fazem em me tratarem com amizade, sinto uma verdadeira ventura ao vêr tanta paz e ordem, e tanta doçura para os negros. A snr.ª D. Emilia é um anjo. Bella, amavel, boa, virtuosa!.. Se eu soubesse que achava uma esposa assim, casava-me já.

Henriqueta córou e descórou. Carlos fingiu rir e replicou para que mudasse a conversa:

— Casa depressa. Quero dançar-te na bôda. Mas já que fallei em dançar... Conta-me cá; foste hontem feliz? Que tal esteve o baile? Não me disseste ainda nada d’elle.

— Oh!.. diverti-me muito!.. Eu bem queria, que fosses com a senhora. Succedeu lá um caso de summa pilheria. João Felizardo tinha trazido de Inglaterra uma linda moça, que nos impingiu por sua mulher.

— Ora!.. Todos sabem isso!

— Tu sim, mas a senhora não. Ella não falla com ninguem; vive só para seu marido e seu filho. Se todas as mulheres cumprissem assim os seus deveres...

— Conta-nos como foi o baile.

— João Felizardo apresentou-se lá com a sua ingleza. Nós estavamos prevenidos, e os pozemos no meio da rua. Se visses como elles grumaram a affronta... Fazia estalar de riso!.. Foi muito bem empregado!.. Querer-se igualar com senhoras honradas uma aventureira!..

Carlos, abatido e desanimado, não tinha tido força de tornar a interromper o amigo, bem que adivinhasse o que estava soffrendo a sua cumplice; pois, sempre que o fizera, tirára máo resultado. Henriqueta havia encerrado no fundo d'alma os trances dolorosos porque estava passando. A’ ultima phrase porém de Rodrigo não pôde mais; levantou-se para sair; mas a vista lhe faltou e baqueou em terra. Os dous amigos a levantaram, e Carlos, para disfarce, lamentou que Emilia fosse sujeita a desmaios.

Duas escravas levaram a senhora para o leito, e a fizeram tornar a si.

N’esta occasião sentiu Carlos immensa compaixão pela mulher, que desgraçára, e, se podesse, lhe restituiria a paz e ventura, que lhe roubára, á custa de todos os seus haveres. Tarde lhe chegavam idéas generosas!.. A infeliz estava votada a uma vida de ignominia e remorsos.

Toda a noite esteve Henriqueta em terriveis agitações. Só de manhã adormeceu. Carlos saiu então. Ao voltar achou-a mais socegada; mas, apenas se viu com elle, tendo uma negra saido com Eduardo, exclamou apertando as mãos convulsas ao peito:

— Ah!.. meu Deus!.. se aquella desgraça nos succedia a nós!

— Socega, disse elle acercando-se compassivo, socega, minha querida Emilia. Ninguem duvida que és minha esposa. Todos te respeitam e amam.

—Sim!.. sei enganar melhor o publico que essa pobre ingleza!.. que recebeu todos os insultos, que eu devia participar. Por mais criminosa que ella seja, não o póde ser tanto como eu... e comtudo só tu sabes quanto sou infame... Perdôa-me, Carlos... perdôa-me por ter sido tão fraca.

— Emilia... Deixemos este assumpto. Quiz lioje comprar-te um bello mulato, para te acompanhar, quando saisses.

— Por piedade não me dês mais d’esses infelizes.

— Se tu chamas infelizes os negros que tratas como filhos, que chamarás a alguns que eu hoje vi?.. Um deixou-me horrorisado!.. Estava em uma loja humida, nú, prezo a um cepo, e ás escuras. Disse-me o senhor, que m’o foi mostrar, que elle tinha a côr esbranquiçada por estar ha tempos alli de castigo, a jejuar a pão e agua, e a

levar açoites todos os dias, não porque fosse doente... Ahi estás tu a chorar!..

— Carlos, se te deve alguns cuidados o meu socego, vai... compra-me esse desgraçado.

— Quiz compral-o, por me fazer muita compaixão, e vel-o estender-me as mãos em ar de supplica. O senhor dava-m’o muito barato, mas disse-me que não queria enganar ninguem, que o negro tinha um genio feroz, que estivera para matal-o com um machado. Antes te comprarei o mulato em que te fallei.

— Não, não!.. Compra-me o negro, que está em castigo. Mas has de me fazer mais um favor, compra-o com o preço de umas joias que trouxe de Portugal.

— Ah, Henriqueta!.. Não te pedi tanto que não trouxesses nada da casa de Ju...

— Cala-te!.. não pronuncies o seu nome!.. Faz-me um mal terrivel ouvil-o da tua bôca. As joias que trouxe foram aquellas que meus paes me deram antes de casar; e só vieram commigo como lembranças da minha vida innocente e pura. Quero vendel-as todas, se fôr preciso, e comprar esse desgraçado com

o meu dinheiro. Essa boa acção me dará muita consolação, e talvez proveito.

— Já fazes distincção do que é meu e teu?.. Guarda as tuas lembranças. Quero dar-te eu o negro. E' muito barato. Deus queira que não venha dar-te desgostos.

Henriqueta insistiu, que queria compral-o com dinheiro seu. Depois de breve debate elle cedeu. Tinha conseguido seu intento, que era distrahil-a de seus remorsos.

No dia seguinte foi Carlos á cidade, e voltou com o negro vestido de novo, e apontando-lhe para Henriqueta, lhe disse:

— José, alli está a tua senhora, que te comprou com dinheiro do seu bolsinho. Vê como te portas!.. Ella quiz-te livrar dos castigos que estavas soffrendo; vê se és ingrato.

O negro tinha-se arrojado aos pés d’ella, e lh’os beijava soffocado em choro.

Foi este o dia mais feliz, da vida errada de Henriqueta, ou de maior consolação; porque felicidade não a ha onde existe o remorso.

CAPITULO VII

Passaram-se perto de dons annos sem grande novidade no viver de Henriqueta. Só ella tinha mais vagar de chorar suas culpas na solidão. Carlos mais e mais se afastava d'ella. Parecia que lhe pesava a sua companhia.

A misera nem agora tinha a criminosa satisfação de crêr que havia sacrificado a honra, a patria, a familia, os seus deveres e todas as suas alegrias a um amante fiel: ella conhecia bem que só a commiseração e a vergonha obrigava Carlos a tratal-a ainda como sua mulher.

— Se não fôra Eduardo, pensava ella, se não fôra meu pobre filho, dispensaria Carlos d’este martyrio, fugindo, fosse para onde fosse. O’ meu Deus!.. que aviltamento o meu!.. Viver á custa de um homem que me perdeu... e que me despreza!.. Mas onde posso ir com meu filho?.. Como o poderei sustentar?.. Desacostumei-me de tal sorte de trabalhar... Apenas sei chorar.

Os mimos de Eduardo enterneciam a infeliz, e lhe retalhavam a alma, por elle ser filho de um crime, e porque d’aquella edade fôra por ella abandonado Augustinho. Os pequenos eram muito differentes porém. Augustinho aos quatro annos era bello, forte, atrevido e cheio de graciosa ignorancia, e de innocencia. Eduardo não era bonito, nem forte. Sua alma era bella, seu espirito perspicaz, mas sua timidez não o deixava mostrar o que valia. Seu pae o tinha por estupido e parvo e não o amava. O menino o temia. Todo o seu affecto se empregava em sua mãe e José.

Este negro queria adivinhar-lhe as vontades, para agradar a sua senhora.

Um dia passeava José com a creança e desviou-se um pouco para apanhar-lhe laranjas; ouviu um grito; volta-se e vê um grande mono levando o menino. Corre após elle, mas o macaco pula sobre as séves, trepa ás arvores, transpõe collinas, levando sempre a sua presa, que bradava por José continuamente. O negro perseguia-o com actividade. O mono, seguido de perto, endireitou por uma ladeira abaixo, porque não tinha por onde se safar; mas mostrava

muita inquietação; é porque no fim estava um rio e elle não podia tomar á direita, nem á esquerda. Chegando á borda do rio o manhoso animal atirou á agua a creança e trepou para uma arvore, tendo por certo que o negro o deixaria para acudir ao menino e assim foi. José se atirou ao rio, ainda que estivesse alagado em suor, e salvou o filho da sua bemfeitora.

Com o susto e com o banho estiveram ambos muito doentes; particularmente José, que esteve á morte. Quando Henriqueta viu o negro são, lhe disse, que já que outro bem lhe não podia dar em remuneração dos seus serviços, lhe dava a liberdade. Em vez da alegria que todo o escravo sente ao ver-se liberto, José mostrou no rosto intensa dor.

— Que tens, José? lhe perguntou ella admirada. Não entendeste o que te disse? E’s agora senhor das tuas acçoes. Recommendo-te, que enfreies sempre a tua colera. Os homens livres precisam tambem subjugar suas paixões.

José se lançou de joelhos, bradando:

— O negro querer ser escravo de minha senhora... Não querer nunca deixar minha senhora!...

— Meu bom José, tens-me então muita affeição?

— Sim... sim,., minha senhora.

Pois estarás commigo emquanto quizeres; mas és livre.

José beijou os pés de sua senhora, agradecendo-lhe, não a liberdade, mas o deixal-o viver com ella como escravo.

Quando elle saiu, bradou Henriqueta com as lagrimas a correr pelas faces:

— E os brancos desprezam os negros!.. Ai de mim!.. só o coração d’este grato negro me resta!.. Ninguem mais me ama!

— E eu, mãe?.. e eu, disse Eduardo, que assentado n’um cantinho do sofá tinha estado calado e attento.

A mãe tomou-o nos braços e o cobriu de beijos. A discrição prematura d’esta creança era cousa pasmosa. Conversava com sua mãe com muito juizo, e raras vezes brincava. Era triste, A melancolia da mãe e o desamor do pae o tinham tornado assim.

— Mãe, disse elle. o senhor Rodrigo disse-me que os negros são assim, para se não sujarem e nos servirem: isso póde ser?..

— Não, meu filho; o snr. Rodrigo disse-te isso por graça.

— Mas é tão feio mentir!.. O Senhor não quer que se minta.

— E’ verdade... hei de ralhar ao snr.. Rodrigo.

— Mãe, por que quer José ser negro?.. A mãe queria que elle fosse branco.

— Não, Eduardo, eu não podia querer a que Deus não quiz. Elle nasceu negro, e assim ha de morrer; mas escravo é que não nasceu. Quando cresceres havemos de fallar sobre isto mais a fundo.

— Eu queria ser muito grande... como o pae e o snr. Rodrigo, para conversar com a mãe, e entender tudo que me dissesse.

— Mas então não te terei ao collo coma agora.

— Isso é verdade!.. e é tão bom estar assim.

— Então porque foges dos meus braços a todos os momentos?

— Para a não incommodar. O pae diz que lhe faz mal pegar em mim.

— O’ meu rico filho!.. a unica cousa que me faz bem e me consola é ter-te êm meus braços.

— Ah!.. Ouço a voz do pae nas escadas... Deixa-me ir para o José?

— Sim, mas antes beija a mão a teu pae e cumprimenta o snr. Rodrigo, que tambem sobe.

Carlos entrou com Rodrigo. Havia dias que negocios ou divertimentos o tinham detido longe de Henriqueta, mas cumprimentou-a com muita frieza, e repelliu seu filho, que tentara beijar-lhe a mão.

Passado pouco foram os dois amigos passear á quinta. Henriqueta saiu tambem correndo, e foi embrenhar-se no laranjal, onde se acoitava sempre que as saudades do tempo passado, ou das pessoas que abandonara a opprimiam. Muitas e amargas lagrimas tinha alli derramado e n’este dia não foi um dos que menos chorou.

Aos seus pesares do passado se reunia, o amargor do presente, e o receio do futuro. E que viria a ser do seu Eduardo?

O pae o odiava; e ella não ousava mesmo queixar-se d’isto.

Infeliz Henriqueta!.. ainda não tinhas esgotado o calix do amargoso fel, que devias beber gôta a gôta!

CAPITULO VIII

Algum ruido e fallar a meia voz veio colher a mãe de Eduardo no meio do seu prantear, e o supplicio que então padeceu é acima de toda a expressão. Suas lagrimas se seccaram, suas faces tornaram-se pallidas, e seu corpo tremulo e coberto de suor frio curvou-se quasi sem ella dar por isso, e se occultou entre as folhas das bananeiras que estavam na borda do laranjal. Do outro lado entre Rodrigo e Carlos corria o seguinte dialogo:

— E’ o que te digo Carlos, estimo-te menos desde que lhe mostras pouca affeição. Confesso que Leonor é uma moça bonita e galante, mas que te importa a ti isso, homem casado com uma senhora de tantos meritos e virtudes? Dizes que D. Emilia vai perdendo a belleza todos os dias. Isso é verdade: mas suas boas qualidades, sua docilidade e paciencia são sempre as mesmas. Quanto mais te tornas injusto para ella, mais a admiro. Não faz uma só queixa!... uma só recriminação! Carlos, uma esposa virtuosa e boa é sempre bella para um bom marido. E quem te diz que os desgostos que lhe dás não são os algozes de seus encantos? E D. Emilia ainda tem muita belleza, e entre a maior parte das mulheres levaria a palma.

— Rodrigo, vou fazer-te uma confidencia, que nunca pensei fazer-te, para que conheças o horror da minha situação... mas não!.. basta que saibas que duas cousas me levaram a requestar Emilia, a paixão do amor por ella, e a do odio contra outro homem, que tambem a amava. Nos primeiros tempos julguei-me feliz pela possuir; porém agora que me inspira indifferença... tedio... aborrecimento... e que só me resta, para temperar estes desagradaveis sentimentos uma pouca de compaixão...

— E a estima... e o respeito?.. Mostra-lhe estes sentimentos, que são os mais duradouros, solidos e apreciaveis.

— Amor era o unico sentimento que podia mostrar-lhe; o unico que ella acreditaria verdadeiro. Estima e respeito, se os podes-se fingir, tomal-os-ia por escarneo. Emilia não é minha esposa, foi minha amante, e agora é uma mulher que sou obrigado a respeitar e fazer respeitar ao publico... já, que ao publico menti. Uma mulher que me corta as azas, se quero voar. Sou moço, rico, solteiro, e não posso escolher uma esposa entre as mulheres mais pobres.

— Quem tal havia de dizer? Não é tua esposa aquella infeliz senhora?!

— Conheces agora que tenho razão em fugir-lhe?

— Não, cada vez conheço que és mais injusto com D. Emilia. Meu amigo, sê um homem de bem. Casar com uma amante moça e bella, é cousa facil e aprazivel; mas casar com a mãe de um filho quando ella começa a envelhecer, e que o coração se inclina a outra, é um acto custoso, mas de justiça e probidade. Se D. Emilia deixou a vereda da virtude, foi de certo por que te amava muito. Tem uma alma tão nobre, um viver tão honesto, um coração tão excellente, que se torna, digna de ser a esposa de um

homem de bem. Casa com ella, meu amigo. Será sem limites a sua gratidão, se a regenerares do seu immerecido abatimento.

— E' impossivel!..

— Não ha nada impossivel no desempenho dos seus deveres. Esta maxima aprendi-a da mãe de Eduardo.

— Ella disse-te isso?.. Desgraçada!.. Os remorsos a atormentam. Tenho pena do seu soffrimento; mas que lhe hei de fazer?... Não lhe posso restituir a ventura, que lhe roubei. Fizemo-nos desgraçados um ao outro... Seremos o algoz e victima mutuamente. Estamos ligados por laços de crime, que se não podem desatar. Emilia... (nem Emilia é seu nome)...

Henriqueta estremeceu e se occultou mais entre as bananeiras. Cuidou ir ouvir seu verdadeiro nome. Carlos suspirou, e continuou:

— Essa a quem roubei a paz e ventura, e que agora faz o meu tormento, era casada; e abandonou a familia para me seguir.

— Quanto deve soffrer!.. Ah! uma mulher com as suas idéas tão culpada!.. Pobre infortunada! Não lhe mostres ao menos a falta de attenções que costumas; adoça-lhe a taça de fel que ella traga, por commiseração por ella, e por amor de teu filho.

— Não me falles n'elle!.. Ainda me aborrece mais que sua mãe. Se não fosse essa insipida creatura, nunca eu resolveria Emilia a abandonar a sua familia, e seriamos ambos felizes. E o pequeno é tão feio!.. tão estupido!.. tão fraco!.. tão desengraçado!..

— Não tem nada d’isso senão ser fraco. Tu o atemorisas. Quando está sem ti é muito ajuizado e interessante.

— Aborreço-o, e elle paga-me na mesma. Apenas appareço faz-me a graça de se esquivar.

Os dois amigos, que haviam conversado assentados n'um banco, se ergueram, e continuaram o passeio.

Henriqueta, logo que os sentiu longe, correu a casa, e ordenou a José que não perdesse o menino de vista. Parecia-lhe vêr Carlos erguer uma mão filhicida sobre a innocente creatura. E fechou-se no seu quarto dizendo, queria ficar só o resto do dia.

Carlos deixou-lhe algumas desculpas e tornou a partir com Rodrigo.

Quando a infeliz ouviu o trote dos cavallos, chamou José e disse-lhe:

— Preciso voltar á patria com meu filhinho. Só de ti me fio. Quero ir em segredo. Vai vender-me estas joias, e arranjar-me passagem em algum navio, que parta breve para Portugal; seja para que porto fôr. Serão os ultimos serviços que me farás, bom José.

— O negro irá com sua senhora; respondeu José.

— Não, meu bom José, não. Na minha patria ha poucos homens da tua cor, e os loucos (e desgraçadamente ha muitos) zombam de vós outros. Tu és arrebatado. Se ouvisses escarnecer de ti, farias alguma desordem, e serias castigado. Que afflicção não seria a minha então!..

— O negro não fará desordens, estando com sua senhora.

— Se podesses conter as tuas iras, serias desgraçado.

— Serei muito contente estando com minha senhora e o menino.

— Meu amigo, isso não póde ter lugar. Hei de viver muito pobremente; não poderei ter-te commigo. O meu trabalho chegará mal para não deixar morrer meu filho á mingua... Talvez serei forçada a esmolar um pedaço de pão.

Henriqueta cobriu os olhos com as mãos para occultar as lagrimas. O negro replicou com intimativa e força:

— O negro ha de trabalhar. A’ minha senhora e ao menino não ha de faltar pão.

— Excellente coração!.. exclamou a infeliz, abraçando o negro; que não tenha eu a abundancia em que nasci, para ter-te sempre commigo socegado e feliz!..

José confuso e interdicto se lançou de joelhos em se livrando de seus braços; e curvando-se, beijou-lhe os pés, humedecendo-lh’os com lagrimas.

— Alma generosa, proseguia ella, inclinando-se para elle e pondo-lhe a mão na cabeça, levanta-te e attende-me. Não devo acceitar o teu sacrificio, mas levarei no coração a lembrança da tua dedicação. Meu bom José, em Portugal não terias em que

ganhar o teu pão, quanto mais o meu e de meu filho!..

— Lá os senhores não fazem barbas?

— Fazem.

— Então o negro ganhar lá sua vida.

— Queres por força ir?

— Sim, minha senhora, mas antes... meu senhor não escapar ao negro, que é máo para minha senhora tão boa.

O negro pronunciou estas palavras com uma vista tão feroz, que a mãe de Eduardo estremeceu, e para desviar o crime exclamou com força:

— Malvado!.. Querias matar o senhor que te tirou dos ferros?.. Vê o que fazes!.. Um assassino me faria horror.

O negro sem perder a vista ferina abaixou um pouco a cabeça, balbuciando:

— Elle ser máo para minha senhora...

A pobre Henriqueta assentou abater-se na opinião do negro, para o estorvar de commetter o crime, e replicou, cobrindo os olhos:

— Estás enganado, José. Não fujo ao snr. Carlos, porque elle me trate mal. Deixo-o, porque é esse o meu dever. Elle não é meu marido... nem o póde ser. Sou a mulher mais culpada do mundo todo. Abandonei meu marido... meus filhos... meus paes... para seguir aqui o snr. Carlos. Agora o deixo para viver com o filho que me resta. Já vês que não sou digna do respeito e estima que me tinhas. Mas assim mesmo espero que me farás os serviços que te peço.

José ficou cabisbaixo e calado. A pobre senhora murmurou com as lagrimas nos olhos:

— Até este coração me foge!..

O negro ergueu a cabeça e as mãos exclamando:

— Negro amar sempre e respeitar minha senhora. E querer ir com ella para toda a parte.

Henriqueta consentiu que elle a acompanhasse com a condição que não faria mal a Carlos; e elle retirou-se cheio de jubilo por lhe ser permittido acompanhar uma pobre senhora e uma creança inerme a terra estranha, e sustental-as com o seu braço.

Oito dias depois recebia Carlos na cidade a seguinte carta:

«Quando receber esta carta estará livre de mim. Não me queixo... (eu fui a mais culpada) e lhe perdôo. Maria fica com todas as chaves. Recommendo-lhe esta fiel negra, e todos os outros escravos. Póde declarar que o nosso casamento era ficticio; mas peço-lhe por caridade que não diga o meu nome, nem mesmo ao seu amigo. Adeus, snr. Carlos, até ao dia em que havemos de dar contas... e que terriveis serão!.. contudo Deus é de infinita misericordia. O nosso arrependimento póde merecer-nos o perdão. Adeus... Esqueça-se que existiu no mundo a desgraçada—Emilia.»

CAPITULO IX

E’ onze annos depois que vamos encontrar Henriqueta em Lisboa n’uma pequena casa do bairro d’AIfama. E quem reconheceria n’ella a antiga belleza de Rivaes?... Seus cabellos estavam brancos, seus

olhos encovados, e suas magras e pallidas faces já mostravam muitas rugas.

Parecia uma sexagenaria que na mocidade tivera feições regulares, e tinha de quarenta e dois a quarenta e tres annos.

Ella trabalhava de dia e de noite, tanto para se distrair de seus pesares, como para concorrer para os gastos da casa; mas os trabalhos d'uma mulher dão tão pouco lucro que, se não fôra José, teria a pobre senhora morrido á mingua e mais seu filho.

O negro a barbear e fazer outros pequenos serviços ganhava bastante, porque era geralmente bemquisto pela sua actividade, honradez e humildade. Primeiro havia sido arduo a José ouvir os rapazes zombar d’elle, mas acostumou-se de tal sorte, por amor de sua senhora, a fingir-se surdo, que por fim já nenhuma chufa lhe fazia mossa, e por isso mesmo já ninguem o incommodava.

Um dia, que Henriqueta trabalhava de tarefa, como sempre, entrou seu filho. Trazia um rolo de papeis na mão. Andava na aula de desenho. Pousou os papeis e o chapeu e correu a sua mãe.

Este mocinho, alto, magro e pallido, tinha rosto interessante e meigo, mas dava mostras de pouca saude. A sua natureza era debil, sua alma delicada. O traje de Eduardo era muito simples mas de uma extrema nitidez e asseio.

Henriqueta vestia roupas escuras e grosseiras e talhadas com extremo desalinho. Se algum gosto lhe restava pelo trajar casquilho, ella o empregava em seu filho.

Beijou Eduardo com muita ternura as mãos de sua mãe. Esta lhe sorria melancolica. Elle se assentou em um banquinho a seus pés, e lhe disse, estorvando-a de trabalhar:

— Nunca ha de ter descanso?... Nunca ha de divertir-se com algum passatempo?... Trabalha sem cessar, e isso lhe faz mal.

— Não, meu filho, respondeu ella, anediando-lhe a cabeça; o trabalho me faz hem, e tenho todos os dias o melhor divertimento que posso ter. Vejo-te, fallo-te, recebo as tuas caricias: Deixa-me agora acabar este vestido, que é d'uma vizinha que tem pressa d’elle.

— Faz-me tanta pena ver a azáfama com que trabalha sempre!... Tenha paciencia, por ora não a deixo continuar. Deixe-me tornar a beijar-lhe as mãos. E repita-me que a minha presença lhe dá prazer: tenho precisão d’essa segurança. A’s vezes... muitas vezes me parece que em logar de alegria, lhe dá pesar a minha vista.

— Oh, meu filho!... não penses isso!

— Penso, minha mãe, e tenho razão para o pensar. Ai Jesus, Jesus!... minha, querida mãe... tem razão de se mortificar commigo. De que sirvo eu no mundo? Fraco e, doente, para nada presto. Só sirvo para dar-lhe trabalho e canceira, e ao nosso bom José, e em retribuição que lhes-dou!... Sou muito desgraçado pela minha inutilidade!...

— Meu adorado filho, pelo amor de Deus não me digas que és desgraçado!...

— Perdoe... Sou-o, porque a vejo padecer, e não posso alliviar suas tristezas. Não posso perdoar a meu pae... Não me ralhe... Sei que não devia dizer isto, nem pensal-o; porém não tenho a sua virtude e bondade.

— Que offensas tens de teu pae?!... perguntou a infeliz córando e fazendo-se pallida alternativamente.

Eduardo deixava cair algumas lagrimas nas mãos de sua mãe que tinha entre as suas, e apertando-as ao coração, respondeu:

— Perdoe... sei que tem querido enganar-me... Meu pae não morreu. Lembra-me muito bem que viviamos em uma linda casa e quinta; e que muitos pretos nos serviam. Meu pae não nos amava... era duro... Nós lhe fugimos.

Henriqueta deixou cair a cabeça sobre o peito e guardou silencio. Seu filho continuou, beijando-lhe as mãos:

— As suas maximas não teem conseguido com que eu seja generoso... Não perdoo a meu pae!... Ter uma esposa tão boa... tão meiga... tão terna... tão virtuosa...

— Eduardo! interrompeu a pobre senhora, arrancando uma das mãos de entre as de seu filho, e cobrindo os olhos; não continues... Matas-me. Não sabes o que dizes. E não aborreças teu pae. Elle não teve culpa em nós o abandonarmos.

— Eu sei o contrario. Não queira illudir-me. E oh! meu Deus!... que incalculaveis males nos faz elle soffrer!

— Não pensei que eras ambicioso!... A falta de riqueza te parece um mal tão horrivel!... O amor e ,o trabalho, a honra e a virtude não serão as unicas riquezas digna de apreço?...

— Não sou ambicioso, minha rica mãe, não! Quizera ter alguma pequena parte das riquezas de meu pae, para ver gozar minha querida mãe de todas as commodidades da vida, e o bom José de descanso; porém não me lembrava agora isso... Os males a que alludia eram outros.

— Quaes são, Eduardo? Quaes são?

— E’ um segredo.

— Um segredo?!.. Tu me assustas!

— Não se assuste, minha rica mãe, tornou elle, fingindo brincar e rir, não é caso para sustos. E’ uma experiencia que quero fazer. Vejamos, se sei guardar um segredo.

Henriqueta puxou seu filho para si e abraçada n’elle disse com terna meiguice:

— Meu Eduardo, has de me dizer esse segredo. Com uma mãe não deve haver dissimulações. Ora vamos... sê bom filho, dize-me esse segredo.

— Ah!... ah!... como queria fazer-me cair!... Com que anzol se dispunha pescar!... Bem sabe que os seus carinhos são a isca que mais me atrahe e engoda; mas d’esta vez perde os seus afagos. Quero que veja que tenho aprendido as suas lições. Um segredo não se diz a ninguem, nem mesmo a uma terna e carinhosa mãe.

— Meu filho!... meu amor; tu não pódes ter segredos para mim. Não me queiras deixar em uma terrivel anciedade.

— Como a mãe é curiosa!... Ora supponha que querem fazer-me ministro d'estado.

— Eduardo, tu não pódes enganar-me. O teu rosto é um livro em que estou acostumada a ler. Não póde lograr-me o teu riso forçado. Occultas-me alguma desgraça; mas has de dizer-me qual é. O conhecimento da verdade não póde ser mais cruel do que as suspeitas do que poderá ser. José entrou assustado e exclamou:

— Minha senhora, o senhor moço quer comprar pistolas!

Eduardo lhe lançou uma vista tão severa, que o pobre negro tornou a sair com a pressa com que entrara.

— Comprar pistolas!... repetiu Henriqueta, fitando vistas aterradas em seu, filho, comprar pistolas!... Eduardo, ordeno-te, que me digas, para que precisas d’armas. Ficas calado?.. Não ouviste, que te ordenei, que me dissesses, para que precisas d’armas?

— Não -se agonie, minha boa mãe. Vou dizer-lhe o que passo. Ha cousas, que me seria impossivel de balbuciar mesmo. Offenderam-me, minha virtuosa mãe!.. offenderam-me mortalmente. E não ha forças humanas, que possam desviar-me da tenção, que tenho de castigar o malvado.

— Com um assassinio!!!.. exclamou a mão aterrada.

— Não, minha mãe. Com um duello.

— Oh, meu doce Jesus!.. como elle se esqueceu cedo dos preceitos de religião, que lhe dei!.. E’ mais um castigo de meus peccados!..

E a triste senhora desatou a chorar como perdida. O filho procurou enxugar as lagrimas maternas com osculos e caricias, dizendo:

— O' minha querida mãe, não chore!.. Despedaça-me o coração! Ouça-me... Eu tenho todos os seus ditames gravados na alma.

— Então, meu filho, como ousas pensar em duello?!..

— E não tente desviar-me do meu proposito. Escute o que tenho a dizer-lhe. Declarei-lhe os meus intentos por duas razões, primeiro porque m’o ordenou, segundo porque nem as suas ordens, nem os seus rogos podem abalar a minha resolução. O castigo do máo póde ser deferido, se me fecharem, mas ou tarde ou cedo lho hei de dar. Não chore... não chore assim!.. Olhe, minha adorada mãe, não esqueci os seus preceitos de religião, e perdoaria uma offensa propria; mas não posso deixar passar calumnias sobre a pessoa mais virtuosa da terra. Devo castigar o difamador: se o não fizesse, poderiam haver crédulos... Pelo que tenho observado o mundo menoscaba a virtude humilde, e acata o vicio mesmo sendo arrogante. E’ mister pois, que a virtude tenha quem a defenda arrogante, quando a insultam. E chora cada vez mais; minha digna mãe!!.. Teme por mim?.. A sua ternura exagera o perigo. Não haviam antigamente, minha cara mãe, duellos que se chamavam o juizo de Deus?.. Pois bem, este será tambem um juizo de Deus. Eu como David matarei o Golias. A mão de uma creança vingará a virtude calumniada. Aquelle dos dois que combater pela verdade matará o contrario.

Era muito!.. Henriqueta desorientada se lançou de joelhos diante de seu filho, bradando:

— Misericordia!.. Não me laceres mais o coração!.. E’ para defenderes a reputação de tua desgraçada mãe, que te vaes votar a morte violenta!.. Morte de corpo e talvez d’alma!.. E essa mãe que queres desaffrontar é mais criminosa cem vezes do que o póde crer esse homem, que queres matar.

— Oh, minha mãe!.., exclamou o joven, forcejando por levantal-a, esse ardil não me illude. Sei o que devo pensar. Lembra-me muito bem, que meu pae era seu marido,

e sei que depois que o deixamos, tem vivido só para mim.

— Infeliz!.. Estás enganado!.. Teu pae não era meu marido.

— Oh, meu Deus!.. Para me salvar a vida, minha mãe, diz tão horriveI falsidade?!.. Não ouvi eu dizer-lhe a José quando chegamos a Lisboa: Vai vender este annel, que é a ultima lembrança do meu tempo de solteira!.. Não se afflija com vãos receios. Deus ó justo: elle decidirá, qual de nós combate pela razão, e será punido, aquelle, que estiver do máo lado.

— Eduardo! Eduardo! já que Deus assim o quer, para meu espantoso castigo, sabe a horrivel verdade, e não me amaldiçôes!.. (Meu Jesus, acceitai esta minha humilhação!..) Eduardo... Casei em muito moça... vi depois teu pae... namorei-me d’elle... e fugi com elle, abandonando meu marido... meus filhos... e meus paes!..

Henriqueta estava ainda de joelhos, e seu filho a abraçava. De repente sentiu ella, que os braços de Eduardo a largavam, e abafada em pranto, soluçou:

— Repelle-me!.. Sou-lhe odiosa!.. Faltava-me isto, meu Deus!..

O pobre mocinho não a ouviu. Tinha-a deixado, porque perdeu os sentidos, e baqueou no chão.

Precipitou-se sobre elle a desgraçada mãe, e vendo-o sem sentidos, soltou um grito. Passou-se um momento de silenciosa agonia. Ella apalpava o rosto macilento de Eduardo. Depois torcendo os braços clamou com terrivel angustia:

— Basta, meu Deus, basta! Não posso com tanto.

CAPITULO X

Febre lenta, e negra melancolia, fastio e insomnia, levaram o pobre Eduardo a passos largos para a sepultura. Sua alma era verdadeiramente delicada e virtuosa. E o retiro, em que sempre viveu, as maximas que sua mãe infiltrara desde o berço via sua essencia, apuraram a natural nobreza do seu modo de pensar e sentir. Quando pois soube, que sua mãe, que era o seu idolo, que era tudo quanto amava sobre a terra; quando soube, digo, que esse ser venerado e querido era uma mulher, aviltada e criminosa, e que o seu nascimento era uma vergonha para elle e um remorso para sua mãe, sentiu-se acabrunhado e desejou ardentemente a morte.

Mostrava elle a mesma affeição a sua mãe; e talvez sentimentos de compaixão o fizessem ser mais terno ainda; mas, pelo, cuidado, que tomava em nada dizer offendesse a sensibilidade de sua desgraçada mãe, pela cautela, com que afastava de seus discursos as palavras—honra e virtude — tão naturaes em seus labios puros, bem conhecia a pobre senhora, que elle não esquecia um só momento a terrivel revelação.

Deus se compadeceu do infeliz innocente, e o conduziu em breve aos ultimos momentos, dando-lhe a coragem da virtude, e o socego da innocencia. A pessoa bôa, e que viveu sempre bem com Deus, nos umbraes da eternidade tira forças da fraqueza physica, porque a alma é forte, e anima-se a si e aos outros. O joven mostrava-se consolado por ver que deixava um mundo, em que gozara tão poucas alegrias, e ao qual o não prendia sequer uma esperança. Elle queria inspirar a sua mãe e a José as ideias, que tinha do resgate, que ia ter; mas a sua logica quebrava-se de encontro áquelles corações magoados. Henriqueta sobretudo estava n’um estado lamentavel! Parecia, que seguiria de perto seu filho ao tumulo.

— Minha mãe, lhe disse Eduardo, porque tem chorado tanto? A vida merece acaso, que se tenha saudades d’ella?..

— Meu querido filho, replicou ella suffocada em choro, e apertando-lhe as mãos entre as suas, não choro por ti... O egoismo é que me faz derramar lagrimas... Eras o unico fio que me prendia á vida... quebrado elle, que será de mim, senão morro logo?!.. Só no mundo, com meus pesares e remorsos, que farei sobre a terra?

— Valha-me Deus!.. Não chore assim, que quasi me faz ter pena de morrer!.. Considere, minha adorada mãe, que, se eu vivesse, seria muito infeliz. Eu era um ente nullo para a sociedade, pela minha fraqueza e pouca saude. Tinha ha muito summo pesar de ser um fardo para os dois entes que me amavam. E se José adoecesse?..Precisaria então eu de mendigar para sustentar minha mãe e o nosso bemfeitor, e tenho a alma tão altiva!.. Morreria mil vezes n’uma hora. Dos trabalhos mais humildes não me vexava, mas esmolar!.. Agradeçamos pois a Deus, minha queria mãe, a mercê que elle me faz e que eu não merecia. Se Deus não fosse tão misericordioso, teria eu mais vida, para expiar meus peccados, e...

— E os peccados de teus paes: não é isso, que querias dizer?

— Sim, minha bôa mãe. Estou n'uma hora eu que se não escurece a verdade. Devia pois expiar os meus erros e os dos auctores de meus dias, com mais annos de martyrio. Deus faz-me a graça de me despenar; agradeçamos-lhe tanta bondade!

— Sim!.. o eterno é justo. Leva-te a ti, porque não tinhas crimes; e deixa-me na terra, para agonizar mais algum tempo.

— O Eterno não é só justo, minha mãe, é tambem piedoso. Conserva-lhe a vida, e livra-a de mim, para que possa ir pedir perdão, antes de morrer, á sua familia.

— Que dizes, Eduardo?.. Como hei de ousar tal?!..

— Deve-o fazer... e ha de ousal-o... a seu marido sobretudo.

— Como posso esperar, que elle me perdoe?..

— Ha de lhe perdoar, minha querida mãe, porque tem soffrido muito: mas, se aquelle que offendeu fosse implacavel, Deus não o seria, e ha de perdoar-lhe completamente depois d’essa humilhação precisa. No entanto eu tenho fé, que irei para o céu rogar ao piedoso Senhor, que cedo nos reuna a ambos. E creio, que Elle me ha de ouvir.

A pobre mãe deitou os braços a seu filho, e longo tempo ficou assim, chorando e gemendo.

D'alli a algumas horas havia um justo de menos no mundo, e mais um santo nos céus.

Dois mezes depois na mesma sala, em que Henriqueta trabalhara, chorando pelo espaço de doze annos, estava um cavalheiro de meia edade escrevendo, na mesa que fôra de Eduardo, uma carta concebida n’estes termos:

«Rodrigo, pediste-me encarecidamente, que te dissesse o proveito, que tirara com o meu regresso á patria. Satisfarei hoje e teu pedido... Tambem querias saber se eu achava noticias da desgraçada Emilia!..

«Escrevo-te, meu amigo, em uma miseravel casa, em que ella viveu com meu filho doze anos.... luctando com a pobreza e os desgostos! O que valeu, para que não morressem de miseria, foi o trabalho d’aquelle negro, que Emilia livrou dos tormentos. Ali!.. ella foi propheta, quando me disse:

— «A compra d’este negro ser-me-ha proveitosa.

«Se tu visses agora aquella mulher tão formosa?..

«Ha tres ou quatro dias entrei n’um cemiterio. O meu coração ambiciona ha muito impressionar-se de cousas tristes. Sobre uma rasa sepultura estava uma mulher de bruços e a seu lado um negro de joelhos a prantear-se. Conheci José, e occultei-me tremendo atraz d’um mausoleu. O coração batia-me, porque tinha esperanças de encontrar finalmente o meu filho... Ai de mim!.. ai de mim!.. A sepultura sobre que via chorar era a de Eduardo. A mulher, que estava prostrada, ergueu-se. Não a conheci. Seu rosto cadaverico e coberto de lagrimas, parecia o de uma octogenaria, que ia descer á campa. Ouvi-lhe a voz... era a doce voz de Emilia!!!

— «José, dizia ella entre soluços, estas são as ultimas lagrimas que derramaremos sobre os restos do meu querido Eduardo!.. Mas espero que elle alcance de Deus a graça de levar-me breve para o seu lado... assim m’o prometteu pouco antes de voar para a sua patria!.. Foi sempre um anjo!.. Elle dizia bem!.. que faria n’este mundo pobre, desprezado... sem parentes nem amigos?.. Elle com uma alma tão nobre e votado á desgraça e ao aviltamento!.. Vamos... As forças me faltam todos os dias, e preciso de muitas para ir, onde devo... O anjo m’o disse... é preciso que eu me humilhe diante d’aquelle que offendi. Vamos, meu bom José, leva a tua dedicação até ao resto. Acompanha-me lá... lá onde estava a felicidade, e eu fiz entrar a desgraça.

«Elles se tinham ido retirando. Eu estava immovel com o coração partido. Queria beijar a sepultura de meu filho, mas temia perder de vista a mulher, que tão desgraçada fizera. Assignalei a sepultura, e segui Emilia. Vi-a entrar n’esta casa, e soube dos vizinhos que iam partir de Lisboa, e que vendiam os trastes para fazerem a jornada. Fiz comprar por terceira pessoa o mais caro possivel, quanto lhes pertencia.

«O que era de meu filho o tenho como reliquias. Ah! Rodrigo!.. elle desenhava tão bem!.. E nos seus papeis achei pensamentos tão sublimes!.. Amava sua mãe com fanatismo, a José com reconhecimento e ternura... E seu pae talvez lhe fosse odioso. Quando em creancinha vinha para mim tremendo, repellia-o com dureza; e se agora fosse elle vivo, seria eu que tremeria na sua presença. Fil-o infeliz, e já não posso reparar o mal!.. E sua mãe?!. a quem nem sequer me é dado pedir perdão, para não aggravar seus males!.. A infeliz lá vai lançar-se aos pés da sua familia... Oxalá que seja bem recebida e que morra em paz. Não terá ao menos milito tempo a soffrer o pesado fardo da existencia.

«Adeus, Rodrigo; não sei ainda se partirei outra vez para essa cidade, ou se ficarei aqui para ser enterrado junto de meu filho. Se me tornares a ver custar-te-ha a reconhecer o infortunado Carlos.»

CAPITULO XI

Que saudosas e doces sensações não experimenta aquelle, que passados muitos annos de penosa ausencia, torna a ver os sitios, em que correu a sua feliz meninice!..

Mas, ah! para Henriqueta não eram doces essas sensações! Saudosas sim... saudosissimas e amargas!.. Lembranças repassadas de espinhos lhe compungiam a alma, e lhe despedaçavam o coração.

Do Porto se dirigiu a Rivaes. Ao chegar perto dos sitios, em que viveu vida tão feliz, antes de errar, desejou fartar-se de penosas recordações. Apeou-se, disse a José, que fosse pela estrada para ir encontral-a na estalagem proxima, e se metteu por uma azinhaga, que encurtava muito caminho.

A misera filha de Henrique de Moraes caminhava vagarosa. Cada arvore lhe despertava uma lembrança, cada prado uma recordação.

Estava-se na bella estação da primavera. As aves gorgeavam entre os floridos ramos das arvores, os cegadores nas cearas soltavam galhofeiros gritos no meio da sua tarefa, e n’um prado vicejante cantava uma rapariga com voz monotona e harmoniosa d’amores, em quanto ceifava com mão descuidada a herva, e as muitas florinhas, que esmaltavam o prado.

Tudo respirava alegria e vida, menos a pobre mãe de Eduardo. Ella se detinha a cada momento para respirar e enxugar os olhos; e, quando deu com a vista n’uma linda e risonha casa, que parecia com os raios do sol feita de jaspe, e encastoar janellas d’ouro, estremeceu, parando; com uma das mãos apertou o coração ao tempo que vendava os olhos com a outra.

— Eil-a alli!.., balbuciou com voz abafada pelos soluços. Eil-a alli!... E’ a mesma... a mesma em tudo!.. E eu?..

Lagrimas de fogo lhe sulcaram as faces.

D’uma varanda pendiam tapetes, que um criado sacudia. A infeliz lembrou-se da opulencia, era que fôra creada, e da sua pobreza presente. Se não fôra a gratidão de um negro, teria ha muito morrido de fome. Vinham-lhe depois ideias mais amargas ainda. Era alli que viveu vida innocente, e alli tambem que commettera a culpa que a desterrou do seu eden da mocidade. Ah! ella agora viu, como nossos primeiros paes; anjos exterminadores, á porta do paraizo, que lhe vedavam o ingresso. Estes anjos exterminadores eram o remorso, a vergonha e o temor.

Uma visão celeste como que afastou por um pouco da mente de Henriqueta pensamentos horrorosos. Uma senhora (que pela forma do corpo e elegancia do traje se conhecia ser moça) assumara á janella do seu antigo quarto de solteira. A infeliz quasi não respirou um momento; suspensa, immovel, enlevada olhava com vistas fixas aquella graciosa figura. Passado o primeiro momento apertou o seio com as mãos e articulou com gemidos:

— Meu Deus!.. meu Deus!.. é minha filha!.. a minha adorada Virginia!..

E, deixando-se cair sobre a relva, chorou dolorosamente.

Quando a desventurada mãe ergueu a cabeça, a menina tinha-se retirado da janella.

Henriqueta continuou o seu caminho com uma energia, que se assemelhava á desesperação. Chegou perto dos muros da quinta de seu pae. Tinha tencionado ir até á estalagem e de lá mandar uma carta a Julio, se alli estivesse, ou a seu pae, se fosse vivo, pedindo licença de se lhe ir deitar aos pés; mas não teve forças de passar ávante. Parou e olhou em redor. Uma velha fiava assentada ao sol. Henriqueta, que anciava saber se toda a sua familia era viva, e se era feliz, foi assentar-se, tremendo, junto da velha, e depois de algumas phrases insignificantes, perguntou-lhe de quem era aquella quinta.

— E’, respondeu a velha, do snr. Henrique de Moraes; um santo homem, bem-feitor dos pobres.

— Seja Deus louvado!.., exclamou a fugitiva da casa paterna, ao saber que seu pae vivia.

A velha enganou-se com a exclamação e replicou:

— Sim, sim!.. Póde dar graças a Deus, se vem para pedir-lhe uma esmola. E então em que occasião vem, santinha!..

— E o snr. Henrique de Moraes tem familia?

— Tem, e que santa familia! Tambem é o que lhe tem valido.

— Pois succederam-lhe desgraças? — tornou a infeliz com certo tremor na voz.

— Desgraças?!.. Isso são historias largas. Se quer ouvir cousas de estarrecer, eu lhe conto. Era casado o snr. Henrique de Moraes...

— E já não é casado!.., interrompeu Henriqueta; morreu sua esposa?

— Morreu; mas espere, ainda lá não chegamos.

A filha desgraçada correu a mão pela testa e pelos olhos, enxugando duas lagrimas ardentes. A velha compunha o linho da roca, e continuou:

— Era casado e tinha uma filha bella como uma imagem de cera, e bôa, que mais não!.. Casaram a snr.ª D. Henriquetinha com o snr. Julio; e que festas que não houveram!.. Tinha eu então vindo para casa do meu Tonio e...

— Mas como morreu a consorte do snr. Henriques de Moraes?

— Santinha, você é bem apressada!.. Lá chegaremos. O casamento da snr.ª D. Henriqueta foi abençoado. Nunca se viu casamento assim!.. Vai senão quando foi o snr. Julio á terra dos ingrezes arreceber muito dinheiro!.. Estava para vir; a snr.ª D. Henriqueta, que morria de soidades, foi esperal-o muito longe; e deixou seus filhinhos com seu pae e sua mãe.

— E esses filhos vivem?..

— Então, você quer saber tudo d’uma assentada! Como lhe ia dizendo, a snr.ª D. Henriquetinha foi esperar seu homem. Na estrada saem-lhe os ladrões, e por mais que ella pedia com as mãos erguidas, que a não matassem sem tornar a ver o seu homem, cozeram-na a facadas!.. O snr. Julio, que vinha todo contente, encontrou-a morta no meio da estrada!.. Se não fosse a gente, que acudia aos aqui-d’el-reis, matava-se sem remedio. Veio depois para Rivaes, que mettia medo! Mettia-se pelas brenhas, sem querer ver gente, com as barbas crescidas e a vista espantada. Uns diziam que andava doudo; outros, que trazia a alma de quem Deus levou. Eu cá nunca lhe vi atirar pedras; e a defunta foi em vida uma santa em carne e osso, como havia de cá vir depois de morta?!.. Assim mesmo não gostava de vel-o ir sempre, sempre metter-se entre os mattos com seu filho pela mão...

— E’ amigo de seu filho?

— Se é amigo?!.. E’ a luz dos seus olhos; e tambem sua filha.

— Tambem é amigo de sua filha?

— Podéra!.. Se ella é uma santinlia como sua mãe! Lá tão bonita não é ella, isso não. Não lhe chega aos calcanhares. O snr. Augusto, esse sim, é um mocetão como uma trave; e é sua mãe escarradinho! Mas, como lhe ia dizendo, mettia-se o snr. Julio com seu filho pelas brenhas, dando gemidos, que fazia cortar o coração!.. O snr. Henrique de Moraes pegava em sua neta nos braços, ia por esses campos a rezar sempre, e tão triste e merenconio, que dava vontade de chorar vel-o. Só sorria para a menina, quando ella lhe fallava, ou lhe dava beijos.

— E a esposa do snr. Henrique de Moraes?

— A snr.ª D. Augusta não queria ver ninguem. Fechava-se no seu quarto a chorar... a chorar como uma videira. Um dia foi achada por morta entre papeis, que tinha espalhado pelo chão, e com uma carta de sua filha tão agarrada, que só o snr. Julio lh'a pôde tirar; e por signal, que a queimou logo. Poucos dias de vida teve a snr.ª D. Augusta, e passou-os quasi todos com seu genro. Pois a carta, pelos modos, era a recommendar seu marido a seus paes; como se a snr.ª D. Henriquetinha adivinhasse que tinha de morrer em breves audiencias. O certo é que a sur.ª D. Augusta, depois que leu aquella carta estava sempre a chamar por seu genro, e o abraçava com muito amor, dizendo:

— Meu filho!.. meu amado filho!.. come és bom!..

Henriqueta soluçava.

— Ah!.. você porque chora? Isto é triste, mas já lá vai ha muito.

— Choro porque perdi um filho ha pouco que tambem era muito bom.

— Pois se era bom ha de estar no céu. Leve a maleita merenconias.

— Continue o que me estava contando... Já abafei minhas proprias tristezas.

— Morreu a snr. D. Augusta; e todas essas penas abateram muito o snr. Henrique de Moraes, que por fim de contas teve mal ruim, e ficou emprégado.

— Meu Deus!.. quantas desgraças!.. Entrevado o... senhor tão bom e esmoler!.. Era melhor morrer!..

Este era melhor morrer; dizia-o a infeliz senhora por si, mas a velha não o tomou assim e replicou:

— Isso seria assim, santinha, se se tratasse de mim ou de você; mas quem é rico póde passar sem pernas. O snr. Henrique de Moraes é boquinha que queres? coração que desejas?.. Rosa, uma rapariga que foi creada em casa, não o deixa. A snr.ª D. Virginia, essa não fallemos: e é o ai-jesus de seu avô. Amam-no tambem muito, e lhe fazem muita companhia o snr. Augusto, o snr. Julio e o snr. Feliciano.

— Quem é o snr. Feliciano?

— Está-me sempre a atrapalhar... Não me deixa contar a historia direita. O snr. Feliciano é o noivo da menina.

— Ah! Oxalá!.. Meu Deus!.. meu Deus!.. A’s vezes ha casamentos!.. E não sei como seu avô a deixa casar... Far-lhe-ha falta.

— Foi elle e o snr. Augusto, que obrigaram o snr. Julio a dar o sim. Pelos modos o viuvo da snr.ª D. Henriquetinha não queria que seus filhos casassem. O homem nunca ficou muito fixo do juizo, pelos geitos.

— Não quereria talvez que sua filha casasse, por ella não gostar do noivo?!..

— Ella?!.. Coitadinha!!! ia-se d’este mundo com chorar por seu pae, se oppôr ao seu casamento. Elle dizia, que Feliciano era um santo rapaz; mas que não queria que seus filhos casassem.

— Homem infeliz!.. Digno de uma sorte melhor.

E novas lagrimas arrebentaram dos olhos de Henriqueta; e antes que a velha fizesse reflexões sobre isto, a esposa de Julio disse:

— A lembrança de um marido que perdi... um marido tão bom como o snr. Julio, me despedaça o coração.

— Console-se, bôa velha. A gente não ha de viver sempre. Aqui estou eu, que perdi dois maridos que tive. Prantiei-os muito; mas agora já não ando a choramingar. Rezo-lhes por alma todos os dias, que padre-nossos é que elles lá querem.

— Se eu fosse a casa do snr. Henrique, dar-me-iam lá pousada? Sou uma viandante pobre, e na estalagem gasta-se muito.

— Por isso fico eu. E dar-lhe-hão ainda bôa esmola. Veio em bôa maré!.. O snr. Julio não quer festas no casamento de sua filha; e o dinheiro que haviam de gastar nas bôdas, pelos modos será dado á pobreza

Henriqueta despediu-se da velha, que já conhecêra adiantada em annos, quando era muito moça, e que agora parecia da mesma edade que ella. A velha nem por sombras se recordou de tel-a conhecido.

Afastou-se da velha a infeliz culpada com o coração ralado de pesares e tristezas, e acercou-se da porta da quinta. Não receiava que os criados a reconhecessem, e não podia ir mais longe. Tinha as forçãs physicas e moraes já esgotadas.

— Dormirei ao menos uma noite ainda, pensava ella, debaixo do tecto de meu pae... perto de meus filhos... Talvez ouça suas vozes.

Suas lagrimas caíam, pesar seu, sobre o solo, para onde lhe pendia a cabeça; seu passo era vacillante.

Dous bellos caçadores passaram por ella quasi correndo, e um dos cães da matilha deu-lhe um encontrão tão forte, que cairia a pobre senhora se o mais alto dos caçadores a não tivesse amparado com um braço, dizendo:

— Perdoe, bôa mulher... Magoou-se?

— Não!.., balbuciou Henriqueta, fitando os olhos no bello rosto do mancebo, com um ardor apaixonado, que elle tomou pelo rogo d’uma esmola. Apalpou os bolsos, e não achando dinheiro, lhe disse:

— Vá por aquella porta (e indicou-lhe a porta principal). Os cães não fazem mal. Precisa de descanso, e talvez de almoço. Quando se fôr embora, mandarei dar-lhe alguma cousa.

E deixando-a, foi a correr ajuntar-se ao companheiro que ia entrar na quinta por uma pequena porta; e entraram ambos.

— Oh, meu doce Jesus!.. murmurou ella. Seria aquelle Augusto?

E, em vez de ir por a porta que o moço lhe indicara, seguiu-o com a pressa que as suas forças lhe permittiam. Depois de entrar na quinta parou, e seguiu com a vista os caçadores. Amhos eram tão bellos!.. Qual d’elles seria seu filho? Cruel incerteza!

CAPITULO XII

Elles não se haviam dirigido para casa, mas para o lado apposto, porque tinham avistado d’alli um vestido branco.

Henriqueta não via ainda senão os dois moços, e encostando-se ao muro balbuciou com os olhos turvos pelas lagrimas:

— Um é meu filho... o outro o noivo de minha filha!.. Qual será o meu Augusto?.. O coração me diz, que é aquelle, que me teve junto ao seio... e com que frieza se apartou de mim!.. Oh! e com que ancia o apertaria nos meus braços... o comeria de beijos!.. Meu Deus!.. Lá vem minha filha!.. a minha adorada Virginia!.. Eu morro!..

E ella se deixou cair sobre um banco, que estava alli perto, debaixo de uma pequena latada.

Os tres jovens tinham-se encontrado e voltavam para onde estava a pobre desconhecida, Esta tornou a animar-se e erguendo a cabeça afastou as folhas da latada e pensou, examinando Virginia:

— Como é linda!.. Como é graciosa!.. O mancebo mais alto a traz abraçada!.. E’ então na verdade o meu querido Augusto!.. Como são lindos meus filhos!.. E como mostram amar-se!.. Misera de mim! Quanto elles me amariam, se os não tivesse abandonado!

Já não podia chorar mais. Tinha os olhos inchados e as faces ardentes. Apertou as mãos ao peito, murmurando:

— Oh, meu Deus! dai-me forças para resistir á tentação de chamal-os em altos brados... de correr a seus braços!.. Quanto rio, te estimava; mas a desgraça que succedeu a minha querida mãe, por elle a ter deixado algum tempo, o indispoz contra todos os casamentos.

— Quanto não devia ser estimavel a mulher que deixou tão longas saudades a seu marido!..

— Era um anjo!.. Ainda conservo uma vaga ideia da sua formosura e bondade. Na vespera da sua fatal jornada me acariciou muito e me recommendou que amasse e protegesse minha irmã. E, como depois da sua morte, não se viam n’esta casa senão lagrimas, uniu-se tanto esta ideia com a imagem da minha querida mãe, que me parecia que ella me alagava com seu pranto, em me beijando.

— Eu sou mais infeliz que Augusto, disse pesarosa a menina. Não tenho a menor ideia de minha mãe; ainda que me diz meu avô que ella me beijou e abraçou com muita ternura na vespera da sua partida.

— Eras muito pequenina; e eu na verdade não era muito maior, apesar de me julgar então um homemzarrâo. Lembra-me que muitos dias nos deixaram quasi abandonados, quando se soube a horrivel nova da morte de nossa mãe, e que eu, altivo com a minha importancia, passava o meu tempo a guardar Virginia, e a matar as vespas, para que lhe não ferrassem; parecendo-me que fôra uma das recommendações da mãe.

Virginia apertou seu irmão ao coração, deixando cair de seus lindos olhos duas lagrimas. Augusto, ainda abraçado n'ella, encostou a arma, que trazia, á casinha de fresco, em que se occultava sua mãe e estendeu o braço a Feliciano, dizendo:

— Unamo-nos todos tres. Fiquem nossos corações, formando um só. Vou confiar-vos a condição, que o pae poz ao vosso casamento....

— Seja qual fôr, interrompeu o outro mancebo, desde já a acceito e cumprirei religiosamente.

— Não é cousa que te dê canceira a ti: a mim só é que diz respeito. Augusto, me disse meu pae, eu me descuidei de proteger a filha, que teu avô me entregou.... não tenho direito a esperar que Feliciano seja mais cuidadoso com Virginia... Os perigos que lhe receio não são só de assassinios, mas tambem de genero differente... Ha um periodo, na vida dos casados, de muito risco; é, quando o marido já não é amante, e a mulher é ainda moça... Por esse periodo não passei eu... Tua mãe...=As lagrimas o soffocaram e depois continuou:=Visto que se amam, consinto no casamento de minha, filha, com a condição de tu seres sempre o seu segundo guarda e protector, como tens até agora sido o primeiro. Se Feliciano, por necessidade, ou por gosto se afastar de tua irmã, posta-te a seu lado... não a abandones, e que, quando Feliciano voltar, a ache como a deixou.

— Espero que me ajudes a fazer tua irmã venturosa, mas emquanto ao mais... julgo que teu pae nunca se arrependerá da honra que me faz.

— Estou certissimo que o meu logar de guarda substituto será um emprego honorario. Por agora ao menos protege tu só a nossa Virginia, que eu vou procurar o pae. Toma sentido que lhe não ferrem as vespas, como eu fazia na minha primeira campanha; porém não vás logo pedir o premio de teus serviços, como eu costumava. Assim que matava uma vespa corria a Virginia, bradando: menina... menina, dá-me um beijo, que matei uma feia.

Augusto acabando de fallar estendeu o pescoço, e beijou sua irmã, dizendo:

— Com sua licença, snr. Feliciano, este beijo foi por algumas vespas que quiz matar e não pude.

E agarrando na arma, que tinha encostada, partiu como uma setta, para recuperar o tempo perdido, seguido de seus cães.

Henriqueta o seguiu com vistas ternas, pensando:

— O meu Augusto!.. Talvez o não torne a ver!..

Virginia e Feliciano o olhavam tambem um pouco; depois o mancebo offereceu o braço á menina para leval-a mais perto de si, e se adiantaram vagarosos. Havia tanta singeleza e innocencia na linguagem da donzella, tanta delicadeza, amor e probidade nas expressões do mancebo, que a infeliz mãe ergueu os olhos ao céu reconhecida. Acreditava que Virginia seria feliz, e nunca se desviaria da estrada do dever e da virtude.

Elles tinham parado á entrada da casinha de fresco outra vez, mas não viram Henriqueta; estavam muito entretidos com o seu dialogo. Era a primeira vez que se achavam sós por sós, ou ao menos assim o pensavam.

— Vamos para o avô, disse por fim Virginia, puxando pelo braço de Feliciano para diante. Se Augusto viesse, e nos achasse no mesmo sitio, em que nos deixou, o que não diria!..

Como iam rentes á casa de fresco, um braço do jasmineiro se enleou na franja do chaile de Virginia. Ella o desviou, e sem olhar, procurou encaminhal-o para dentro da casa de fresco, parando outra vez um momento. A mão descuidada da menina roçou pelas mãos descarnadas da infeliz mãe. Esta perdeu a cabeça com aquelle toque, e, caindo de joelhos, agarrou com força na mão fresca e mimosa de sua filha e a levou aos labios com um ardor inconcebivel.

Virginia soltou um grito de susto, e Feliciano quiz livral-a da desconhecida, que tomou por demente; mas ella lhe disse, já recuperada do sobresalto:

— E’ alguma infeliz que precisa de soccorro. Deixe ver o que quer.

No entanto a esposa de Julio ficava de joelhos, apertando a mão de sua filha e beijando-a com fogo e ternura. Não era uma mãe diante de sua filha; era a mulher culpada e arrependida diante da virgem innocente, que ardia apertar ao coração, e que não ousava tocar senão de joelhos.

Virginia se curvou para ella e lhe disse com muito carinho:

— Que tem?.. porque chora? Meu pae e meu avô são muito bons. Não a deixarão sem soccorros. Levante-se.

Era muito para a infeliz. O bafo de sua filha acabou de lhe transtornar as ideias; puxou Virginia para si, encostou a encanecida cabeça ao seio d’ella e desmaiou.

— Feliciano, bradou a donzella, esta pobrezinha morre-me nos braços!..

O mancebo amparou-as ambas, ergueu Henriqueta nos braços e animou Virginia, dizendo, que aquillo era apenas um desmaio.

— Vou chamar, quem a leve a casa, replicou a menina. Ella precisa de soccorros.

— Não é preciso, Virginia. Eu levo-a. Não peza mais que uma penna.

— Coitadinha!.. Tem só a pelle sobre os ossos!.. Talvez a pobreza lhe tenha cavado a sepultura. Ah, Feliciano!.. E’ tão triste ser velho e pobre!.. Se meu avô não tivesse o tratamento que tem, teria morrido ha muito.

— Não conhece esta infeliz? Creio, que é uma, a quem Augusto deu esmola, antes de entrar. Eu vinha com tanta pressa... confesso a minha culpa, que não quiz deter-me a ver o que Augusto ficava dizendo á infeliz.

— Fez mal, Feliciano... A caridade...

— Bem sei, que para agradar a um anjo, devia antes privar-me de vel-o, do que de fazer uma bôa acção. Perdoe, Virginia. Mas não sabe, quem é esta velhinha?

— Não. Nunca a vi. Mas faz-me tanta pena!.. Não sei, porque faz-me lembrar de minha avó... Porém bem se conhece que esta pobresinha ha de ser muito mais velha do que o seria minha avó, se hoje fosse viva. Morreu ha tantos annos!.. Era eu ainda bem pequena.

Tinham-se approximado de casa. Feliciano com Henriqueta nos braços, e Virginia com a arma do mancebo nas mãos, que elle tinha lançado ao chão. A mocinha tinha muito medo de armas de fogo, mas esta lhe parecia inoffensiva e leve. A mulher, que ama devéras, sente doce satisfação em se apossar de alguma pertença do seu amante.

— Ella o seguiu, mas adiantando-se para arredar uns ramos, via Feliciano que ella carregava com a sua arma e quiz oppor-se a que a levasse mais tempo.

— Não tenha medo, que lh'a estrague, disse ella sorrindo; eu vou já entregar-lh'a.

E chamou duas criadas, a quem disse, que deitassem aquella velhinha no quarto terreo, e que procurassem chamal-a á vida. Entregou a arma ao mancebo, pedindo-lhe que fosse dizer a seu avô o que tinha succedido, e seguiu a desconhecida.

Era recolhida por caridade a filha de Henrique de Moraes na casa paterna, como uma pobre mendiga. Na casa em que fôra senhora, era agora menos qne o mais infimo dos criados!.. Ainda bem que a falta dos sentidos lhe tirou a sensibilidade por algum tempo, e lhe poupou de ouvir o que diziam as criadas que a deitaram.

CAPITULO XIII

Custou muito a fazer tornar a si Henriqueta. Passadas duas horas abriu a infeliz os olhos. Junto ao leito estava um cirurgião, Rosa, a antiga criada da casa, Virginia e o negro José, que chorava grossas lagrimas aos pés da cama. A enferma só via sua filha.

Saiu o cirurgião depois de ter dito o que se havia de dar á doente, que elle achava em extremo abatida. Virginia perguntou a esta com muita doçura, se queria que lhe deixasse Rosa, ou se desejava ficar só com o seu criado, que a tinha vindo procurar, não a vendo chegar á estalagem.

— Oh, meu Deus! pensou a infeliz, minha filha vai deixar-me!

A menina repetiu a pergunta.

— Deixa-me?!.. articulou a pobre mãe. Não tornarei a vel-a?

— Virei depois ver como está, redarguiu a filha de Julio. Agora vou para a minha familia.

—Para a sua famia?!.. Tem razão.... Não deve deixal-a mais tempo para estar com uma estranha.

Havia certo azedume n’esta phrase. Virginia não o percebeu e lhe disse, que se quizesse alguma cousa, a mandasse pedir pelo seu criado, e dispunha-se a sair.

Henriqueta a deteve, dizendo com voz supplicante e chorosa:

— Antes de me deixar faça-me uma graça.

— Não se acanhe, replicou a menina, diga o que quer.

— Queria tornar a beijar-lhe a mão.

— Beijar-me a mão!.. Para que? Não me deve favores.

— Oh!.. devo muitos... muitos! E faz-me lembrar uma filha que perdi.

— Pobre mãe!..

E Virginia se debruçou sobre o leito, e beijou o cadaverico rosto de sua mãe.

Esta não pôde senhorear suas sensações; apertou a donzella em seus descarnados braços, e a beijou com soffreguidão muitas vezes, dizendo entre soluços:

— Filha da minha alma!.. filha do meu coração!..

Este phrenesi assustou a menina, que o suppunha filho só do delirio, e se soltou o mais brandamente possivel dos braços que a retinham; recommendou ao negro que velasse em sua ama, e que chamasse, sendo preciso; e promettendo á doente de voltar breve, saiu.

Henriqueta, apesar do seu estado de fraqueza, assentou-se na cama, apenas ficou só com o negro. Lançou a este uma vista espantada e lhe disse:

— José, José!.. Viste aquelle anjo?.. E’ minha filha!.. E deixou-me!.. Foi para a sua familia!.. Eu não lhe sou nada!... Ah!.. Eu desafio todos... todos... avô, pae, irmão, noivo, a que a amem mais que eu!.. A que a amem tanto!.. Ai!.. pobre de mim!.. Senti seus labios tocarem meu rosto... mas era um beijo de piedade!.. Estava insensivel e talvez receiosa em meus braços!.. E eu ardia n'um extasis de amor materno. Ah! se não fosse por lançar o ferrete da ignominia sobre ella, e sobre todos, que ama, lançar-me-ia a seus pés e lhe diria:—Tua mãe não morreu!.. Sou eu!.. Fui criminosa; mas amo-te muito!!! muito!.. Quero morrer nos teus braços!—Porém não!.. Não juntarei mais erros, aos meus erros passados. Seja ditosa e conserve na memoria as virtudes de sua mãe... E’ uma piedosa mentira. Ainda me lembra o que soffreu o pobre Eduardo ao saber... Mas o seu nome aqui é um sacrilegio!.. e um anathema contra mim.

Depois de ligeira pausa proseguiu com voz surda:

— Vês estas paredes, meu amigo? São as paredes da minha casa. Mas este quarto não é o meu quarto alegre e risonho de solteira, nem os meus aposentos ricos e asseados de casada, é o pobre quarto dos viandantes pobres, e fui acolhida aqui por caridade. Meu pae e meus filhos estão lá em cima, fallando em mim como de uma estranha e indifferente!.. Nunca saberão quem eu sou!.. O unico que o saberá é meu marido... Elle só sabe, que existo, e sou culpada... Os outros julgam-me ha muito morta e veneram a minha memoria. Meu marido me conhecerá... e recuará de horror ao saber quem sou! Mandar-me-ha expulsar de casa, eu irei morrer n’um palheiro da visinhança... não poderei ir longe. Não importa!.. Tudo mereço. Sabes, que fui matricida e quasi parricida? Minha mãe morreu de dor. E eu não morri d'angustia ao saber os effeitos do meu crime!.. Resisti a tudo!.. Não morri com tantos golpes... Vivo ainda para soffrer o aguilhão do remorso... e toda a força da desesperação!

O bom negro pedia ha muito a sua senhora com as mãos erguidas e muitas lagrimas, que socegasse; mas ella, só quando as forças, se lhe esgotaram, é que cessou de fallar, e caiu sobre o travesseiro. Aquella agitação em que estivera, fez-lhe muito mal, e lançou algumas golfadas de sangue pela bocca. José quiz chamar, mas Henriqueta deteve-o; e com a cabeça encostada ao braço, com que elle a sustinha, lhe disse com affeição e reconhecimento:

— Socega, meu bom José, socega. Não te afflijas assim. Isto está a dar resto. Demos graças a Deus... Não preciso já de remedios... Preciso só de cumprir aquillo a

que vim, e reconciliar-me com Deus. Vai dizer, que por caridade me chamem um sacerdote... Elle pedirá de meu mando perdão a meu marido... Já não tenho forças para me lançar a seus pés... Assim é melhor. A minha vista faria mal áquelle homem tão offendido.

José pousou a cabeça de sua senhora no travesseiro e foi cumprir a commissão, que Ihe fôra dada. Voltou logo. A enferma viu o cupioso pranto do negro e lhe disse com doçura:

— Lembras-te do que me dizia o innocente, que perdemos, nos seus ultimos momentos? Pois é o que eu quizera poder dizer-te agora. Esta ultima metade da minha vida tem sido um prolongado padecimento. Se és meu amigo, regosija-te por veres, que meus males vão dar resto. E tambem não achas satisfação em seres o meu unico confidente, e amigo que me cerrará os olhos?..

— Ah! exclamou o negro, tenho satisfação em estar com minha senhora... mas eu quer morrer com ella.

— Não, José, não queiras morrer. Eu quero que vivas. Fica n’estes sitios, se poderes; ama meus filhos e meu pae, e respeita meu marido... Peço-te tambem, que nunca em tempo algum, ouças a meu respeito o que ouvires, digas uma palavra que possa descobrir o meu segredo. Não digas sobretudo ao snr. Julio cousa que o faça adivinhar que tu sabias a minha historia. Isso o humilharia na tua presença, e demasiados dissabores lhe tenho já dado.

José prometteu tudo sempre, chorando. Henriqueta ficou mais socegada.

Pouco depois entrou um velho dizendo:

— Seja aqui a paz do Senhor.

— O padre Simão!.. pensou a enferma. O santo varão que me deu as lições de moral, que eu depois calquei aos pés!.. que me fez exortações para eu amar e respeitar meu marido!.. Oh, meu Jesus!.. Restava-me ainda passar por esta vergonha!..

No entanto o sacerdote havia mandado José para fóra do quarto e assentou-se á cabeceira do leito.

Passado um quarto d'hora saía elle com os olhos sempre cheios de lagrimas, por mais que se esforçava por enxugal-as: deu ordem a José de não entrar no quarto, se a senhora não chamasse, antes d’elle voltar, e de não deixar entrar ninguem.

Desde que o ancião saiu conservou-se Henriqueta com as mãos erguidas e os olhos postos. Estava deitada e tão immovel, que pareceria já um cadaver, senão se lhe ouvisse a respiração oppressa, e não se visse o movimento convulso dos labios descorados. Alguem entrou no quarto. A moribunda abriu os olhos espantados. Era Julio. O primeiro impulso de Henriqueta foi de levantar-se para se lançar de joelhos, mas tornou-lhe a cair no travesseiro a cabeça que erguera. Julio correu a ella e lhe pousou uma mão para que se não levantasse. Não fallou logo, porque a voz lhe estava presa na garganta. A infeliz cobrindo com as mãos tremulas e descarnadas o macilento rosto, balbuciou com custo:

— Acabrunha-me com a tua cólera... Não mereço consideração.

Tudo ficou em silencio. A moribunda, espantada de não ouvir reprehensões, nem queixas, tornou a olhar para seu marido: viu-o, enxugando o pranto e abafando os soluços com o lenço.

—Tu me perdôas!.. murmurou ella com espanto, e ternura. Não amaldiçoarás a minha memoria?

—Lamento-te... replicou Julio. Perdoei-te ha muito... Perdôa-me tambem de ter concorrido de algum modo para a tua desgraça.

— Oh, meu Deus!.. Que generosidade!.. Julio, Julio!.. quão pouco conheci a bondade de teu coração!.. Se fosse possivel augmentarem-se os remorsos que ha tantos annos me ralavam a alma....

— Não me conhecias, não, Henriqueta!.. Soffrias os rigores da pobresa, e não te lembravas que eu vivia?!..

— A maior necessidade que eu padecia era de consolações, e essas não podia pedirias; e não pensava que fosses tão generoso... Além d’isso vivia com um ente, que... apesar de muito innocente, era um anathema para mim... uma pedra de escandalo entre nós.

— Dize-me aonde está essa creatura; prometto-te protegel-a.

— Basta, Julio, basta! Não me confundas mais com tua excessiva generosidade. Essa pessoa existe agora no céu.

— E não tens nenhumas recommendações a fazer-me?

— Sim... Julio, tenho. Ama nossos filhos, e meu pae, e sê feliz com elles. Como são bellos e amaveis nossos filhos!.. De que ventura me privei pela allucinação de um momento!.. Que felicidade seria a minha, se tivessemos vivido sempre juntos, e agora morresse nos tens braços e nos d’elles, sem crimes nem remorsos!.. Misera de mim!.. Não os tornarei a ver!.. nem ouvirei mais suas vozes!.. Vi-os, e não corri a seus braços.... Ouvi-os lamentar a minha morte, e não lhes bradei que ainda vivia, e que os adorava!.. Oh, Julio! fui muito culpada, mas ainda fui mais desgraçada! Os tormentos que sobre tudo soffri ha pouco... não os posso exprimir. Estou-te magoando sem o dever... A culpa foi minha... só minha, se perdi o direito de abraçar meus filhos... E comtudo os abracei a ambos!!! A caridade os tornava indulgentes e meigos para a pobre velha desconhecida!.. Bem hajas, Julio, bem hajas, que lhes inspiraste ideias de bondade e compaixão!.. Bem hajas tambem pela piedosa mentira, com que encobriste meu crime... sobretudo a meus filhos... Com que horror não saberiam elles, que sua mãe era tão culpada!..

Julio tinha chorado continuamente, mas senhoreou por fim sua angustia, e pondo com muita brandura as mãos sobre as da enferma, disse, curvando-se sobre ella:

— Socega, Henriqueta, tens fallado demasiado. Esgotas as forças que te restam. Dize só, se queres que te faça alguma cousa para descarga da consciencia, ou satisfação do coração. Sabes que és rica, dicta as tuas vontades, que eu as cumprirei. Serei o teu fiel testamenteiro, sejam quaes forem as ordens do teu testamento.

— Dá as esmolas que quizeres... manda dizer as missas que te parecer!..—articulou com voz entrecortada Henriqueta.—E só te recommendo esse pobre negro.... que me sustentou tantos annos com o suor do seu rosto... Tem um coração grato como ha poucos. Adeus, Julio, homem generoso e bom!... Vive para nossos filhos... que elles

ignorem sempre as culpas e desgraças de sua mãe... Ella morreu ha muito... agora só está aqui uma viandante desconhecida que... vai dar contas a Deus.

Henriqueta tinha ido enfraquecendo, e a final ficou muda com os olhos fitos em Julio, com expressão de grata affeição, que pouco a pouco se foi enfraquecendo.

Julio, que estava contemplando immovel e angustiado aquella mudança, não pôde conter-se mais tempo, e lançando-se sobre o corpo inanimado da sua culpada e infeliz esposa, deu largas á sua dôr. Uma mão amiga lhe puxou por um braço, e uma voz debil e commovida pronunciou estas palavras:

— Não é aqui o logar do snr. Julio. O que aqui tinha a fazer, está feito. Vá para seus filhos. Este logar é só para mim agora.

Era o padre Simão, que fallava. Julio deixou o corpo quasi inanimado, e saiu precipitadamente.

Dois dias depois enterrava-se a pobre desconhecida no cemiterio da aldeia. Acompanhavam seu corpo o padre Simão, que de longe a longe cessava de psalmear para enxugar os olhos; o negro, que chorava e gemia sempre, e Augusto, que seu pae mandara cumprir este acto de caridade, e que se sentia commovido com a magoa d’aquelle negro, e a apparição e morte da mysteriosa desconhecida. Desde esse dia tomou José debaixo da sua protecção, o que foi muito do gosto de Julio.

Todos os dias de madrugada ia o negro ao cemiterio rezar e chorar; e de noite tambem lá ia alguem ás vezes; o que deu logar a boatos d’almas do outro mundo.

Foi uma noite o padre Simão tambem lá. E diziam depois que tinha ido requerer a alma penada, e que satisfizera as suas exigencias, porque desde esse dia nunca mais, fóra d’horas, se avistou vulto ou abantesma no cemiterio.


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TextGrid Repository (2023). Sousa, Maria Peregrina de. Henriqueta: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). https://hdl.handle.net/21.11113/0000-000F-FAA6-C