MARGARIDA

SCENAS DA VIDA CONTEMPORANA

POR

JULIO LOURENÇO PINTO

2.a EDIÇÃO

Voir, se souvenir, agrandir, trans-

former, c'est à dire imaginer, telle

est la loi constante de toute poésie.

GUSTAVE PLANCHE.

PORTO

TYPOGRAPHIA DO COMMERCIO DO PORTO

Rua da Ferraria, 102 a 112

1880

PROLOGO

O movimento de renovação que se opera na litteratura contemporânea e refunde revolucionariamente as formulas consagradas e convencionaes devia de ter necessariamente uma percussão na pacatez do nosso meio litterario: sómente as sacudiduras do cataclysmo são propellidas até nos nos estremecimentos de uma corrente frouxa e tardia.

Quando -- O crime do Padre Amaro -- e -- O primo Basilio -- iniciando o realismo na litteratura portugueza, vieram sobresaltar a somnolencia da intellectualidade nacional, já em França o romantismo vibrava os seus derradeiros e mais desesperados golpes á nova evolução litteraria, buscando detel-a na sua marcha avassalladora.

O realismo tem uma grande missão a cumprir e ha-de cumpril-a; é uma revolução necessaria como correctivo aos excessos da eschola romântica, tão necessária como o foi a revolução romantica para banir os cânones acanhados e esterelisadores do classicismo. O romantismo allucinara-se na mórbida aberração de falsos ideaes; ou se embrenhava em um labyrintho de necedades e parvolesas phantasiosas, ou se arremessava no espaço dos devaneios ethereos e das aspirações mortificantes. Esquivando-se aos limites do real ou do verosimil nem era a expressão do bello, nem desenvolvia uma these, ou synthetisava um ensinamento utilitário; não melhorava os espiritos, esterelisava-os ou amollecia-os engolphando-os na estagnação de concepções enervantes e de sentimentalidades perturbadoras.

O realismo assumiu a tarefa de restabelecer o axioma tão velho, como frequentemente esquecido -- o bello na verdade.

A eschola realista, inspirando-se na natureza e nos factos da vida real, deduz da critica dos phenomenos sociaes as theses, que visam a ideaes verdadeiros e sensatos; sem subordinar exclusivamente uma obra de arte ás austeridades da moral aspira, pelo ensinamento eloquente da sciencia da vida social, a levantar o nivel da dignidade humana, a melhorar o espirito, e a preparar o sentir das gerações para o gradual aperfeiçoamento do viver social.

São estes os intuitos da eschola realista, não perturbam as imaginações, nem estragam o carácter sob a influencia de morbidezas sentimentaes. Sendo verosimilhante, sem descahir na trivialidade ou na crueza torpe, escalpellisa o corpo social, e penetra, auxiliada pela observação, pela analyse minuciosa, e pelos processos philosophicos e scientificos, nas mais recônditas dobras do coração humano, depura os defeitos e os ridículos no crysol do bom senso, e desempenha uma missão altamente educadora.

O romance moderno deve ser isto. As revoluções litterarias teem-se operado em nome do verdadeiro e do natural para depois se perderem em largos desvios.

Margarida -- é uma tentativa da interpretação da eschola naturalista: não presumimos de ter bem comprehendido o naturalismo na arte e o nosso trabalho visa tão sómente ao intuito modesto de concorrer para a investigação da verdade.

Opiniões abalisadas divergiram da nossa interpretação; para essas taes o typo de Margarida tem ressaibos a romantismo; admittindo-o como synthese do bem e do bello, não concebem todavia a affinidade d’esta creação com os modelos da vida real.

Para muitos o realismo na arte resume-se em observar a vida sómente nas suas manifestações mórbidas e viciosas, arvorada a observação e a critica em um pessimismo systematico, a intuição artística reduz-se a uma maneira de ver falho e incompleto.

O artista deve reproduzir na tela o que encontra no immenso reflector da realidade; mas não offende os cânones da arte, se assimila elementos esparsos para os agrupar harmonicamente na encarnação de um typo, ou consubstanciar no vivo relevo de uma criação. É a interpretação de que falla Gustavo Planche, e sem a interpretação, como a entende o eminente critico, a obra de arte não tem ideal.

E este o lado vulnerável da geral comprehensão da eschola realista; sendo verdadeira na theoria e nas suas leis, peca pelos desvios da interpretação.

Ninguém vai mais longe na crueza de escalpellar as enfermidades do organismo social, do que o author do Assomoir, e comtudo os typos de Silverio e de Miette são adoraveis de suavidade e pureza, que devem ser mais escandalisadoras do que os finos quilates da alma de Margarida, se levarmos em conta as circumstancias e o meio pútrido em que desabrocha a candida flor d'aquellas duas almas, que enxertam um verdadeiro idyllio, trasbordante de simplicidade e de naturalidade, por entre as miasmaticas podridões dos Rougon Macquart, um idyllio não arrebicado de falsos atavios, mas que palpita nos latejos potentes da vida franca e larga e exhala as emanações febricitantes das paixões singelas e reaes.

O realismo não póde circumscrever-se forçadamente á estreitesa dos vocábulo -- crueza e pessimismo.

Em meio d’aquelles mesmos abysmos de putrida esfervilhação, em que se engolpha o realismo de Zola, tremeluz de quando em quando alguma cousa de bom e digno, como certas flores mimosas que se alimentam vivazes e esplendidas da putrefacção dos turaulos.

Atravez das torpezas e das abjecções que no Assomoir vão crescendo e avolumando-se como uma maré viva, scintilla por vezes a limpida radiação da alma do bom Gouget, como uma claridade de ceo azulejando em uma agglomeração de crassas nuvens.

Nisto ainda ha uma perfeita conformidade com a verdade natural.

Margarida não é um typo impossível; é verosimil; nao paira na região das nuvens, como as virgens de Raphael idealisadas em uma atmosphera de celestial pureza: mas, como as raadonas de Murillo, tem todos os traços da realidade viva e palpavel.

Há uma concepção susceptivel de vida e movimento no mundo real, e, resumindo a these do livro, é a expressão de um ideal sensato e até perfeitamente caseiro.

Sem esta faculdade de idealisar uma obra de arte por meio de uma these perfeitamente traduzivel na vida real e positiva, sem a encarnação do ideal no real, o realismo reduzir-se-hia simplesmente á frieza cortante de uma critica ou de uma satyra sem aspiração alevantadora dos espíritos e que aponte a um estado melhor de cousas. Poderá ser o aço gelado do bisturi, que na mão do anatomista sonda e retalha, mas não é o remedio que completa a cura; poderá destruir, mas não levanta nada no logar das ruinas.

Ao positivismo na sciencia succede o realismo na arte: a eschola nascente ha-de ficar, sómente em quanto a madureza dos annos não chega, doudejará por vezes nos estouvamentos da edade.

I

O mez de abril tinha corrido chuvoso, pouco tivera de primavera, foi um inverno coberto de viçosas folhagens. O sol raiava a largos intervallos; nas alturas só de quando em quando luziam claros de céo, através das nuvens esfarrapadas, acossadas de um vento fresco; intercalavase um ou outro dia sorridente; Vestes intervallos a passarinhada espanejava-se alegre, saltitava nos arvoredos que se iam afogando na espessura das folhagens de um verde fresco e vidrado, como uma porcellana. Mas as ramarias, os ninhos e as plumagens mal tinham tempo de se enxugar; era uma primavera humida, sem calor; a natureza apparentava uma frialdade que reçuma e pinga; lufadas de vento sul cortavam o ar crasso de humidade; nuvens grossas, como fumaradas espessas, rolavam toldando o largo céo; cordas de agua varejavam a vejetaçao, tenra, e as energiaes immanentes da natureza, ao irromperem vivazes, retrahiam-se logo geladas.

Tinha começado o mez de maio, o céo por vezes ainda se nublava, cahiam a intervallos grossas bategas de agua; mas o bom tempo parecia fixar-se.

Luiz de Albuquerque e sua mulher tinham acabado de jantar, levantaram-se da meza e sahiram para o terraço em frente do jardim.

A tarde cahia com suavidade, a atmosphera clareava, as nuvens adelgaçavam-se, rarefaziamse, como fumosinhos alvacentos, diluindo-se na limpidez profunda. No centro do pequeno recinto ajardinado, recortado em canteiros, orlados de um debrum de murta forte e verde-negra, a agua repuxava cahindo em burrifos arripiados pela aragem; os raios do sol, inclinando ao poente, davam á agua do repuxo um brilho faiscante, iriado; cercava o jardimzinho um parapeito de pedra e cal, alastrado de heras e rosas de toucar; além do cercado viridente, em socalco mais elevado, debaixo da sombra esverdeada de uma ramada, um bando de patos espanejava-se alegremente na agua de um tanque, banhavam-se folgadamente com requintes de um sensualismo regalado, chasqueando entre si, os alados libertinos, graçolas grasnadas; nas concavidades das folhas de couve brilhavam, como contas de vidro de todos os tamanhos, as ultimas gotas da chuva, que o sol ainda não sorvera com algum dos seus raios quentes, como sequiosas lingoas de fogo; nas arvores e nas couves, teias de aranha borrifadas de uma humidade prateada aos raios de sol, brilhavam como filagranas delicadissimas e scintillantes; uma dupla parede de arbustos de camélias, muito aparados, com a folhagem verde-negra muito reluzente, fazia uma ruasinha, que ia dar a um pomar em flor; para outro lado mais abaixo espraiava-se a verdura de um lameiro; ao fundo boleavam-se as espessuras verdes de um bosque de carvalheiras, e para além contornava-se duramente, a distancia, no horisonte esmaecido a massa negra de serranias escalvadas como dorsos de monstruosos titans curvados.

Respirava-se uma frescura balsamica; o verdor da paisagem, borbolhando viço, com a sua folhagem lavada de poeira, espelhada, dava alegria. Andavam no ar aromas de primavera e effluvios do bom tempo que faz sorrir.

Luiz de Albuquerque sorvia com delicia pequenos tragos de café, beberricava goles de cognac, entre as espiraes do fumo do seu charuto, alternando estas funcçoes com methodo, com uma consciencia verdadeiramente artistica, refastelado muito repimpadamente em uma larga cadeira do junco amarellado, balouçando brandamente a perna traçada, na beatitude de uma digestão feliz.

As maçãs do rosto luziam-lhe com os tons quentes de uma forte coloração, animadas pelas dilatações de um chylo socegado; sentiam se-lhe as intimas alegrias de um estomago contente em toda a expansão da animalidade satisfeita e pachorrenta.

Adelina fitava com olhares indecisos as nuvens que se desfiavam no alto, apoiava o queixo redondinho levemente á mão direita, com o geito de quem se habituou a conservar as mãos altas para não perderem a brancura com a affluencia do sangue, e como quem tem o habito da inacção, absorvendo-se em vago scismar.

Estavam calados; só o grasnar dos patos e o estrepito de azas batendo na agua interrompiam o silencio aldeão. Mas a oscillação frenetica do pequenino pé de Adelina e um arzinho de zanga, denunciavam que aquelle silencio fora precedido de uma discussão animada que a contrariára. Luiz foi o primeiro a interrompel-o:

-- Agora sim, o bom tempo parece que chega; assim já se poderá fazer uma jornada...

-- E que não chegasse, é preciso partir quanto antes, é uma secca tanta demora, tanta hesitação; não atas nem desatas, são sempre as tuas eternas pachorras. Fazes mesmo ferro...

E o pésinho movia-se mais frenetico.

-- Mas bem vês o tempo que tem estado, um chover desabalado... Uma jornada com este tempo... brr...

-- Como se fosse uma grande viagem d'aqui ao Porto... Que mulherengo! Olha se eu precisasse um dia do braço de um homem, estava servida...

-- Mas -- obtemperou Luiz, aconchegando-se melhor na cadeira -- como não é cousa urgente, tanto faz mais dia, como menos dia, e podendo-se fazer uma jornada agradavel, com commodidade.. . Ora que diacho ! canceiras não engordam.

-- Que grande tolice fez a natureza, mimoseando-te com esses grandes bigodes!... -- E franziu a bôcca com um risinho ironico, mixto de enfado e desdem.

Luiz era immensamente pacifico, muito fleugmatico, remettia-se prudentemente a um silencio discreto, sempre que sua mulher começava a imprimir á conversação ares desdenhosos e motejadores.

Seu pai, Luiz de Albuquerque Côrte-Real, envolvera-se nos successos politicos de 1828 a 1834. Filho segundo de uma casa fidalga da provincia, aparentado com a melhor nobreza de Portugal, mas affastado da corte, sequestrado da influencia palaciana, inclinou-se ás ideias liberaes.

Arrastado na corrente dos acontecimentos, foi impellido á emigração e acercou-se da bandeira has¬ teada na Ilha Terceira. Desembarcado o exercito libertador nas praias do Mindello, distinguiu-se pela sua bravura durante o cerco do Porto e no decurso da campanha. Sobretudo a brilhante acção de Ponte de Ferreira valeu-lhe grande renome de bravura, e ao finalisar da campanha tinha conquistado para as suas amplas espaduas as dragonas de coronel e para o largo peito a commenda da Torre e Espada. A sua constituição vigorosa e temperamento impetuoso tornaram-o apto para as lides e fadigas da guerra.

Impellido pela opulência de um sangue ardente, dava-se aos exercicios fortes: a caça, a equitação, o jogo de pau e da barra eram os seus prazeres dilectos. Nos arraiaes o seu vulto assumia aos olhos da turba papalva proporçoes imponentes e pyramidaes de pimpão de feira; em mais de uma romaria o seu varapau ferrado, zunindo em redemoinho vertiginoso, fizera em redor larga praça, e por ultimo quando a voz «É o snr. Luizinho da Quintarella a dar lambada» percorria, como uma corrente electrica, atravez da massa compacta dos romeiros, a multidão largava desarvorada em tropel.

Esta expansão luxuriante de vigor physico teve o inconveniente de abafar na sua abundancia a vitalidade intellectual. O sangue que lhe latejava fremente nas veias não se resignava com a immobilidade dos bancos escholares, agitava-se irrequieto, bocejava e a phantasia travessa divagava-lhe em projectos de diabruras. Mandado para um collegio do Porto, sentiu-se nos primeiros dias acanhado, constrangido, deslocado, como um peixe fóra d’agua; os camaradas de collegio chamavamlhe o «lôrpa»; na aula desfechavam-lhe bolinhas de papel, pespegavam-lhe rabos picarescos, faziam-lhe arrelias; no recreio faziam roda, mettiam o «urso» no meio, havia troça, risadas. O sangue fervia-lhe nas veias, mas sentia ainda dentro de si alguma cousa de invencivel que o abatia e impedia de dominar esta situação nova da sua vida.

Um dia, um dos collegiaes mais galhofeiros e alentados intimou-o peremptoriamente a dobrar o dorso equino para uma cavalgata; Luiz arregalou uns olhos furibundos, a cara de bull-dog enfurecido passou da cor de lagosta cosida para a lividez cadavérica, e o farçante, ao executar o jovial proposito, rolou estatelado no chão, esmurraçado, a rebentar sangue do nariz, e elle quedou-se solidamente escarranchado, de punho fechado, a relancear olhos flammeiantes, carranqueando o semblante grotescamente, na attitude comica de um javali assanhado. Os collegiaes ficaram petrificados em presença do homerico sopapo e da catadura formidavel do pimpão provinciano, que se affastava magestosamente, sem que ninguem se atrevesse a perturbal-o na sua retirada triuraphante. Desde então o provinciano aparvalhado assu¬ miu um aspecto grandioso aos olhos dos alumnos, fascinados pelo prestigio da força, que sempre se impõe a imaginações juvenis. Então, engrandecido e metamorphoseado em heroe de collegio, sacudiu de si todas as peias do constrangimento; desafogado dominou as perturbações provenientes da brusca mudança da vida, e, inebriado com novos triumphos, foi arvorado em chefe do bando estroina. Em pouco tempo, no terreiro de folga ou nas aulas, o casmurro aldeão converteu-se em umaespecie de pequeno Atila, e denunciado como elemento incorrigível de desordem e mau exemplo, regressava á casa paterna.

Devolvido á vida sadia do campo, cresceu e medrou, como os grandes carvalhos nodosos; brigava com os caseiros, trepava ás arvores, saltava vallados e corria pelas bouças. Foi assim que se formou a matéria prima que ministrou um bom cabo de guerra ao exercito libertador.

Terminada a lucta civil com a convenção de Evora-Monte, e volvido algum tempo, o desgosto que o affectou por occasião de uma promoção, que na sua opinião offendia os seus direitos e desattendia os seus serviços; levou-o a retirar-se da actividade militar, requerendo a sua reforma.

Um velho tio celibatário, affeiçoado á causa liberal, tomando-se de enthusiasmo pelos feitos brilhantes do bravo coronel, instituiu-o herdeiro da quinta da Cortega, que com mais algumas geiras de terra lavradia arredondavam um modesto rendimento para o viver de província.

O coronel, saudoso dos logares onde se expandiu a sua potente mocidade, depois da sua reforma foi residir na quinta da Cortega. A idade tinha-lhe serenado os impulsos ardentes de uma juventude impetuosa, o sangue que lhe girava férvido nas veias calmava-se, sentia um goso ineffavel em contemplar, na serenidade da vida aldeã, o seu passado turbulento, aprazia-lhe a quietação do lar, sentia a necessidade de uma existencia serena e confortável, aspirava ás alegrias suaves da farailia. Ferido no seu amor proprio, dava-se uns ares despresadores da sociedade e dos homens, affectava uma descrença philosophica e cogitava em se aconchegar egoistamente na existencia.

Ainda moço, namoriscára-se de uma prima, uma excellente rapariga, com uma cara insinuante de uma alvura pallida, que, sem possuir uma belleza irreprehensivel, tinha na physionomia alguma cousa de bom e sympathico, que captivava.

A prima Carlota estava ainda solteira. A falta de meios, que em tempo fora um obstaculo ao casamento, desapparecera; com o soldo da reforma e a renda dos bens herdados nâo o assustavam os encargos matrimoniaes, podia viver folgadamente na aldeia sem receio de que a sombra de um cuidado viesse desluzir a limpidez da felicidade phantasiada para o resto da sua existência.

Podia casar e casou com a prima Carlota. Teve um filho. O Luizinho depois veio a ser o retrato do pai em miniatura; em diâmetro e altura era metade do coronel, mas em compensação no rosto era a vera effigie paterna: uma caraça marcial, uns bigodes de artilheiro, uma cabeça de tambormór encimando uma corporatura de corneta. O coronel vexava-se, vendo-se tão mal reproduzido e representado. Sua mulher era debil, lymphatica, anemica e só depois de se rever na sua obra reconheceu que as allianças entre parentes próximos degeneravam as raças.

-- Diacho -- dizia-lhe um dia um amigo na liberdade de uma conversação intima -- teu filho é exactamente o teu retrato, mas parece que fizeste a tua própria caricatura. O filho é uma parodia do pai.

-- Os homens não se medem aos palmos ; bem pequeno era Napoleão -- respondeu o coronel com ar descontente.

Esta ideia quisilenta da caricatura ficou-lhe no pensamento como um espinho; por vezes córava de repente, era o espinho que o magoava.

Lembrava-se então dos granadeiros de Frederico da Prussia e dizia de si para comsigo: -- Porque não casei com o maior arganaz dos arredores ?...

Mas estes pensamentos perpassavam-lhe pelo espirito velozes, fugazes, como um rápido voo de ave, e para logo lembrava-se da sua Carlota, que lhe fizera a existência boa e facil, e agradecia-lhe no intimo d’alina o affecto extremoso que lhe assegurava uma felicidade serena no remanso tepido do lar.

O coronel dissaboria-se, vendo as proporções mesquinhas do filho; todo o seu regalo seria vêl-o crescer e menear na extremidade de uma estatura avantajada aquella cabeça de granadeiro, como no jardim os girasoes ostentam a sua flor repolhuda e flammejante; era esta a sua mais ardente aspiração paternal; mas sem embargo da corporatura tacanha, acariciava a ideia de o lançar na carreira militar. A ternura matermal, pelo contrario, era hostil a este projecto; sonhava uma formatura em Coimbra, uma cadeira de deputado, posições eminentes, horisontes largos. Prevaleceu a vontade materna. O Luizinho não tinha robustez bastante para as durezas da vida militar, e demais não era elle tão espertinho? Era uma pena perder-se aquella vocação.

Cercado de uma atmosphera de mimos, como filho unico que era, costumado a fazer a sua vontade, a ser escutado attentamente, o menino intromettia-se nas conversações, bacharelava impertinentemente e permittia-se uma infinidade de inconveniências. Este desembaraço e tagarellice passavam por espertezas e agudezas de espirito, reveladoras de uma grande capacidade. D. Carlota revia-se com desvanecimento na creança phenomeno e o proprio coronel dizia muitas vezes comum sorriso de bonhomia approvadora: -- O diacho do pequeno tem lume no olho.

Aos doze annos começou os estudos; entrou em um collegio no Porto, sob a vigilância de um tio materno, juiz na Relação do Porto, que, por ser filho segundo, procurára na formatura e na carreira judicial uma independencia.

A principio o Luizinho recalcitrou, houve scenas lacrimosas entre a mãe e o filho, o menino pedia á mamá com prantos soluçantes que o suffocavam, que o deixasse ficar com ella, D. Carlota confrangia-se toda, abraçava commovida a cabeça do filho, exhortava-o e explicava-lhe entre lagrimas que era para a sua felicidade, para o seu futuro. O coronel interveio com energia, trovejou umas phrases peremptórias -- «o collegio ou assentar praça».

O Luizinho a principio perdeu as côres no collegio, emagreceu, andava atordoado, sentia no peito uma desconsolação, como se lhe tivessem entornado lá dentro um copo de agua fria, a cabeça soava-lhe a oco, por vezes os ouvidos zumbiamlhe como o resonar de um pião adormecido, e tinha uns olhares espantados, pizados de chorar ás furtadellas pelos cantos da casa.

Accommodou-se por fim aos hábitos collegiaes: em pouco tempo ninguem manejava melhor o pião, nem era mais dextro no jogo do fito.

De vez em quando o tio levava-o de passeio ao jardim de S. Lazaro ou ás Fontainhas, apontavalhe o convento da Serra do Pilar, instruia-o ácerca das campanhas da liberdade e dos feitos mavorcios do cunhado.

Quando sahia com o collegio, que serpeava pelas ruas da cidade como um reptil negro, ou com o tio Felisberto, observava tudo attentamente, com grandes contensoes de espirito, sentia-se devorado de curiosidades. O ruido das ruas, os cafés, os bilhares, os cartazes pomposos impressionavam-o, presentia no ambiente que o cercava o que quer que fosse de vagamente inebriante que o penetrava deliciosamente.

Ao cabo de tres annos o Luizinho fizera sómente o exame de instrucção primaria. O coronel exasperou-se, D. Carlota interveio e o atraso do pequeno foi levado á conta da insufficiencia do collegio.

Mas o menino adoecera levemente e escreveu uma carta muito dolente a sua mãe, com muitos queixumes.

Faltava-lhe tudo, os caldos eram um vomitorio, a roupa da cama não se mudára ha quinze dias, era um esfregão, o colchão era duro como uma taboa, estava para alli estirado como um cão, ninguém se importava com elle; como se lembrava com saudade do tempo em que, ao mais leve incommodo, via o rosto bom de sua mamá debruçado carinhosamente sobre o leito! E acrescentava: «Olhe, mamá, até quando peço agua a um criado, responde-me que me levante e vá buscal-a! » D. Carlota e o coronel acudiram alvoroçados, Luiz foi retirado do collegio, acabou a convalescença na hospedaria e foi restabelecer-se no ar sadio do campo.

Mas era preciso tentar outro estabelecimento de educação, pediram-se informações, solicitaramse conselhos. O collegio de S. Bento em Coim¬ bra gosava de grandes creditos, estava em voga, a excellencia d’este instituto de educação era garantida deslumbrantemente pelo grande numero de preparatorios feitos pelos alumnos com pleno exito, e apregoados pomposamente no fim do anno pelos orgãos da imprensa. Com provas tão triumphantes quem duvidaria dos primores de educação que a mocidade recebia n’este instituto privilegiado? E o coronel não era homem que se recusasse á evidencia de cousas tão intuitivas e palpáveis. Pois o que era a educação? Não era exactamente aquillo que se pretendia, o melhor laboratorio onde se formasse a matéria prima de um doutor, onde se talhassem habilmente os modelos de um burocrata, de um funccionario, de um legista? O que era uma casa de educação senão a melhor officina onde se ensina a mocidade a jungir-se automaticamente á nora de uma profissão?

E decidiu-se que Luiz entrasse no Collegio de S. Bento.

Quando se viu n’aquelle casarão conventual, sentiu calafrios; os sombrios corredores, as arcarias dos claustros, o grande refeitorio, escassamente allumiado, muito desguarnecido, com as paredes nuas que davam o frio da cal, desconsolador como uma casa vasia, esbatido na uniformidade de uns tons de luz escurentada, tristonha, toda aquella magnitude soturna do ediíicio com o seu aspecto de algidez monacal, davam-lhe desfallecimentos, amargos desalentos.

O regimen collegial era entremeado de praticas monasticas. Os alumnos levantavam-se, no pino do inverno, de noute, ainda não repontava o dia. Elle acordava estremunhado ao badalar de uma sineta, que lhe vibrava no coração um ecco triste, como uma fisgada dolorosa; vestia-se apressadamente, atarantado, tiritando de frio; a sineta continuava a badalar com desespero, e este som agudo, metallico, arrepiava-o, corria-lhe pelos nervos como gumes afiados de aço gelado.

Atravessava os corredores silenciosos, mergulhados na penumbra, aos quaes os primeiros pallidos alvores emprestavam uma luz descorada, que desconsolava a alma; caminhava atordoado, enfiado, até ao coro, onde os .alumnos agglomerados cabeceavam com somno. Á noute psalmodiavam-se ladainhas, á luz mortiça de dous candieiros de latão, que os prefeitos punham em cima da grade do coro, fumegando e exhalando um cheiro fétido a morrão; os recreios eram curtos, as refeições nojentamente cosinhadas embrulhavam-lhe o estomago. Ás Ave-Marias a luz crepuscular que se espalhava no edifício tinha umas tristezas que lhe davam vontade de chorar, parecia-lhe que o granito do edificio se abatia sobre elle e o esmagava, e aquella luz soturna infiltrava-lhe na alma uma melancolia sem fim. Áquella hora ouvia-se o tanger triste de um sino na Sé, entremixturado com o som monotono, roufenho, da cabra. Era para elle de uma tristeza indizivel essa toada do sino da Sé; semelhava um queixume dolente, um amargo lamento e aquelle bronzeo soluçar, de uma larga melancolia, repercutia-se-lhe nas profundezas do seu ser com um som cavo e lugubre, que lhe dava estremecimentos gelados. Vinham-lhe então uns rebates saudosos, umas nostalgias profundas da casa paterna, dos affagos maternaes, da liberdade da sua aldeia, a imaginação exaltava-se-lhe, evocava-lhe imagens sorridentes, dulcissimas reminiscencias, aspirava á alegria e á frescura sadia dos campos do Minho.

Depois a noute cahia, a sineta vibrava estridulamente, como voz irada do pedagogo que ralha; as visões ceruleas da sua aldeia fugiam espavoridas; os alumnos encerravam-se nos quartos, que foram celias de frades; os prefeitos deslisavam pelos corredores, como sombras, chocalhando molhos de chaves, arrastando nos pés sapatos de ourelo, serenos e subtis, como espiões que não fazem ruido, e ouvia-se o estrondear de portas que se fecham, rangidos de chaves que giram nas fechaduras. Ficavam encarcerados de noute; Luiz experimentava a sensação de uma louza tumular que cahisse sobre elle, sentia um arrepio pela espinha dorsal, lembrava-se que podia adoecer, ter um accidente, e a imagem meiga de sua mãe apparecia lhe, como uma visão, quando ia acarinhai-o antes de adormecer, ou debruçada sobre a cabeceira do leito, quando estava doente.

Abancava-se para estudar, as lettras bailavam-lhe diante dos olhos, sentia na cabeça o zunido de um atordoamento, o quarto povoava-selhe de visões, de sombras funebres, a alma abriase-lhe em um abysmo de angustia, tinha como que uma sensação de frio que engelhava o coração. Mas a noute caminhava calada, indifferente, sómente de quando em quando se ouvia algum ruido perdido n’aquelle silencio dormente, o resonar fúnebre das corujas na torre da igreja ou o latido de algum cão vadio, e estes rumores eccoavam-lhe na alma com estrondo lugubre, como um ruido nocturno que retumba pavorosamente em algum casarão abandonado. E refugiava-se na cama, cheio de desolação, atufava a cabeça no cobertor, soluçava longamente e a lição ficava por estudar.

Emagrecia, a economia perturbava:se-lhe, as cores sadias desmaiavam, a frescura da pelle alterava-se na transparência de tons biliosos. Mas vinha o habito e amaciava estas asperezas do seu novo viver, como os attritos desfazem as saliencias pedregosas de um caminho; acamaradou-se com alguns dos seus companheiros de clausura; aprendia com elles a aligeirar o tempo e a suavisar o regimen duro do collegio fradesco, asso¬ ciando-se ás tropelias dos estroinas.

Havia a roda dos grandes, dos valentes, que formavam grupo á parte; infringiam por vezes impunemente o regulamento collegial, faziam forças, proezas athleticas, com grande pasmo da arraia miuda; eram respeitados da communidade, e os proprios prefeitos não se eximiam, com disfarce, a uma certa deferencia receiosa. Luiz admirava-os, aspirava com vehemencia a engrandecer-se até áquelle formato grandioso, de que se sentia tão distanciado; dous sobretudo eram fortes como alcides de circo, e aos seus olhos d’elle assumiam o aspecto da encarnação de um ideal.

Só os dous rolavam um grande penedo, que os outros, tantos quantos podiam metter-lhe hombros, não logravam sequer mover.

A roda dos grandes constituia uma sociedade de resistencia ás auctoridades collegiaes, um fóco permanente de conspiraçoesinhas, de estroinices arreliosas, de projectos atrevidos. Umas vezes eram os candieiros de latão, fumegando na grade do coro com os pavios tristes, cheios de morrão, que eram alvo de certeiras pedradas, cahindo no pavimento da igreja com estrondo, e algum cachação na região lombar dos prefeitos, no meio da balbúrdia e das risadas; outras vezes eram os lampiões, espalhando nos corredores sombrios uma claridade bruxuleante de carcere, que voavam em lascas, e logo da treva profunda surdia um alarido infernal, um vozear de uivos estridulosos, de roncos sibilantes, um tilintar de ferrinhos, uma algazarra mais estridente do que um charivari de gongs chinezes.

Por vezes a sociedade deliberava quebrar os jejuns claustraes, e aos ouvidos de Luiz chegavam uns rumores mysteriosamente segredados de comezainas introduzidas clandestinamente pelos criados subornados, daregabofes nocturnos com licores, vinho do Porto alcoolisado como polvora, trôchas de ovos do Marques e empadas do Paço do Conde.

E depois, ouvia ainda fallar confusamente de escapadas furtivas pela calada da noute, lençoes pendurados das janellas, escaladas de muros, folganças alegres e tresnoutadas á luz crua do gaz, faiscando nas garrafinhas dos licores e das bebidas fortes e ao som do tic-tac das bolas de bilhar, excursões pelos becos lamacentos e escorregadios da cidade baixa, em cuja escuridão mysteriosa havia fremitos de saias engommadas e fascinações de cousas ignoradas, que appareciam á sua imaginação excitada.

E elle tinha deslumbramentos no cerebro e no corpo os estremecimentos do instincto da carne.

Nutria no intimo da sua alma um culto admirativo pelos--grandes--sentia-se pequeno, affligiase que não o distinguissem na turba dos insignificantes, aspirava, como uma honra, a ser iniciado na roda dos notáveis, desejava ser grande, fazerse homem, e dormia agitado, tinha sonhos febris.

Sempre que podia subtrahir-se á vigilancia dos prefeitos, chegava a uma janella que dava para a rua e olhava curiosamente, com grande contensão de espirito, as tricanas e serventes que passavam com o chaile traçado catitamente, saracuteando-se alegremente, com um quebrado de quadris sensual: soavam-lhe ao ouvido risos frescos, vozes com inflexão adocicada, muito cantada. As tardes, grupos de estudantes caminhavam jovialmente, trocando risos namoriscados e dictos bregeiros com as tricanas bonitas, e via-os a elles, livres, folgazões, banhando-se fartamente nos ares lavados, espanejando-se ao largo sol pelas ruas areadas do pittoresco jardkn botânico, aspirando voluptuosamente os aromas dos lilazes, dos magnolios, dos laranjaes em flor, que se abrem ás brisas tepidas da primavera, e sorvendo sensualmente por todos os poros os effluvios de uma natureza suave e melancholica, que renasce.

E elle, o encarcerado, via todo aquelle mundo exterior sobredourado pelos ardimentos da sua imaginação juvenil; fitava-o com uma avidez profunda, illimitada, que o inebriava, e sentia uns vagos aturdimentos cheios de seducção e anhelos; tinha vontade de ser como os outros, que traçavam a capa académica com ares estouvados, e de se engolphar n’aquelle mundo de cousas para elle desconhecidas, que lhe iam despertar no fundo da sua natureza curiosidades adormecidas, e tinha sonhos agitados, appareciam-lhe visões de mulheres que lhe sorriam, que roçavam por elle lascivamente, relanceando olhares sympathicos de commiseraçao, mas que passavam logo ávante, estouvadamente, enlaçadas em braços masculinos e desappareciam nas dobras dé uma capa academica que se agitava.

II Decorrido o anno, tentou os exames das disciplinas estudadas, mas com o mesmo inalteravel exito negativo. D'esta vez o coronel ficou apopletico de colera, foi surdo a todas as supplicas de sua mulher, foi energico, inabalavel, estava decidido que Luiz assentasse praça e que partisse, acto continuo, para Lisboa, que se alistasse no regimento de lanceiros -- o seu regimento predilecto.

Passados os primeiros momentos de confusão, Luiz exultou com a nova phase da sua vida. Ia respirar a vida a peito cheio, libertava-se do enclausuramento e dos livros, d'aquelles livros mofinos, que, só de os ver, lhe davam esvahiinentos de cabeça.

Em Lisboa estava como o peixe na agua; bem recommendado, aparentado com a aristocracia, relacionou-se facilmente, acamaradou-se com bons companheiros de vida alegre e airada.

A existência agora rolava-lhe sobre nuvens douradas, dispendia-se pelos theatros, pelo Gremio, pelos cafés, beberricando golinhos de bebidas alcoolisadas; organisavam-se brodios finos, em que faiscavam os olhos travessos de hespanholas e trasbordava o champagne espumejante entre fervuras de grânulos dourados, ou então celebravam-se bambochatas nocturnas, em que os convivas, com fatos afadistados, abancavam ás mezas gordurosas das tabernas sórdidas, como esfregões de cosinha, emborcando grandes cangirões de vinho de Torres, ao som dos fados cantarolados com uma dolência langurosa e tangidos na guitarra, que geme, com suspiros muito quebrados, todas as indolencias morbidas, todos os spasmos do vicio e da baixa crapula.

Entre os aturdimentos d’esta existencia estagnante veio fulminal-o a noticia da morte repentina de seu pai. O coronel, que fora excellente cavalleiro, continuava, apesar da idade, a entregar-se ao exercicio de cavalgar e dera uma queda desastrosa de um cavallo, que montava pela primeira vez.

Esta noticia lutuosa, avivando e revolvendo tudo o que ainda havia de bom na alma de Luiz, arrancou-o bruscamente ao lodaçal orgiaco em que se entorpecia deleitosamente; a dôr sobreexcitou-lhe todas as energias dormentes, todos os sentimentos bons do seu caracter frouxo, que uma invencivel indolencia desviava de toda a actividade honesta e inípellia fatalmente para as lassidões provocantes dos sentidos. Mas agora, na exaltação da dor, representava-se lhe a imagem do pai moribundo, de sua mãe afflicta, lavada em lagrimas, doia-lhe a consciencia de ter pensado tão pouco n’elles, chegava a ter pejo de si, e abalou para a casa paterna com a alma a trasbordar de angustias e pensamentos bons.

Entrou na villota natal ao som do dobre a finados, caminhava automaticamente, como um homem que cambaleava atordoado, viu-se impellido para dentro de uma sala mal allumiada, onde era difficil distinguir os objectos e as pessoas, que estavam alli a desanojar sua mãe, sentiu-se cahir nos braços d’ella e durante algum tempo no silencio concentrado d’aquella sala cahia apenas um arquejar de soluços.

Atravez das lagrimas, que lhe embaciavam a vista, entreviu um porte esbelto de mulher, um sorriso gracioso a irradiar frescura e mocidade e uns olhos de um castanho-escuro,-orlados de compridas pestanas sedosas, uns olhos de uma viveza avelludada que o contemplavam cheios de uma curiosidade penetrante, descahindo depois para uma languidez expressiva, que os velava de um fluido suave.

Era Adelina, a filha unica do snr. Antunes.

A ultima vez que a viu, quando foi para o collegio portuense, era ainda creança e agora apparecia-lhe na plena florescencia da mocidade e da belleza, como uma primavera formosa, que começa a enflorar-se.

A morte do coronel veio operar uma transformação na existência de Luiz. Sua mãe avelhentada e debil não podia ficar no isolamento, sósinha com a sua viuvez; não queria agora separar-se do filho. Demais era preciso velar pela administração da casa, cujo rendimento já de si pouco importante, minguaria, quando confiada a mãos negligentes ou menos probas. Agora o seu posto era alli, na sua casa, ao lado de sua mãe: força era fechar os olhos ás fascinações da capital e trocar as fulgurações dos theatros, dos bailes, das soirées, os ruidos animados da cidade, das corridas de touros, os desenfados alegres, os cavacos scintillantes á luz brilhante do gaz entre libações excitantes pela bisbilhotice caturra na botica da terra ao som da cadencia monotona dos dados chocalhados no copo de couro.

Nos dias immediatos ao fallecimento do coronel o snr. Antunes vinha todos os dias na qualidade de amigo e respeitador da casa; trazia consolaçoes e punha o seu prestimo ao serviço dos doridos.

-- Olhe, snr. Luizinho -- dizia o Antunes enfiando com importancia as mãos ósseas nos largos bolsos de um amplo casaco -- o tempo é que cura esses achaques. Eu também sei o que jsso é: quando morreu a minha Joanna -- era uma santa, oh, se era, Deus lhe falle n’alma --andei meio apatetado, a principio o coração parecia que me inchava como este punho, a comida entalava-me, parecia que o estomago se encolhia e não havia meio de empurrar o bocado. Depois isto vai indo, pouco a pouco, sem a gente saber como... E vai ao depois... por fim de contas um homem tem a sua vida, não pode ficar para ahi sempre de espinhela cahida, como um eremitão... Não ha-de andar a cahir de lazeira, precisa de substancia, e o caso está em começar, depois... engrola, engrola e tudo acabou. E vai, snr. Luizinho, também é preciso cuidado com a mãesinha, sempre foi assim fraquita. Que não vá ella adoecer, o snr. Luizinho, que é homem, é que deve dar aquella... É preciso espairecer; a pequena, a Adelina, ha-de vir por ahi dar dous dedos de cavaco. E olhe que aquillo pode-se ouvir, não é por ser milha filha, mas a verdade ha-de dizer-se, aquillo dá gosto a um pai! Sabe pintar para ahi uns casos que é de ficar a gente banzada e então, oh, snr. Luizinho, como ella toca no piano umas cantigas que é mesmo de dar volta cá por dentro. Abençoado dinheiro!

-- Sua filha está interessantissima, snr. Antunes, e dou-lhe os meus parabens. Mas de certo não foi aqui que a educou, mandou-a para algum collegio?

-- Ah, é verdade, o snr. Luizinho ainda não sabe. Puz a pequena em um collegio no Porto, sim senhor--E o Antunes com as mãos traçadas atraz das costas, com o corpo ligeiramente arqueado para diante, meneava a cabeça assumindo um aspecto grave--o melhor que achei, não olhei a despezas. O que eu queria era uma educação fina.. . porque eu não penso cá como essa gente que deixa para ahi as filhas, que mal sabem lêr, os tempos são outros e hoje a educação. .. Mas isso são contos largos... Quando honrar aquella sua casa verá uns quadros com umas passarolas bordadas a cores, aquillo pelos modos são as araras--passaros do Brazil, é de ficarem os olhos n’elles... e outras cousas... snr. Luizinho. Verá e agora o que lá vai, lá vai... E quanto ao mais eu cá estou para o que for prestavel, é só mandar o Antunes... ou não tivera eu trazido o snr.

Luizinho ao collo.

O snr. Antunes tinha sido caseiro na quinta da Cortega. Economico, laborioso, activo, o seu pensamento fixo fôra sempre adquirir uma fortunasinha, que lhe désse uma independencia abundante. Em poucos annos devia á energia da sua vontade e a uma severa economia um peculio de algrimas moedas, preciosamente guardado no fundo da caixa.

Demais o snr. Antunes era um homem essencialmente pratico e positivo. Pensou em tomar estado, relanceou o seu olhar por instincto calculador pelas redondezas e as suas vistas fixaramse sobre a Joanna do Padrão. Era filha unica e pela morte da mãe, que já era velha, levaria em dote algumas geiras de terra com alguns centos de cruzados em dinheiro. Outras moças havia mais bonitas, mas a respeito de olhos e cores sadias em umas faces trigueiras de uma carnação quente, como um pecego em plena maturação, nenhuma outra lhe levava as lampas. Não teve a velleidade de aspirar aos grandes dotes cubiçados e disputados pelos lavradores graúdos, contentavase com a mediania, e assim mirando só ao que não estava muito fóra do alcance do seu braço, dava mais uma prova do seu bom juizo e tino prudencial. A Joanna não entrava no casal mal petrechada, era sadia e robusta para as canceiras da vida, elle tambem não ia com as mãos a abanar e tinha dous braços que valiam uma fortuna. O trabalho faria o resto.

N’estas condições teve artes de agradar á cachopa e á mãe, casaram e para logo o Antunes entrou de mourejar e mostrar que não era homem para ficar na cepa torta. Com as suas economias e o dote de sua mulher tentou com exito algumas operações em gados; depois da morte da sogra teve ensejo de vender a um lavrador opulento, por preço superior ao seu valor, os campos contiguos a uma herdade que se pretendia alargar; accresceu ainda a herança de alguns centos de mil réis de um tio de sua mulher, parocho de uma freguezia próxima e d’este modo entrou o Antunes na posse de um capital importante, que o habilitou a entrar no negocio dos gados em larga escala.

O Antunes medrava e a sua importancia crescia de anno para anno. Em pouco tempo, a não ser o brazileiro, era elle o maior capitalista da terra, emprestava dinheiro a juros, subia de ponto a consideração pela sua pessoa, fez-se influente eleitoral, foi eleito vogal da junta de parochia, depois nomeado regedor. Não havia outro como o Antunes para vencer uma eleição e a politica veio cercal-o de uma consideração ainda maior. Pessoas importantes escreviam-lhe, sollicitavam-no, festejavam-no e uma vez, nos apertos de uma eleição, em que elle estava pouco inclinado ao candidato ministerial, conseguiram leval-o ao governo civil; voltou com a nomeação de administrador substituto; o effectivo, um bacharel de recente data, que estava ha pouco tempo no concelho, retirou-se com licença e o candidato governamental foi eleito.

Este caso da nomeação levou o Antunes ao apogeo da sua gloria. A fortuna comprazia-se em afagal-o por todos os modos; não cabia em si de contente; a estatura parecia que se lhe tinha avantajado com mais algumas pollegadas. O Antunes era a personificação da felicidade na terra, as faces tinham cores sadias e vinha-lhe, como uma cousa boa que o regalava esta nutrição que é indicio de robustez, sem demasias incommodas de gordura balofa. Em casa dava expansão á alegria e á vaidade que o dilatavam interiormente; explicava á mulher e á filha a importância da sua nova posição; o governador civil recebera-o no gabinete com grandes civilidades; fallara-lhe dos seus merecimentos; apertara-lhe a mão; acompanhara-o até á porta do gabinete, e enchia a boca explicando que, segundo o codigo, era um magistrado administrativo e como dizia o governador civil -- Vou collocal-o á frente da administração do concelho, estou certo que corresponderá á confiança que mereceu ao governo de sua magestade, e que os seus serviços lhe darão direito a ser recommendado á munificencia regia.

O circulo das suas relações alargou-se, os horibontes da sua influencia dilataram-se, continuou a prestar relevantes serviços eleitoraes e o Antunes não era homem que desaproveitasse as vantagens da sua nova situação. Alcançou que lhe fosse concedida uma comarca na administração do tabaco; com este subsidio os seus cabedaes engrossaram; entrou de comprar inscripções, e para cumulo de ventura o ditoso Antunes viu a sua ultima aspiração realisada -- foi agraciado com o habito de Christo.

Uma vez teve uma ideia que lhe atravessou o cerebro, como um raio de alegria; este pensamento sorridente e. seductor preoccupava-o, perseguia-o como a própria sombra; fazia-lhe negaças; bailava-lhe diante dos olhos com tentações diabolicas, e ás vezes o bom do Antunes quedava-se a sorrir para dentro de si, abstracto, aparvalhado, embevecido na contemplação de uma visão que o fascinava. Um dia--não pôde conter-se mais tempo--abalou para o Porto.

Passado algum tempo desdobrava-se sobre a cama de Antunes, estatelada pomposamente, uma farda de administrador de concelho, com o chapéo armado e o espadim ao lado.

Porque emfim -- dizia -- podia passar o monarcha em viagem ao norte do paiz, e em todo o caso sempre dava a um homem uma certa aquella... Quando mais não seja serve para as procissões e fica a gente com a alma consolada.

Foi uma grande surpreza a apparição da farda, a família chamada com solemnidade teve deslumbramentos, e o ditoso Antunes revia-se nos bordados dourados, que lhe davam fascinações e não podendo resistir a uma tentação envergou a casaca, pavoneava-se sorridente na bemaventurança abundante, que lhe inundava a alma de bemaventurança jubilosa. A snr.a Joanna do Padrão estava uma suspensão, a pequena Adelina, então com dez annos de idade, assistia deslumbrada a esta exhibição apparatosa, fazia um conceito elevado de seu pai, e sentia-se feliz com a importancia paterna.

-- É o que os meus olhos teem visto -- dizia a snr.a Joanna arrastando as palavras admirativamente -- Quem havia de dizer, oh, Antunes! Que voltas o mundo dá! ora não ha...

-- É para que saibas. Não que os tempos hoje são outros. É como diz o dr. Fabião, que aquillo é um evangelho a fallar, hoje um homem de merecimento não sabe onde póde chegar, o caso é saber trepar -- E o Antunes anediava com o canhão da manga a seda do chapéu armado, e levantando em seguida os olhos dilatava a vista vagamente, como se abraçasse um horisonte imaginário no enlevo de uma larga aspiração.

Quando Adelina completou doze annos a posição social e monetaria do Antunes attingira um grau elevado de importancia, tinha atordoamentos ambiciosos, devorava-o uma sede de engrandecimento, e queria que a consideração de que era objecto se desdobrasse e reflectisse na filha unica que estremecia. A instrucção que Adelina recebera da mestra régia, e depois as lições de francez e de piano, que lhe dava o padre Pinheiro, tocador de orgão em festas de Igreja, não podia satisfazel-o.

-- Na sua posição, com a fortuna de que dispunha, bonita e esperta como é a pequena, quem sabe onde ella poderá chegar? Mas era preciso educal-a para lidar com gente fina. Era até um caso de consciência, se não fizesse da rapariga uma senhora.

E aos doze annos Adelina foi para o Porto, entrando em um collegio, dirigido pelas boas irmãs de uma corporação religiosa.

III Nos primeiros tempos habituou-se facilmente ao regimen do collegio, viera com grande desejo de aprender, soavam-lhe no ouvido as exhortações enfatuadas de seu pai.

Era preciso que se distinguisse pelo esmero da educação, que se fizesse senhora, para entrar na convivencia da boa sociedade e das fidalgas.

Não conhecia esse mundo privilegiado, que entrevia na projecção de uma perspectiva cheia de seducções, mas estimulava-a um anceio ardente de a conhecer. Os bordados da farda de seu pai tinham-lhe deixado no céu azul do seu espirito juvenil uma scintillação fascinante, como um rasto luminoso na crystallinidade de uma noute limpida, e pelo effeito d’esta impressão que se lhe projectava no cerebro, como as grandes sombras na claridade prateada de um vivo luar, conjecturava cousas grandiosas d’esse inundo brilhante, cujas portas parasidiacas promettiam abrir-lhe; um fumosinho de vaidade estonteava-a, excitava-a uma for¬ te curiosidade.

Sob a pressão d’este pensamento fixo, aguilhoada pela vehemencia d’esta aspiração intensa, foi docil, aprendia facilmente, instruia-se com avidez, distinguiu-se pela sua applicação e comportamento exemplar.

A directora e as mestras estimavam-na, sómente por vezes estranhavam certos impulsos de uma grande vivacidade, mas como, quando tentavam reprimil-a, cedia facilmente aos conselhos e reprehensões, desculpavam-se aquellas subitas impetuosidades do temperamento, continuavam a consideral-a e esperavam que as doçuras da religião lograriam acalmar as exaltações, que, de quan¬ do em quando, irrompiam, como uma lava, d’aquelle caracter irrequieto.

N’este intuito as boas irmãs applicavam-lhe em maior doze, como cauterio á parte fraca e morbida d’aquella alma, as leituras religiosas e recommendavam-na com particularidade ao director espiritual, que a retinha mais tempo na somnolencia ciciante do confessionario, espraiando-se em grandes exhortações mysticas, em que elle pintava com viveza de cores a perversão dos homens, as tentações da carne, os perigos que para a salvação da alma resultavam dos prazeres mundanos e do peccado e forcejava por inclinal-a para os aspectos calmos da religião, para os deleites celestiaes, para o amor divino do doce Jesus, para as promessas de ineffaveis arroubos reservados áquellas, que não conheciam outro esposo senão o filho de Deus.

A linguagem mystica do padre dava-lhe perturbações, enlevos de uma vaga voluptuosidade; havia certas phrases que a preoccupavam, o mysterio, em que se velavam, ia despertar-lhe nas pro¬ fundezas do seu ser curiosidades adormecidas, que a irritavam e lhe suscitavam o desejo imperioso, irresistivel de saber o que significavam as palavras esposo, prazeres mundanos, tentações da carne.

Mas a sua sentimentalidade, que não tinha outra valvula de respiração, expandia-se nas vagas fluctuações do mysticismo, debatia-se em um oppressivo anceio de se transportar nas azas luminosas de uma aspiração fremente, de voar para alguma cousa que lhe faltava, mas cuja existencia ella pressentia vagamente, para um ideal ainda confuso, encoberto da densidade de uma nevoa, que a sua alma tentava penetrar.

As palavras do confessor, impregnadas de uma dulcíssima uncção religiosa, as phrases -- amor divino, arroubos ineffaveis, prazeres celestiaes, sacudiam-lhe o coração em palpitações anciosas, lançavam-lhe no fundo d’alma commoçoes fortes, sentia-se banhada em ondas de ternura, experimentava uma necessidade irritante de desdobrar para fóra de si a exuberância de vida, que se lhe comprimia dentro da organisação opulenta, e amava a meiga Virgem, que a contemplava com olhar dolorido, sonhava córos celestes, nuvens de anjinhos com azas douradas e luminosas, compungia-se diante do pallido Jesus, que pendia da cruz macerado, e cantando com muita devoção hymnos religiosos, em coro com as outras alumnas, ao som plangente do orgão, a sua alma vagueava na exaltação de um extasi infinito, que lhe imprimia a todo o seu ser a vibração de uma irritabilidade nervosa.

No fim do anno foi premiada. Era costume organisar uma festa escholar para distribuição dos premios com assistência das familias das educandas. O programma constava da representação de pequenas comedias de uma candura de lyrio, da recitação de poesias de um lyrismo mystico e de exhibiçoes artisticas de canto e piano. Era um aspecto novo, que veio sobresaltar Adelina, na atonia do seu viver freiratico, uma diversão ao enervamento em que se estiolava o seu temperamento avido, e lançou-se logo com toda a impetuosidade de um enthusiasmo soffrego nos encantos da nova sensação. As divagações pelo céu, os anjinhos de azas douradas, harpejando lyras celestiaes na harmonia dos córos angelicos, os deleites do paraizo, tudo foi logo esquecido e trocado pelos anhelos de uma delicia simplesmente terrena e mundana.

Aquella festasinha, a que a sua imaginação ardente dava colorido e relêvo na projecção de uma fórma grandiosa, era um raio de alegria na tristeza do seu tedio, como um raio de luz enfrestando-se na escuridão de um subterraneo.

Antes de entrar no collegio fôra uma vez ao theatro, tivera um grande deslumbramento e essa impressão gravara-se-lhe indelevelmente no cerebro, julgára-se transportada da estagnação insulsa da sua aldeia a um paiz encantado; no meio d'aquelle esplendor de luzes, faiscando nos ornatos dourados da sala e nas toilettes vistosas e assetinadas; aquelle panno que subia e descia tinha para elles mysterios e fascinações. E que de emoções quando se erguia! Que de impaciencias em quanto se não levantava! E vinham-lhe vagos desejos de passar a sua vida na embriaguez d’aquella atmosphera cálida e luminosa, tinha uns sonhos confusos, indefiníveis e através dos estrepitos dos applausos, que pareciam imprimir ao ambiente uma vibração ondulosa e aos seus nervos um estremecimento sonoro, affigurava-se-lhe que não podia haver melhor vida do que a de actriz.

Adelina logo nos primeiros ensaios collegiaes mostrou uma grande aptidão artistica, por isso confiaram-lhe na festa um papel importante. Estava radiante, aguardava com avidez o momento ditoso de se exhibir em publico, sonhava ruidos de festa, murmurios de admiração, coroas de triumpho, estrépitos de bravos e palmas. Recitava sósinha pelos cantos da casa, gesticulava para um publico phantasiado, estudava diante do espelho da sala de visitas, sempre que podia introduzir-se alli furtivamente, attitudes e requebros gentis, e quando chegou o dia solemne, em quanto algumas tremiam e vacillavam, ella vibrava de enthusiasmo, estremecia electrisada, sobreexcitada de uma energia nervosa. Adelina causou sensação e sobretudo fez um contraste frisante com as suas companheiras. Diziam, quasi todas, os seus papeis monotonamente, constrangidas, acanhadas, declamando quasi sempre na mesma toada insipida, sem cadencias, sem relevo e colorido. Ella não, apresentou-se em scena com um franco desempeno; ora era languida, ora energica; tinha uma voz harmoniosa que se malleava a todos os accentos de sentimento; nos grandes olhos escuros fulgurava-lhe um brilho, desusado e nos lances patheticos chorava verdadeiras lagrimas de commoção.

O auditorio tinha uma attitude admirativa, um sussuro de approvação percorria a turba dos espectadores, havia pedaços de phrases encomiasticas que se extinguiam na prolongação de uma reticencia exclamativa; cabeças meneavam-se com uma longa admiração no olhar, descrevendo uma comprida linha perpendicular como um grande ponto de exclamação; as senhoras idosas tinham nas faces expansões jubilosas e bonacheironas; havia mesmo algumas boccas femininas, que se escancaravam com sorrisos pesados no goso de uma satisfação papalva e burgueza; as palmas estalavam e ella agradecia com sorrisos muito assucarados, meneios de cabeça galantes e reque¬ bros graciosos de cintura.

O Antunes agitava-se no seu lugar, tinha na physionomia uma radiação alegre e triumphal, quizera que todos soubessem que era sua filha e dizia mentalmente--Ou não fora eu seu pai.

Depois, Adelina recitou uma poesia, em que se exaltava o Creador e a creação com grandes raptos de lyrismo, e a sua voz tinha suavidades e accentos meigos, quando fallava do murmurio das veias crystallinas, do gorgeio das aves, do candido lyrio do valle, ou então os olhos reviravam-se ao céu na doçura do extasi, referindo-se ao azul do céu, á scintillação das estrellas, ás meiguices do luar, ao concerto harmonioso das vozes da natureza.

As impressões d’esta noute de festa deixaram no espirito de Adelina como que os vestigios de uma embriaguez suave, entrevira a vida por um prisma novo e seductor, entremostrara-se-lhe uma nesga d’esse mundo a que aspirava, vira um concurso brilhante de senhoras com toilettes da moda, a moda. .. essa palavra magica que tinha para ella mysterios e curiosidades febris, e tinha reparado em um grupo de rapazes que tinham pequeninos bigodes muito frisados, com uma rosa a flamejar ao peito, e que a fitavam com uns olhares, que a penetravam de uma sensação indizivel, sorrindo e segredando entre si.

Desde então as energias do seu temperamento, que se espraiavam preguiçosamente nas exaltações do mysticismo desviaram-se, como um rio que muda de leito, para as perspectivas de outro mundo que começava a revelar-se-lhe.

Adelina tinha-se affeiçoado a uma outra alumna mais idosa, sentiram-se attrahidas no magnetismo da mesma sympathia. Ernestina erasemi-interna, vinha pela manhã e sahia á noute, estava em contacto com o mundo externo, Adelina interrogava-a com muita curiosidade, e as revelações da amiga eram o fio de Ariadne que a guiava em um dedalo de cousas, umas pouco cognosciveis, outras inteiramente ignoradas; trocavam as suas confidencias, Adelina esclarecia-se.

Um dia Ernestina levou-lhe um livro com uma encadernação reluzente de arabescos dourados sobre cartonagem branca e polida: era um presentinho de annos que tinham dado á sua mamã, quando era pequenina. Narravam-se ahi uns amores contrariados e desditosos de uma castellã e de um formoso cavalleiro; o romance dos dous infelizes namorados era illustrado com gravuras e as duas amigas extasiavam-se na contemplação d’aquellas estampas que as impressionavam. Umas vezes era a castellã que se reclinava ao balcão de um castello gothico, encostando a face de um oval correcto a uma das mãos com um geitinho leve e gracioso, e seguindo com os olhos ternos uma pombinha, que levava pendente do pescoço uma missiva amorosa; outras vezes a dama e o cavalleiro deslisavam mysteriosamente pelo carreiro assombreado de um bosque, a cabeça d’ella pendialhe melancholicamente para o peito, caminhava com ademanes languidos e desfallecidos, em quanto que o cavalleiro, abraçando-lhe brandamente a cintura com a outra mão apertava suavemente a mãosinha branca d’ella contra o coração, ou então era o cavalleiro que mais além cahia de joelhos aos pés da sua amada, sentada em um banco rustico á sombra de um caramanchel, em quanto o rouxinol, escondido nas ramagens, exhalava as notas sentimentaes de um canto terno e apaixonado.

Em outra occasião Ernestina levou-lhe muito em segredo um romance, que a mamã tinha acabado de ler, Adelina leu-o com avidez, ás furtadellas, escondendo-se sobresaltada, amedrontando-se ao menor ruido, estas perturbações confundiam-se com as commoções da leitura, e toda ella era uma vibração, como uma tolha estremecendo ao vento.

Após este romance vieram outros, que a Ernestina subtrahia da collecçãoda mamã. A imaginação povoava-se-lhe de imagens e visões excitantes, e desde então começou aterosomno agitado, cortado de sonhos em que lhe appareciam as formosas castellãs brancas como sudarios, banhadas na luz phantastica do luar, suspirando de amor e requebrando-se para o pallido menestrel, que dedilhava um alaude melodioso e suave como uma harpa eolia, na serenidade de uma noute tepida e perfumada. Ou então eram mulheres decotadas, que lhe appareciam com a sua bella nudez scintiliando de brancura, como um polido marfim á luz dos candelabros, envolvidas na atmosphera calida e acre dos bailes, como plantas tropicaes em uma estufa vaporando aromas exquisitos, e arrastadas no turbilhão da valsa, enlaçadas nos braços de homens fataes que teem scintillações magneticas no olhar.

Tudo eram amores, suspiros, mulheres e homens extraordinarios, amantes bellos, como Adonis, grandes como heroes, com musculos de aço debaixo de uma cutis branca e assetinada, meigos e humildes com as damas, altivos e formidaveis, como Sforza, diante do perigo, e impellida n’este turbilhão de phantasias perturbadoras as lições descuravam-se e entrou de perder aquella docilidade, que a principio tinha feito o encanto das boas irmãs religiosas, em cujo conceito começou a decahir.

Por este tempo teve a noticia do fallecimento de sua mãe e pranteou-a com as manifestações ruidosas de uma dor intensa. Era o primeiro halito mau da vida que lhe crestava o viço exuberante do coração, esta ideia de morte, que pela primeira vez lhe roçava a alma banhada no fluido ceruleo da sua puberdade, como um sopro pestilente e sinistro abalou-lhe todo o ser, e Adelina entregpu-se a essa dor com toda a intensidade da irritabilidade nervosa, que ha tempos a dominava. E depois observára como eram vehementes todos os sentimentos dos heroes e heroinas dos romances, que conhecia; o goso, como a dor, explosiam n’aquelles corações privilegiados e calcinavam como lava. Por isso ella malleava-se aos seus ideaes.

As religiosas condoeram-se de tamanha angustia, e assentaram entre si que Adelina tinha um grande coração e sómente era pena que a cabecinha fosse um tanto leve.

Nervosa como andava, e excitada pela intensidade da sua dor, enfermou e recolheu-se á cama com uma pontinha de febre.

O Antunes foi informado da doença e acudiu ao leito da filha, logo que prestou as ultimas homenagens á finada. A companhia da filha era-lhe indispensável agora que se via tão só, e tanto mais lhe era necessária n’esta occasião em que precisava d’ella para o governo da casa. Levou-a comsigo: tinha então dezeseis annos. Nas festas escholares o Antunes tinha-a visto representar comedias em francez, recitar poesias em inglez e sob a pressão dos seus dedos o piano cantava ruidosamente. Que mais queria elle? Na terra ninguem apresentava uma filha com tão esmerada educação.

Adelina deixou o collegio com grande contentamento; a obediencia, a disciplina e o regimen collegial repugnavam á sua natureza a um tempo fogosa e indolente, morbida e excitavel; as suas aspirações eram para uma ambiente livre e bem desafogado ás phantasias que lhe agitavam o cerebro.

O seu espirito tinha uma actividade frenetica e o corpo uma indolencia morbida, aprazia-lhe recostar-se, muito repousada, na prostração de um suave languor e o pensamento perdido em devaneios, agitando-se febrilmente ao sabor de imaginações perturbadoras.

Os romances que lêra no collegio foram apenas um estimulante, que lhe ateou uma sede ardente, e trazia o desejo avido, irritante, de se dessendentar no manancial d’estas leituras, pediu livros e o Antunes approvou esta vocação litteraria, que lhe dava uma ideia elevada da filha.

A principio Adelina tinha-se voltado para os aspectos calmos da natureza, para a serenidade das paisagens pittorescas, deliciava-se na perspectiva das pradarias virentes; impressionava-se com as sombras rumorosas, com os silencios melancolicos dos bosques, com as agulhas arrojadas dos montes alpestres e alterosos; extasiava-se com as descripções poéticas dos quadros aldeões; sonhava pastorinhas bucólicas como as de Florian, uma cabana com um fumosinho na chaminé, espreitando entre alfombras de verdura; devaneiava com a frauta do pegureiro e mais o seu rebanho com o badalar melancolico do chocalho, que acorda os eccos tristes da montanha.

Fazia excursões ao campo, madrugava para vêr nascer o sol, gostava de beber uma chavena de leite quente, mugido de fresco, esquecia-se a lêr ou a scrsmar, á sombra das arvores, tranquillamente repousada no seio voluptuoso da natureza, inebriada das serenidades dulcissimas do campo, ou, surprebendendo o poetico despertar da natureza, ficava-se a contemplar o deslumbrante espectaculo de uma aurora gloriosa, aspirava com delicia as frescas auras matutinas e de envolta todos os arroubos de um lyrismo exaltado.

Mas por fim a contemplação da natureza não bastava á frenetica actividade do seu espirito, tinha o campo muito á mão, a nota pastoril entrava-lhe por demais nos hábitos, esta sensação com a diuturnidade do uso continuo gastava-se depressa e d’este modo o perfume poetico do campo converteu-se em um estimulo ás exigências febricitantes do seu temperamento.

Voltava-se então com mais ardor para o tumultuar das scenas romanticas, que lhe fervilhavam na cabeça e lia novos livros com uma soffreguidão gulosa. E na sua phantasia tudo eram mysterios de amor, aspirações apaixonadas, amantes delirantes de paixão, decididos aos maiores sacrificios para realisarem a união de duas almas que se comprehendem e attrahem -- já antes de se conhecerem -- nos effluvios de uma magnetica sympathia, como se o destino os fadara a viverem enlaçados para todo o sempre, e sonhava com rivaes que se batem como leões em duelos de morte, donzellas que desmaiam ou soluçam com os cabellos soltos pelos hombros, vestidas de amplas e alvissimas musselinas, prostradas, como martyres, sob a vehemencia d,as cóleras paternas, e depois encerradas em conventos e castellos, encostando as faces pallidas ás grades frias, na soturnidade da algidez monacal. Outras vezes appareciam-lhe nas suas visões mancebos de grande belleza, ora enfuriados como Orestes, ora cahindo nos braços das suas amadas, meigos como pombos, depois de terem trepado pela escada entrançada de seda, ou então era a toada secca do galopar de dous cavallos perdendo-se ao longe em uma nuvem de poeira, e a confusão e o espanto cahindo, como um raio, no meio do esplendoroso turbilhão de um baile, ao correr de bocca em bocca a noticia do rapto da formosa Alonza.

Adelina vivia intimamente com todas estas visões do romantismo, sensitiva e nervosa, abrazava-se na chamma de morbidos anceios e o sentimentalismo invadia-a, penetrava-a fibra a fibra como um rio que trasborda do leito e alaga os campos infiltrando-os de humidade até ás profundezas dos seus seios ubérrimos. Por vezes ficavase prostrada de uma languidez sensual a contemplar o vacuo com ura olhar avelludado e humido; mergulhando a vista no deslumbramento profundo do céu julgava-se banhada nas ondas sonoras de ura fluido azul e o seu pensamento voava nas espiraes de um devaneio vaporoso para um ideal fascinante de amor. Depois sorria, com a alma suavemente dilatada, ás suas illusões luminosas, embalando-se toda fremente ao canto magico desses dous passarinhos azues e cor de rosa, que se lhe aninhavam no coração--o amor e uma mocidade ardente -- e todos estes dourados reflexos do prisma da sua viva imaginação projectavam-se em um iris esplendido sobre o mundo exterior.

O Antunes tinha-lhe entregado o governo da casa, mas passado algum tempo sobresaltava-se do rumo que as cousas levavam -- Diacho! a casa anda á matroca... Que falta me faz a minha Joanna!... Também não admira, para que dei educação á pequena?... Não era para ser uma senhora? E depois não tem ella uns instinctos mesmo finos? Tinha que ver andar agora mettida entre as panellas! Ora não estava má, seccar a pequena com cousas grosseiras! Mas então lá ia tudo quanto Martha fiou e adeus delicadezas do collegio e aquelles ares que parecem mesmo de uma fidalga... E o dinheirão que se gastou? Vispere... lá ia tudo pela agua abaixo... Então!... não a chamou Deus para os azeites e vinagres, é outra a sua tineta. Ora adeus! Faz ella muito bem. As más linguas ladram? Pois que ladrem á lua, que rebentem de inveja. Sim senhor, estou no meu direito, hei-de fazer o que quizer ao meu dinheiro, faço gosto n’isso, acabou-se. E o Antunes, pouco a pouco, ia-se intromettendo no governo domestico e Adelina, com a cumplicidade do pai, ia declinando a tarefa de dirigir a casa -- Que aborrecimento! havia lá nada mais estupido do que interromper uma situação interessante de um romance para ir aturar a velha Thereza, que era capaz de seccar uma figueira -- E que estava tudo pela hora da morte, que d’antes a vida era um louvar a Deus de barata -- Ora que se avenha, com esta secca aos ouvidos em pouco tempo estava mais estúpida do que um peixe -- E estirava-se preguiçosamente na sua poltrona, que fora um presente do Antunes. A mobilia do Antunes era muito espartana, Adelina appetecera uma cadeira á Voltaire e o apetite fora immediatamente satisfeito. Era alli muito refastelada que ella lia os seus romances, ou contemplava á janella as perspectivas cambiantes das nuvens, dilatando a alma na fluctuaçao de vagos desejos, na sua attitude favorita, com o rosto apoiado á mão esquerda e o dedo indicador estendido, fazendo pressão na maçã do rosto de uma carnação tenra e polpuda -- Como seria bom amar, encontrar uma alma irmã da sua, realisar a união de dous corações que se comprehendem! Romeo e Julieta vêem-se uma vez... uma vez só, um olhar bastou, um olhar de uma attracção magnetica e fatal e eis as suas almas fundidas na mesma volupia de amor para todo o sempre!... Onde estava essa outra alma irmã da sua?!...

Este pensamento envolvia-a em uma atmosphera intensamente amorosa, que ella respirava como um perfume mordente que estonteia. E sentia um desejo intenso de reclinar a cabeça no hombro do amado, aspirando o poético perfume de uma noute tepida de luar, repassada de uma serenidade suavemente melancholica, quando sobre as perspectivas da natureza se espalha uma tenue nebrina, que esfuma a paisagem na transparencia. de um véu finissimo, como se dedos de fadas tivessem esparzido no ar um pó prateado e muito leve.

O collo arfava-lhe com uma ondulação larga, aquelles olhos de um castanho escuro, que tinham reflexos negros, velavam-se humedecidos de uma profunda languidez e um estremecimento delicioso percorria-lhe o corpo, como se pelas veias se escoasse um licôr calido e dôce.

IV A filha do Antunes fazia sensação na terra e era requestada. É verdade que tinha suas excentricidades, cousa até então nunca vista no lugar; algumas chegavam a escandalisar os soalheiros, mas não faltavam tambem os juizos benevolos e complacentes. Aquillo por fim havia de passar com o tempo, verduras! Nem era para admirar, se o Antunes estragava a rapariga com mimo e era pena, porque a Adelina era devéras linda, linda, e um dos melhores partidos da terra.

E o filho do tabellião, que tinha escripto uns versos na -- Aurora do Minho -- acrescentava -- E tem um não sei quê de acirrante na physionomia, o que quer que seja de vago e indefinivel que impressiona e perturba.

Adelina relanceou a vista pelo circulo dos seus adoradores. Evidentemente o Ernesto, o filho do tabellião distinguia-se, as suas fallas eram alambicadas, era poeta e tinha uma voz de tenor.

Nunca estudára canto, mas era uma vocação, todos o diziam. Ás vezes elle passava-lhe pela porta -- a cantar com um timbre de voz muito terna a romanza do Trovador -- Deserto sulla terra -- acompanhando-se ao som dolente de uma viola.

Aquella voz chorosa, vibrando no ar calado da noute, tinha para Adelina um sabor romântico, vinham-lhe á imaginação trovadores, menestreis, pagens formosos com a pluma a ondear na gorra de seda.

Ernesto tinha ido uma vez ao theatro lyrico, no Porto, estudára com muita attenção os modelos do dandysmo, conseguindo distinguir-se entre os seus conterrâneos nos ares, nas attitudes, e tinha uma maneira chic de pôr o chapéu. E depois havia n’elle um ar interessante de melancholia, sobretudo quando, no silencio da noute, á luz da lua, soltava a tremula toada da sua voz sentimental.

Adelina começou a interessar-se pelo seu trovador nocturno e envolvia-o, sempre que o encontrava, na meiguice de um olhar sympathico.

Acceitou lhe uma carta, era uma poesia muito lyrica em que os vocábulos -- imagem querida, anjo de brancas azas, pomba dos meus anceios, tada dos meus sonhos, se atropellavam com as phrases coração desolado, suspirosos anhelos, tristezas sepulcraes.

Ficou muito lisongeada vendo-se cantada em verso. E elle tinha umas attitudes tão scismadoras, tão tristes! Parecia infeliz, coitado! E inte¬ ressava-se pelo Ernesto.

Era alto, delgado; de noute e nas romarias usava de jaleca com alamares e fechos de prata, calça estreita muito repuxada á perna, facha azul de seda, e na cabeça punha um chapéu desabado amarellado com uma inclinação que ihe dava um ar interessante. Agradava-lhe aquella figura, que tinha flexuosidades no porte esbelto, sobretudo quando o viu assim trajado, arrastando a voz em doçuras apaixonadas, muito quebradas de uma tristeza languida, com a sombra do chapéu a esbater-se-lhe no rosto pallido, que sobresahia entre os tufos de uma caforina riçada.

Approximava-se o dia da romaria da Senhora da Athouguia, na proxima freguezia da Abelharda; era um arraial afamado, havia baile em casa das Menezes, costume tradicional que passava de geração em geração, raras vezes interrompido. Concorria tudo o que havia de melhor nas convisinhanças, sahiam das arcas as casacas, que a diuturnidade das dobras zebrava com grandes vincos; as barbas escanhoavam-se até ao sangue; espanejavam-se vestidos espaventosos com grande profusão de laçarias; ia-se de todos os modos, a cavallo, em todo o genero de vehiculos; as senhoras empilhavam-se em char-à-bancs escancellados, soltando gritinhos aos solavancos da carriola; organisavam-se burricadas; havia risadas e pilherias com as peripécias joviaes da jornada.

Adelina resolvera ir a cavallo, era uma ideia que a seduzia e que, ha longo tempo, lhe trabalhava na cabeça -- cavalgar com as pregas abundantes do seu longo vestido de amazona a cahirem com elegancia e a gaze azul-ferrete a fluctuar ao vento. Ensaiava-se com reiterados exercicios equestres na azemola russa, em que o papá se bifurcava muito escarranchado, quando em tempo fazia as suas excursões aos mercados de gado, encommendára no Porto um vestido de amazona e insinuára ao Ernesto que fosse tambem a cavallo.

Como seria bom encontrarem-se na estrada, segredarem palavras de amor, galoparem ao lado um do outro, sentindo nas faces os beijos tepidos da aragem!

Ernesto empallideceu -- Montar a cavallo, hein! Eu que não sei nada, que entalação! Mas não ha remedio...

O dia tinha chegado; Adelina saltára, radiosa, sobre a sella da egua russa, sentia-se engrandecer dentro d’aquelle trajo, dilatava o peito, como se quizesse aspirar ideias grandes. O dia amanhecera quente, ameaçando calor abafado e dormente; o disco solar que se erguera muito afogueado ia incandescendo o ar immovel, sem uma nuvem, peneirado apenas de uma nevoasinha muito diaphana que lhe dava uns tons baços, com o aspecto de um metal fosco que faisca.

Adelina encontrou-se com Ernesto ha estrada. Estava mais pallido, um suorsinho humedecia-lhe a raiz dos cabellos, caminhavam de vagar, echoava a sonoridade descançada das patas dos cavallos, o couro das sellas rangia. Iam calados, Adelina interrompeu o silencio.

-- E se nós galopassemos? Galopar! sentir a brisa acaricial-os, como o roçar de azas invisiveis.

E ao pensamento juntou a acção, mettendo a egoa a galope.

Ernesto tinha enfiado, uma contracção nervosa opprimio-lhe o ventre, mas automaticamente, meio atordoado, seguiu Adelina. O cavallo teve uns movimentos bruscos, sacudidos, que o abalaram, atarantou-se, os estribos saltaram dos pés, ia perdendo o equilíbrio, enevoou-se-lhe a vista e encolhido, estonteado, agarrou-se freneticamente ás clinas do animal.

Houve gargalhadas, e Adelina, que a principio se afogueára de vexada e colerica, soffrendo uma desillusão penosa, tambem riu depois com o caso alegre.

-- E então não estivera quasi a apaixonar-se por aquillo! Que figura tão ratona!.. Tambem que ideia desastrada, namorar-se do filho do tabellião! Tontinha! que podia ella esperar d’alli... uma familia relles?... Era bem feito, quem a mandára descer tão baixo?...

E enchia-se de um grande desdem pelo Ernesto, sentia-se enjoada d’aquella inclinação de genero chinfrim, fazia-se corada até á raiz dos cabellos e promettia de si para comsigo ser mais cautelosa para o futuro. Impregnava-se no perfume de aspirações grandes, absorvia-se nas perspectivas deslumbrantes da vida elegante, nas suas leituras começava agora a preferir as scenas da moderna vida parisiense, e extasiava-se diante das pallidas mulheres do faubourg Saint Germain, de uma fina elegancia, de uma distincção irreprehensivel, que pisam com o seu pequenino pé de curva aristocratica os tapetes molles e avelludados, ou devaneiava com os homens fascinadores, umas vezes montando com garbo cavallos de fina raça, guiados na apparencia com uma negligencia toda fidalga, mas realmente domados vigorosamente com uma mão de redea firme, outras vezes surgindo com soberana fascinação entre as pregas abundantes dos reposteiros assetinados.

E sonhava com todas as energias do amor, que rescende aromas caros e se aninha maciamente entre rendas de Chantilly e as fofas tapeçarias dos boudoirs acolchoados de setins opalisados, vaporando as febres da paixão e o aroma das violetas.

V Decorreram assim dous annos acalentandose ao fogo de todos estes sonhos excitantes, nutrindo vagas ambições, accumulando desejos não satisfeitos, sedenta de sensações.

Tivera ainda outras desillusões, não se illudira só com Ernesto e já sentia desalentos. -- Tinha uma má estrella -- dizia -- nao fora fadada para ser feliz, também como havia de realisar o seu ideal de ventura na mesquinhez d’aquella vida aldeã.

E desesperava de realisar alli os seus rosados sonhos de felicidade, sentia-se suffocar n’aquelle meio insignificante e a sua alma dilatavase para mais largos horisontes.

Mas Luiz de Albuquerque fallecera, o filho tinha chegado de Lisboa. Lisboa!... como lhe soava bem ao ouvido esta palavra! Parecia-lhe que lá ao longe, no sul, se reflectiam uns esplendores da vida parisiense.

Luiz alguns dias depois da morte do coronel veio visitar o Antunes, Adelina appareceu nasala, fitava-o com uma grande contensão de espirito, estudava-o. Que grande differença de todos os outros!

Tinha um certo desempeno e uma apresentação facil, estava á vontade, sem a grosseria burgueza dos seus conterraneos; e tinha umas falias cheias de importância, fazendo deslisar a conversação atravez das seducçoes da vida da capital, faiscando-lhe a cada instante nos labios o nome de algum parente illustre, ou referencias pomposas a uma prima condessa.

Adelina tinha deslumbramentos e insensivelmente pensava que aquella mão fidalga podia abrir-lhe as portas de uma existência, para que se sentia fadada.

Luiz pelo seu lado achou esplendida a filha do Antunes, -- Quem havia de dizer, hein! que aquelle lôrpa fosse o pai de uma creatura tão apetitosa!

-- Mas é admiravel esta pequena! -- dizia com os olhinhos pequenos a faiscar desejos -- Olha se a vissem em Lisboa! Ha por lá nada que se lhe compare?... Fallavam da Vimeiro... uma delambida ao lado d’esta.

E passava em revista as perfeições de Adelina. Que frescura respira esta mulher deliciosa!

E depois aquelle corpo tão bem talhado, aquelle pulso que denuncia um braço roliço e bem feito, a curva saliente e firme do seio, o pescoço muito redondinho, de uma alvura baça, macia, ligando-se na harmonia de uma suave ondulação a uns hombros cheios e bem contornados, deixam adivinhar o desenho correcto de umas formas de modelo, sem demasias de nutrição. Só aquelles beiços carnudinhos e vermelhos fazem apetite.

O Antunes continuava a apparecer frequentemente na quinta da Cortegã. -- Porque emfim - dizia--um homem era para as occasiões e era muito obrigado áquella familia.

Estreitavam-se as relações, o Antunes e a filha instavam com a mãe de Luiz para que sahisse, era preciso passear, espairecer, ella andava fraquinha, abatida, e a saude primeiro que tudo.

E sahiram todos a passear, o Antunes caminhava pausadamente pela estrada, ficava-se atraz com D. Carlota, parava de quando em quando para accentuar uma passagem do caso interessante que ia relatando e animando com largos gestos; contava a sua vida, os bons negocio s que tinha feito. Graças a Deus tinha sido muito feliz. Que elle, por si, não se importava com riquezas, mas pela filha, isso sim, estimava-as. E não era por se gabar, mas a sua Adelina havia de ficar cheia como um ovo, levava para a cova esta consolação, podia fazer figura e gastar como uma fidalga.

Luiz e Adelina adiantavam-se insensivelmente, a principio havia uns silencios enleados, sentiam debaixo dos pés o rangido da areia do macdam ou o estalido de alguma folha secca pisada.

Era no outomno, as arvores começavam a perder a redondeza ramulhada e verde; o afogado das ramagens adelgaçava-se; para além grandes massas negras de montados boleavam-se em verduras escurentadas de pinheiraes; os ultimos raios do sol, espalhando uma cor alaranjada, faziam um resplendor de ouro muito vivo nas folhagens rareadas, de uma amarelidão tostada, e depois o horisonte afogueava-se em vermelhidões que percorriam todas as gradações de colorido, e nas alturas o céo esbatia-se na uniformidade de uma côr opalina.

Adelina sentia-se penetrada de todas as suavidades em que se reflectiam as meias tintas outonaes, ouvia com recolhimento os rumores melancolisadoresdo dia que expira, o fremito das folhas que cahiam como lagrimas, o chiar triste de algum carro ao longe, o latido de um cão, o toque dolente de Ave-Marias. As vezes ouviam-se os sons longinquos de algum campanario que repicava festivamente, os foguetes estalavam com um estrepito secco, abafado na distancia, largando uma fumarada, como novellos de algodão enlameado, e ella mergulha va a vista na profundidade calorida do poente com um olhar docemente quebrado. No horisonte agglomeravam-se nuvens violaceas sobrepostas de massas plumbeas, e orladas em baixo de manchas sanguineas e uma melancolia suave e feliz da va-lhe uma sensação de bem-estar ineffavel.

Passaram assim muitas tardes, ás vezes havia durante o passeio peripécias imprevistas; de repente surdia de um atalho uma manada de bois, Adelina soltava um grito de susto, instinctivamente chegava-se para Luiz, ficavam muito juntos, as mãos apertavam-se, Adelina purpureava-se e sentia o sangue escaldar-lhe as veias.

Na volta do passeio o Antunes e a filha acompanhavam D. Carlota até á porta de casa, e vinham as instancias para descançarem, passarem um bocadinho da noute. E foi assim que nos contactos d’aquelle galanteio Luiz se foi apaixonan¬ do. D. Carlota deixava-os, não lhe desagradava que o filho casasse rico, o Antunes esse esfregava de contente as grossas mãos com saliencias nodosas nos dedos. Um dia Adelina foi pedida em casamento pela mãi de Luiz.

O Antunes procurava dissimular essa alegria e Adelina interrogada deu uma resposta afirmativa.

E porque não? Não era Luiz um marido com todas as condiçoes para realisar o seu ideal de felicidade? Que mais podia ella desejar? Luiz era fidalgo, ella rica, gosariam a vida, reflectirse-hia de seu marido uma grande consideração sobre ella. Ter um marido, um homem que se apossaria de toda a sua pessoa, como esta ideia a perturbava! Os novos aspectos que iam transformar a sua existencia excitavam-lhe curiosidades latentes e sentia nos nervos uma vibraçãosinha deliciosa, o seio dilatava-se-lhe na sensação de uma vaga voluptuosidade. E não era isto amor?

Na noute anterior ao casamento teve um somno agitado, acordou muito cedo com um grande quebranto e tinha os olhos pisados.

O dia amanhecera morrinhento, cahia uma chuvasinha que penetrava o corpo de humidade, sentiu calafrios, parecia-lhe que aquella humidade nevoenta se condensava na sua alma, e ficou de muito mau humor por não ter muito sol, muita luz para o seu casamento.

Mas esta sensação desconsoladora dissipou-se depressa e teve uma sensação de jubilo e orgulho, ao entrar em casa de Luiz, quando viu dous retratos a oleo, que pendiam da parede sobre o sofá, encaixilhados em molduras douradas muito apparatosas, com brasões sobrepostos.

O retrato do coronel aprumava se marcialmente; o farto bigode grisalho, terminando na espessura de umas guias compridas, dava-lhe uma catadura mavorcia; pousava arrogantemente a mão esquerda sobre os copos da espada, e a direita pendia segurando um par de luvas muito estiradas cahindo inertes sobre a perna; a cabeça alteava-se sobre um pescoço de touro entalado na gola da farda. Na outra moldura apparecia a figura esguia de D. Carlota, de pé, com um ar de morbidez anemica, o cabello em bandós collavase ás faces emagrecidas, a mão direita cahia delgada, escorrida sobre a redondeza superabundante do vestido de seda, a outra apoiava-se levemente com as pontinhas dos dedos sobre uma mesa, coberta com um panno verde e no corpete do vestido preto, em volta do pescoço, destacavam alvuras de um colleirinho liso, largamente espalmado, d’onde se escapavam dous fios, cor de gemma de ovo, prendendo-se a um pequeno relogio pendente da cintura, que se adelgaçava até terminar em bico.

Viveram contentes os primeiros tempos. Luiz estava radiante, decididamente sua mulher era adoravel, descobria-lhe todos os dias novos encantos. Sentia-se bem e tratava de se accommodar regaladamente na existência. O Antunes dotára a filha bizarramente, o dote levara a fartura á casa da Cortegã, depois da morte do sogro ainda seria melhor, o futuro não dava cuidado, tinha uma mulher bonita, agora era só conchegar-se n’este ninho macio e gosar. Não seria isso difficil para elle, era de genio accommodaticio, gostava de boa mesa, mas não comia muito. Trazer a pansasinha contente, isso sim, sobretudo o seu regalo era beberricar bebidas muito alcoolisadas e um cafésinho forte e depois gostava de não fazer nada e taramelar muito, não que elle tivesse cousas sábias a dizer, ou fosse difficil na qualidade das palestras; mas era expansivo, de humor alegre e igual, o que queria era espraiar-se em cavaqueiras, atordoar-se nos ruidos da parolice e em tendo quem lhe ouvisse attento a sonoridade ôcca do seu palavriado balofo, estava contente. Usava trajos vistosos com muitas cores, toda a sua pessoa reluzia e respirava um bem-estar sereno e pachorrento na expansibilidade de uma nutrição moderada, que dava uma ideia consoladora de uma carne folgada e uma acção cerebral pacatinha.

Costumavam montar a cavallo, Adelina gostava muito de galopar, sentia uma impressão voluptuosa em aspirar, com as narinas levemente dilatadas, o ar agitado, que lhe fustigava as faces, ficando depois offegante com o sangue muito agitado, que lhe punha uns tons quentes na carnação das faces. Depois mettiam os cavallos a passo. Adelina relanceava pelos aspectos tranquillos da natureza ura olhar, que se dulcificava sob o influxo sereno de uma tarde amena, que vai cahir nas melancolias do crepusculo. As patas dos cavallos faziam um echo sonoro e pausado na calada serenidade da tarde. E Adelina, na felicidade da sua lua de mel, sentia que o pensamento se lhe abria, como d’antes, aos encantos da natureza; communicava ao marido as suas impressões e queria admirar com elle as nuvensinhas nas alturas, de uma grande suavidade rosada, ou a lua que emergia phantasticamente muito afogueada na sua rotundidade por traz das montanhas, em quanto que em baixo, nos valles, os vapores da terra e os fumosinhos dos casaes se alastram, como um lago de transparencia lactea.

Luiz relanceava para tudo com os olhos mornos e desbotados a vista inexpressiva.

-- Era bonito -- dizia -- parecia uma vista de theatro. Em S. Carlos, na Norma, havia uma scena de luar, também era assim a lua a sahir por traz de uns montes, era muito bem feito.

Adelina achou a resposta chata, mas as palavras Norma, Bellini, deram-lhe aos nervos uma titillaçao, e as suas ideias mudaram de rumo com exaltação, como a garimpa de uma torre que vira ao vento bruscamente, e começou a inquirir o marido ácerca das bellezas da musica sentimental do melodioso cysne siciliano.

Luiz informava largamente, com emphase, contente de poder exhibir uma sciencia banal de noticiário, conservada no ouvido como um echo das palestras de botequim; e cantarolava trechos da opera para melhor elucidação do assumpto.

-- Mas gostava mais do fado, era exquisito?... Mas então... Era uma telha, tinha-lhe dado no goto, para elle não havia nada como um fado do Vimiozo, bem choradinho, bem repenicado. E depois estava muito na moda, haviam de cantal-o ao piano.

E os olhinhos baços e frios espertavam, como uma braza mortiça, que se aviva com um sopro.

Adelina cahiu em um silencio meditativo. O crepúsculo descia, a lua mais alta, com uma cor de phosphoro, espalhava uma luz muito lavada, as estrellas começavam a tremeluzir pallidamente no azul que desmaiava em uma uniformidade cor de perola, a nevoa dissipára-se, além o rio descobriase como um reptil serpeando entre arvoredos arripiados pela aragem, e a lua entornava-lhe sobre a superfície encrespada uma fusão de diamantes, que se alargavam em uma prolongação trémula, como uma couraça de escamas prateadas.

Approximavam-se de casa. Adelina ia um tanto seccada, com uma fadiga nervosa que a azedava. Morcegos esvoaçando quasi lhe roçavam as azas pela cara; ao passar pela Igreja as corujas soltavam o estridor leve das suas piadas surdamente arripiadas; aldeões derreados pelo trabalho passavam saudando humildes, pateando os tamancos com um som triste.

Passaram dous mezes. Luiz envolvera-se commodamente em uma atmosphera de habitos egoistas, dispendia-se em cavacos pela loja de tabacos da Jacintinha do brazileiro e pelo botequim, jogando partidas de bilhar e saboreando licores e Adelina presentia que a sensação nova do casamento se ia gastando como um vestido que perde a frescura com o uso.

A vida convertia-se outra vez em uma regularidade monotona que a fazia bocejar, formava-se em volta d'ella um circulo de hábitos pautados que a opprimiam, como um aro de ferro, que lhe suffocava a vitalidade do espirito e todas as expansões da intelligencia; o seu viver affiguravase lhe seccante e somnolento, como o movimento incessante e modorrento de uma nora, irritante como pingos de agua que cahem na cabeça com uma regularidade monotona e compassada, e a existência assim continuada apparecia-lhe como uma comprida estrada chata e arida, sem os relevos do pittoresco, sem o colorido da paisagem.

Surdiam as revoltas do temperamento; o seu humor perturbava-se, azedava-se, tinha impaciencias, movimentos desordenados no caracter. Umas vezes o teclado do piano cantava vibrantemente; pelas janellas abertas, illuminadas, soltava-se uma torrente atabalhoada de notas engalfinhadas, que deixavam cahir uma grande sonoridade no silencio aldeão, outras vezes decorria uma temporada sem pôr as mãos no teclado. Se ella tivesse um auditorio, um auditorio brilhante! Mas tocar só para ella!... Luiz adormecia muitas vezes ao som do instrumento. E sentia dentro de si um vacuo profundo, uma grande desconsolação inundava-lhe a alma, sentia-se invadir de um tédio, como se um nevoeiro espesso lhe envolvesse o cerebro. E sentava-se á janella, banhando-se no luar, fitando o espaço docemente illuminado e dilatava o peito, com um suspiro sentimental, na vehemencia de um vago anceio.

A principio Luiz parecia-lhe apaixonado, cercava-a de attenções carinhosas, mas Adelina ia notando que o enthusiasmo arrefecia, queixava-se, vinham os amuos; os seus bellos olhos, orlados de grandes pestanas, que lhe realçavam o brilho negro, velavam-se de humidade, como uma luz que amortece atravez de um vidro coalhado; uma lagrimasinha tremeluzia ao canto do olho, como uma gota de orvalho na extremidade de uma folha, rolava pela face e, atravez dos beiços vermelhos, infiltrava-lhe um sabor amargo. Era o primeiro fél da vida.

Estas scenas repetiam-se, Luiz protestava a energia inalterável do seu affecto, mas ia dizendo mentalmente, que sua mulher era impertinente e extravagante com as suas exigências de adoração perenne.

Mas as desillusões continuavam, e ella queixava-se do seu destino, era muito infeliz! Que má sina a sua nascer em uma aldeia! Como havia de encontrar alli uma alma capaz de a comprehender, de se elevar até á sua? Decepções sobre decepções! Illudira-se tambem com seu marido, as apparencias enganaram-na, comtudo tinha desculpa, elle vinha de Lisboa, como havia ella, n’aquella terra de rusticos, de comparar, escolher?... Mas também já era infelicidade, quem havia de prever que um homem educado em Coimbra e Lisboa fosse tão insignificante, tão chato? De musica não entendia senão o fado, letra redonda nem a podia ver!... o parvo... Que má sorte! era a fatalidade que a perseguia...

E Adelina sentia-se elevada a grande altura, comparando-se ao marido, olhava-o com certa desconsideração, vinham-lhe umas vaidadesinhas que a enchiam de um enjoo desdenhoso. Mas no intimo da sua alma sentia que seria para ella muito mais agradavel estimar, respeitar seu marido. Como seria bom se tivesse um homem, um verdadeiro homem que se lhe impozesse irresistivelmente, que ella adorasse!...

-- Mas agora não tinha remedio... pois que remedio havia de ter?... agora era soffrer, conformar-se... Mas era triste, triste!... viver assim toda a vida, renunciar ao amor para sempre... não estava má...

E revoltava-se contra o seu destino, sentia umas fadigas e um mal-estar que lhe dava um quebranto no corpo e um desfallecimento desconsolador no espirito, procurava distracção na leitura, lia muito, com ardor, com febre, mas o amor cada vez maislhe doudejava de redor com as suas azas luminosas, como uma borboleta em volta da luz.

A casa, onde vivia, estava soterrada em um lugar soturno, era uma baixa, cercada de serranias, que se contornavam duramente a distancia; das janellas do seu quarto, para além do muro da quinta, via-se a casa do juiz de paz, acaçapada, de aspecto avelhentado e carunchoso, com uma varanda de pau alpendrada, pintada de azul, á qual ia dar uma escada de pedra tosca. O snr. Casimiro tinha nos seus habitos a monotonia inalteravel de um relogio que regula bem, apparecia invariavelmente na varanda á mesma hora, punha uns grandes oculos, com grossos aros de me tal, e sentava-se a soletrar a gazeta com attenção demorada e o labio inferior pendente. Era um velho baixote, atarracado, feito de uma só peça, tinha movimentos lentos, um andar vagaroso, muito descançado, dava umas passadas pezadas, seguras, que nunca escorregam; na gravidade tinha o aspecto de um boi, e de verão ou de inverno usava invariavelmente um jaquetão comprido, amplo, de panno forte cor de pinhão, muito surrado. Ao lado do prédio de habitação havia outra casinhola, que servia de abrigo a uma azemola e a um porco, tinha uma porta larga com muitas teias de aranha no batente que se não abria, e o snr. Casimiro costumava fazer visitas, a horas certas, aos seus animaes, interessava-se, identificava-se com elles. Era elle mesmo que conduzia o burro pela arreata a beber no tanque proximo, assobiava-lhe, e levava o porco a espairecer, chamava-lhe -- réco -- e acompanhava-lhe os grunhidos com outras phrases adequadas, como se os dous se entendessem, com um timbre de voz arrastada de uma gravidade roufenha, como o som de uma caldeira rachada.

Aquelle homem apparecia-lhe todos os dias como a mais completa encarnação da vida burgueza de província, e esta imagem irritava-a.

Este viver mesquinho da aldeia opprimia-a cada vez mais, parecia-lhe que se lhe alargava de redor uma solidão sem fim. Exasperava-se n’aquella atmosphera de mediocridade que a envolvia, esta vida no meio de camponios imbecis, de pequenos burguezes insignificantes irritava-a como uma injustiça.

Tédios profundos revolviam-na, como enjôos que lhe embrulhassem o estomago e para desviar a vista d’estes aspectos irritantes, voltava a imaginação avida para as existências brilhantes das grandes capitaes, que tumultuam em um turbilhão de prazeres e fluctuam em um ambiente ardente de paixões. Por vezes fatigada de lêr, apoiava a a mão á testa, cerrava os olhos, e as fulgurações dos theatros e dos bailes, as ruas resplandecentes de bicos de gaz e do crystal illuminado das vitrines, as mulheres decotadas com hombros de jaspe, enlaçadas nos braços de sujeitos elegantes de uma pallidez fina e aristocratica, passavam em um redemoinho atordoante. E Adelina sentia que a carne lhe estremecia, como se realmente se sentira afagada de todas as febres do prazer, de todos os delirios da paixão e requintes do luxo.

Outras vezes sentava-se ao piano, percorria o teclado com uma indolencia fastidiosa. Mas insensivelmente os dedos animavam-se, o piano vibrava uma phantasia da Lucrecia Borgia. Entrevia Veneza com os seus palacios illuminados a exhalarem as harmonias das festas e dos saraus, a espargirem claridades atravez dos vidros coloridos, que se reflectem em tremulas scintillações nas aguas escuras e mansas dos canaes mysteriosos; as gondolas deslisavam serenas, decorativamente illuminadas, atracando em cardumes á escadaria de algum palacio ducal; outras escapavam-se silenciosas, por baixo da Ponte dos Suspiros; abrigando no seu interior acolchoado de seda o mysterio de uns amores. Perdia-se n’estas phantasias, em que os dominós passavam discretamente, segredando-se de passagem na solidão de alguma sala mais afastada do foco da festa; ou então eram paixões vehementes que se debatiam nas trevas de uma noute sem lua nem estrellas, entre perigos e sobresaltos, punhaes de sicários que scintillam na escuridão, suspiros flebeis que expiram no silencio da noute e frémitos de beijos longos, apaixonados... Mas a realidade voltava com toda a sua desesperadora monotonia, os dias succediam-se e o dia seguinte era sempre o mesmo, com a mesmissima physionomia descolorida; procurava distrahir-se, recitava ao piano uma poesia, mas a sua voz fazia-lhe o effeito de um echo no deserto, n’aquelle deserto da sua vida, onde ella procurava, com desespero, um oasis, uma nesga de verdura alegre, em que amenisasse a vista fatigada, mas debalde... e ella sentia como que a sensação que experimenta uma pessoa a quem falta o ar.

Sahir da aldeia, viver em Lisboa, ou no Porto, era agora o seu pensamento fixo, o caracter azedava-se-lhe, tornava-se de um humor difficil e desigual, tratava o marido com repentes asperos, com dictos cáusticos, escarninhos. Luiz deixava passar estas rajadas de mau humor; como era de uma indole sereninha e fleugmatica, escudava-se na mudez de um estoicismo estudado, installarase commodamente na vida, e o seu maior cuidado agora era não se deixar perturbar na doçura dos seus gosos tranquillos. E era d’este modo que Adelina ia assumindo uns ares de superioridade dominatoria e incontestada.

Um dia Adelina aventurou a sua ideia fixa.

Os olhinhos de Luiz luziram avidamente, era bem melhor viver em uma terra grande, mas não se atrevia a deixar só a mamã e ella, coitadinha!

não queria deixar a casa, a que se tinha habituado com o apego proprio da velhice, e a qual lhe dava tão saudosas recordações do marido. E depois vinha a questão de meios; a mezada do Antunes era excellente na provincia, mas insufficiente para se viver folgadamente em qualquer das cidades. A esse respeito elle podia dizer alguma cousa. O Antunes foi ouvido e acolheu com boa sombra o projecto da filha. Elle, porém, optava pelo Porto, não os queria muito longe.

-- Adelina tinha razão, ella não nascera para apodrecer toda a vida na pasmaceira de um burgo chôcho. E para que era o dinheiro? A questão de meios ficava por sua conta, accrescentaria a mezada. Mas louvava os escrúpulos do genro, approvava que se fizesse a vontade da snr.a D. Carlota, era uma senhora idosa, com uma saude delicada, era preciso não molestal-a e depois estavam novos, tinham o futuro por si.

Esta nova contrariedade ainda mais exaspeperou o mau humor de Adelina, encarava sua sogra como um obstáculo aos seus planos, um empecilho, e os azedumes accumulados começaram tambem a fazer uma surda explosão sobre a mãi de Luiz.

Tratava-a com dureza, fallava-lhe pouco e quasi se limitava a responder a perguntas ou só abria a bocca para soltar phrases descortezes e acrimoniosas. D. Carlota doia-se, mas devorava em silencio as suas lagrimas.

O caracter de Adelina apparecia-lhe agora sob um aspecto que a assustava, tinha apprehensoes pelo futuro do filho. A sua saude começou a alterar-se, desmedrava a olhos vistos.

Uma vez, no fim do jantar, a conversação descahiu para o sempre debatido projecto de Adelina; Luiz, quente dos vapores da comida e do vinho do Porto, animou a discussão acalorandose em defender o adiamento da mudança para o Porto. Ella levantou-se da mesa com arremesso, deixando atraz de si a impressão desagradavel de umas phrases descortezes e o ruido de uma porta impellida com força. D. Carlota, toda nervosa, com os olhos a rebentar de lagrimas, atirou-se aos braços do filho, e com a voz embargada de soluços pedia-lhe, que tratasse de satisfazer a vontade da mulher, porque ella ficaria ou talvez os acompanhasse.

Luiz tinha ficado atarantado, e com um atordoamento imbecil procurava desculpar a mulher.

-- Tinha assim uns repentes, mas no fundo era boa, cahia logo em si, e de certo viria pedir-lhe desculpa...

Mas a saude de D. Carlota peiorou e alguns dias depois soltou uma golphada de sangue, Luiz assustou-se muito, o medico veio e receitou recommendando socego, muita tranquillidade.

Um dia sentiu-se mais desfallecida, deixouse ficar na cama, e quando a criada veio com um caldo, encontrou-a banhada em sangue; uma das maos sobre o peito emagrecido torcia a camisa em uma crispação de agonia; cora os olhos vidrados, a bocca torcida para um lado, tinha a cabeça arremessada para traz sobre as almofadas, a que estava encostada, em uma contracção rigida.

Estava morta.

VI Adelina commoveu-se com o fallecimento da sogra, os aspectos da morte perturbavam-na e a compuncçao veio fazer uma diversão ao estado da sua alma. Condoia-se do abatimento de Luiz, fezse terna, consolava-o com muito carinho, com uma exaltação dolorida; acompanhava-o ao cemiterio, e, espalhando flores sobre a campa, sentia como que uma voluptuosidade amarga em affectar uns requintes de condolência sentimental.

Mas a verdade era que desapparecera o unico obstaculo ás suas mais fervidas aspirações, o sentimentalismo da dor e as perspectivas seductoras de uma vida melhor chocavam-se entre si, como duas imagens que se encontram e confundem no cerebro, das quaes a mais viva absorve a mais pallida, á similhança de uma claridade forte que dissipa uma sombra.

Tinha passado um mez, estava satisfeito o preito de dor; aquelle successo luctuoso parecialhe já recuado em um horisonte muito longínquo, achava exagerado o acabrunhamento de Luiz e attribuia-o a um torpor imbecil do seu caracter.

A ideia fixa -- sahir da aldeia -- estimulava-a nervosamente. Mas Luiz não se movia, era indolente, tardo e difficil na execução, estas pachorras exasperavam-na e Adelina precisou de ser energica, conseguindo por fim que o marido fosse ao Porto procurar morada. As viagens repetiram-se, depois ella também foi com o Antunes e fixaram a escolha em uma casa, que um brazileiro tinha deixado, obrigado pelos negocios a vol¬ tar ao Rio de Janeiro. Queriam uma casa com boa apparencia, vistosa, que désse uma ideia vantajosa das suas pessoas e aquella estava ao pintar.

Tinha dous andares, com azulejo lavrado, frisos dourados nas janellas, batibanda com balaustres muito bojudos e nas extremidades dous vasos de pedra com catos de ferro pintado de verde. Comprou-se alguma mobilia ao brazileiro, o resto depois, o principal era partir e comtudo Luiz não desatava, apparecia sempre um obstáculo, pretextara-se o inverno e depois a primavera ia chuvosa.

Mas o tempo melhorou e Adelina tomou uma attitudesinha, que não admittia replicas.

Fixou-se o dia da partida. Fizeram-se preparativos, Adelina remexeu as gavetas, acondicionou nas malas as joias, a laçaria, as golas rendilhadas, muito rijas de gomma e todas as suas cousinhas de toilette dentro de caixas de cartão, cobertas de estampas muito coloridas, lustrosas, onde se requebravam meninas de finíssima belleza sobre as quaes ella deixava cahir ás vezes olhares pensadores e que tinham requintes de elegancia na cintura, sorrisos irresistiveis, muito despeitoradas, com os vestidos levantados mostrando o começo de pernas bem torneadas e pésinhos ideaes.

Revolvendo as gavetas encontrou ramilhetes seccos, atados com fitas bolorentas, e um pacotesinho de cartas apertado com uma fitinha azul desbotada, desatou o embrulho, do fundo da gaveta sahiu um perfume enjoativo, mixto de mofo e pat-chouly, leu alguma carta ao acaso, encolheu os hombros desdenhosamente, muito nauseada -- Que nojo!... E correu ao jardim, fez uma fogueira d’estas reliquias amorosas, a lavareda devorava as folhas de papel que se torciam, como membros que se debatem em convulsdes de dor em uma fogueira, e ella olhava contente para aquelles fragmentos carbonisados que se espalhavam no ar ao sabor do vento, como se o passado, que ella renegava com tédio, voasse n’aquelles folliculos negros, imponderaveis, para as regiões do nada.

Chegara o dia da partida. Resoava o rodar da carruagem dentro do pateo, parando junto da escadaria de pedra abalaustrada, que se bifurcava em dous lanços até ao primeiro e unico andar da casa apalaçada. Os caseiros e criados faziam roda. O snr. Casimiro e o boticario, na qualidade de visinhos mais proxiraos, vieram fazer os seus cumprimentos de despedida. Adelina desceu a escada rapidamente e saltou para dentro da carruagem com modos sacudidos de quem tinha pressa. Estava desesperada com a estopada dos visinhos. -- Não estava mau o desproposito! Que massadores com as suas despedidas! Haviam de perseguil-a até ao fim estes alarves.. .

Luiz despedia-se dos visinhos muito descançado, com ar repousado e riso bonacheirão. O boticario, entresecco, alto, esgalhado, prodigo de civilidades, rasgava a bocca até ás orelhas na expansão de um cumprimento amavel, e o snr. Casimiro, com um ar de excellente pessoa, apertava a pequena mão de Luiz na sua mão grossa e callosa.

-- Que tenha muita saude, snr. Luizinho, para o que fôr preciso aqui ficamos. Boa viagem e que se divirta e mais amadama, aquillopor lá sempre são outros ares...

Mas Adelina batia o pésinho com impaciencia, enfadada, e com a voz aguda de um tremulosinho de cólera gritava dentro da carruagem -- Que se aviasse, fazia-se tarde, chegariam ao Porto de noute...

O Antunes ia e vinha afanoso, dava ordens, era elle que pensava em tudo, em quanto que Luiz não fazia nada, dirigia a collocação de uma grande mala na concha da carruagem, dispunha dentro do trem a manta para embrulhar os pés, o sacco da noute c a cestasinha á ingleza, bem atochadinhade viandas -- Uma petisqueira para o que désse e viesse, nada de cahir na fraqueira. Tu tem-me cuidado com os animaes por esse caminho. Lá para o fim do dia toca a abafar, as tardes ainda estão frescalhonas... E até breve, um dia lá caio como um raio...

A carruagem rolou, pisando o saibro do pateo com um rangido, Luiz e Adelina debruçavam-se pelas portinholas e acenavam o ultimo adeus; desappareceram em uma volta da estrada o ruído das rodas esmoreceu ao longe.

Os dous visinhos recolhiam calados a suas casas. O boticário caminhava com as mãos atraz das costas, o vento fazia fluctuar as abas do seu casacão, coçado, muito escorrido, com grandes prégas, como se estivesse pendurado em um cabide.

-- E que lhe parece, oh snr. Casimiro, a tal serigaita?! Aquillo é lá criação!... -- E parava de repellão, ao erguer a cabeça, o nariz arrebitado deixava ver umas largas fossas nasaes, e punha a descoberto um pescoço encarquilhado com grossas cordoveias.

-- Hum... hum... um bocadinho no ar... o tempo... com o tempo vem a assentar.

-- E depois com que ares anda esta espevitada, depois que casou com o fidalgo. Traz o rei na barriga. Ora até o diabo havia de rir...

-- Novidade, snr. Balthasar, novidade, aquillo está ainda com o sangue na guelra. -- E o snr. Casimiro, com as mãos nos bolsos do seu jaquetão, ia caminhando pesadamente, com o olhar baixo, o dorso boleado, mostrando a sua pescoceira anafada e vermelha.

A carruagem rodava veloz pela estrada, deixando atraz uma nuvem de poeira. Adelina ia muito refastelada, extasiava-se a olhar para os campos e para as paisagens que se iam desenrolando, levava no coração uma sensação de alegria, como se tivesse lá dentro uma chilreada jubilosa de passaros, e aquella successão de quadros dava-lhe como que um atordoamento voluptuoso, que a lançava no goso de uns devaneios deliciosos.

Nuvensinhas tenues esbatiam se na transparencia azulada, como musselinas muito esfiadas; os campos batidos do largo sol brilhavam com todos os cambiantes da verdura; passavam as casinholas rusticas, de largas pedras tisnadas, cobertas de colmo, com as suas hortas de couves gallegas azulejadas; nas pequenas janellas, sem vidraças, o barro das panellas, em que florejam os cravos, contrastava com o frescor e colorido das flores, sombreadas pelas ramadas, cujas hastes pendiam como grandes cachos; ás portas as velhas fiavam paciticamente emquanto as crianças nuas se retouçam na poeira da estrada ao lado das gallinhas que se espanejam e cacarejam.

Succediam-se as tabernas com o seu ramo de loureiro secco agitado pelo vento, as casas alpendradas dos ferradores, os nichos do purgatório, o campanario rustico, as cruzes no adro e o arco festival, ornado de murta e flores murchas, que dão ainda uns rebates da ultima festa, e depois ainda o verde incomparavel dos campos de linho, que dão alegria, e as searas de trigo com as suas ondulações largas e suaves, como se estremecessem voluptuosamente cheias de vida aos afagos da aragem, similhando, aos raios do sol, um lago de ouro muito pallido.

Adelina contemplava esta natureza, que renascia por toda a parte exhuberante e sensual; vinham-lhe os perfumes acres do campo; o calor da carruagem amollentava-a; afofava-se mais languidamente no fundo acolchoado, penetrada de uma sensação narcotisadora, com os olhos meio cerrados; os aspectos da natureza iam-se apagando da vista pouco a pouco, como um quadro dissolvente, o pensamento voava-lhe para outro mundo, e vagueava pelas perspectivas deslumbrantes da vida elegante, sentia-se mergulhada no ambiente excitante dos theatros, dos bailes, como em um banho de leite aromatisado. a-se depois no Palacio de Crystal, em noute de illuminação,com os arcos alinhados na avenida a scintillar a luz crua do gaz; debaixo d’aquella abobada de luz sentia-se radiosa, arrastando uma cauda elegante; os accordes dos cobres, na banda instrumental, vibravam no ar sonoridades, que iam despertar-lhe no intimo d’alma harmonias occultas, que a penetravam de doçuras ineffaveis, e a vida assim apparecia-lhe boa, sorridente, luminosa, como se caminhasse por uma galeria sem fim, cheia de luz e flores.

Luiz sumido ao canto da carruagem resonava e ella olhava-o contrahindo os labios polpudos no azedume de um sorriso desdenhoso e pensando - Que materialão! Quando se approximavam do Porto a tarde cahia com muita serenidade. Havia na atmosphera uma frescura suave, o horisonte corava-se de uma cor viva, e no alto alargava-se uma serie ondulante de pequenas nuvens, agglomeradas, como se aquella parte do firmamento estivesse acolchoada de algodão luminosamente rosado.

De quando em quando as vozes, de uma energia rude, dos trabalhadores, caminhando em rancho, açodados, pressurosos, ou a chiada de algum carro, gemendo sob o pezo da carga, cortavam o ar calado; manadas de bois recolhiam aos curraes com placidez ruminadora, melancholica; ouvia-se ao longe o som indistincto de um repique festivo; foguetes relampagueavam a distancia desfazendo-se em novellos de fumo, e os ralos punham no ar a vibração macia de um zunido prolongado.

Mas aos ruidos pacatos do campo ia succedendo a agitação murmurosa da cidade, um burburinho longinquo ia crescendo, e emquanto branquejavam as primeiras casas, as nuvemsinhas rosadas no firmamento faziam-se violaceas, desbotavam para uma cor plúmbea, os tons de luz apagavam-se no horisonte, iam apparecendo uns pontos luminosos, que mais perto se transformavam em pequenos leques de luz nos candieiros do gaz e a atmosphera cahia na uniformidade do crepusculo.

Entraram na cidade, ouvia-se o rodar de trens e a algazarra de rapazes; assomaram ao alto da rua de Santo Antonio e o extenso lanço de ruas apparecia como uma galeria illuminada, os candieiros do gaz e as vitrines resplandecentes alargavam na calçada grandes claridades, vozes agudas de rapazes apregoavam jornaes, senhoras de manta na cabeça sergenteavam pelas lojas, dando passinhos saltitantes sobre os tacões altos com uma frivolidade burgueza, costureiras de olhar petulante, ladino de chale ou capa comprida, iam em ranchos com um estouvamento alegre; sugeitos empertigados, outros com ar relaxado passavam com modos estúrdios ou caminhavam muito repousados, relanceando olhares indolentes para as vitrines, bambaleando o corpo, e Adelina sentia um atordoamento n’esta transição do quietismo da sua aldeia para este movimento, que tinha uma percusção sonora na limpidez da atmosphera.

A carruagem parava á porta do Louvre, e pouco depois estavam sentados á meza redonda.

A luz do gaz, cahindo na superficie polida da porcellana e dos crystaes, dava uns reflexos fortes, que lhe pareciam mais brilhantes do que os do sol no burgo onde nascera, os homens fitavam-na com insistencia, os criados de jaqueta branca serviam-na com modos discretos e respeitosos e ella sentia-se contente, feliz n’este mundo novo e promettedor.

O jantar terminara. Luiz levantou-se da meza e Adelina foi sentar-se á janella com um quebranto molle da jornada; parecia-lhe que os nervos retesados se distendiam em uma lassidão deliciosa, o ar estava immovel e sereno, havia luar que espalhava suavidades de uma luz pallida em contraste com as sombras dos predios, que se projectavam duramente nas calçadas, mas uma nevoasinha muito diaphana amaciava a dureza dos contornos da casaria, o seio arfava-lhe suavemente, sentia um bem-estar ineffavel e a vida desdobrava-se-lhe agora boa e meiga, como a diaphaneidade tranquilla e luminosa d’aquella noute que a envolvia.

VII Tinham batido cinco horas da tarde com ura pequenino som agudo no grande relogio de ebano preto com incrustações de bronze dourado, pompeando magestosamente, ladeado de serpentinas de prata dourada, no rebordo do fogão, coberto de um lambrequin com borlas, igual ás cortinas e reposteiros, e remirando-se no espelho enquadrado em uma moldura sem verniz de pau santo, primorosaraente lavrada. Nas janellas abertas de par em par cortinados muito rendilhados, aos quaes se sobrepunham outros de um estofo de complicados arabescos, que imitavam os desenhos dos chales de cachemira, agitavam-se brandamente ao sabor de uma brisa tepida, que penetrava no aposento levando as emanações penetrantes dos ultimos lilazes e glicinas, que abriam no jardim as suas urnas de aromas. O piano irradiando as scintillações negras da sua madeira envernizada, com um caderno de musica aberto entre os reflexos metallicos dos castiçaes bronzeados, estava aberto, sorrindo com a sua bella dentadura de marfim, como quem ainda ha pouco tinha soltado a melodia da sua voz tagarella. A viração, de quando em quando, impellia os cortinados das janellas e refrescava a temperatura abafada que o calor do dia tinha concentrado no interior; pelos intersticios dos cortinados entreabertos escoavam-se por vezes claridades, que aviventavam a luz discreta da sala e se projectavam no tapete de um amarello tostado, como relampagos em céu nublado. Em frente das janellas begonias carnudas e uma avença ramulhuda, de um verde vivo de esmeralda, em vasos de porcellana, sustentados em pedestaes bronzeados, reviravam para fora as folhas avidas de ar e luz.

Gravuras de preço pendiam das paredes, entremeavam-se com as jarras da índia sobre etageres esculpturadas; contadores de pau preto, incrustados de marfim, mezas com pés torneados, poltronas flacidas, convidativas confundiam-se e harmonisavam-se para dar um aspécto gracioso a esta sala elegante, e o seu aspecto expressivo, caracteristico, como um rosto sympathico e intelligente, retratava-nos logo, como que nos traços seguros de um esboço fiel, a physionomia dos donos da casa.

Havia alli vida e animação no meio d'aquella sumptuosidade. Mas não era o luxo que himpa na banalidade da seda amarella ou encarnada das salas insulsas, onde os moveis se perfilam com aquella severa rigidez e vulgaridade symetrica, que nos dá uma sensação de frio, de constrangimento e de somno, com pretensões a imitar a solemnidade enfatuada, os aprumos hirtos das altas recepções diplomáticas, cheias de morgue e de rigidez engommada, como um parvenu que imita grotescamente os ademanes das classes superiores a que aspira.

A disposição d'esta sala era uma confusão harmoniosa, harmónica sem insipidez symetrica.

Como uma bella paisagem com um raio de sol a alegrar a frescura verde, era a harmonia no meio de um mixto desordenado, uma mescla de cousas diversas, artisticamente combinadas, que nos suggerem impressões suaves e calmantes.

Não havia côres arreliosas; as tintas do papel e dos estofos eram tranquillas; o bom gosto suavisava a opulencia, corrigia a sumptuosidade, como os estores na doçura de uma penumbra amaciam a crueza da luz de um dia banhado no sol de julho; o luxo não tinha o brilho que fere, não irritava com pompas pretenciosas, tinha as suavidades de um colorido placido, como o encanto doce de um panorama, em que se esbatem a meias tintas de um occaso outonal. Não era a arrogancia da opulencia boçal, mas a manifestação intelligente de um espirito de eleição.

Cadeiras de todos os feitios, desemparelhadas, tamboretes de formas diversas espalhavam-se em uma confusão que era a harmonia; affectando desarranjo era uma symetria graciosa; sobre o fogão, mezas, consoles e étageres entre mixturavam-se com as jarras da índia, as porcellanas de Saxe e de Sévres, as faianças, os bronzes, os crystaes da Bohemia em uma confusão cheia de subtilezas engenhosas, que nos davam uma ideia elevada da mão feminina, leve e delicada, que com tão fino tacto tinha presidido ao arranjo d'este ninho confortável, em que o corpo se sentia bem e o espirito se deleitava.

Era a sala de passar as noutes na serenidade das alegrias caseiras, das palestras faceis nas horas de desenfado, uma sala elegante, não da elegancia que acceita a soberania indiscutivel de todas as phantasias, de todas as frivolidades da moda, mas d'aquella elegancia subordinada á direcção intelligente, que discorre e discerne.

Respirava-se alli uma alegria boa e tranquilla, que convida á vida do coração e do espirito no repouso intimo do lar, que sabe envolver-se na atmosphera do bello e afugentar as nevoas do tedio nas palestras que borboleteiam francas, estimulantes do bom humor, entre a leitura de um livro honesto, ou um trecho de boa musica ao piano e as concentrações do pensamento sem a morbidez das perturbações nervosas.

Fernando de Azevedo, recostado em uma poltrona, lia O Primeiro de Janeiro com desenfadada distracçao e tomava os ultimos tragos de café no gôso de uma serenidade descuidosa e feliz. Pousou o jornal, levantou-se e foi encostar-se ao espaldar da cadeira, em que estava sentada sua mulher.

-- Bonito bordado!.. E para que é isso?

-- Nem sei ainda bem... Póde ter diversas applicações, póde ser, por exemplo, para o enxoval do nosso pequenino... quando o tivermos.

-- E Margarida, sorrindo e pondo a descoberto toda a alvura do pescoço, inclinava para traz a cabeça olhando para seu marido, que mergulhava a vista na pureza d'aquelle olhar azul, que o fitava.

-- Sempre essa ideia fixa. Por fim has-de acabar por me tornar ciumento, parece que já nao te basta a affeiçao do marido. Pois olha, eu não sinto, mesmo absolutamente nada, a falta de um filho. Se vier, conheço que terei uma grande alegria, que serei ainda mais feliz, que adorarei o meu filho; mas tambem não me ralo com a sua falta. Sou tão feliz só com a minha mulhersinha... -- E roçou de leve os beiços pela testa lisa de Margarida.

-- Ora, já se vê. Os senhores maridos faliam muito bem, mas eu queria-os ver no nosso lugar.

Téem os seus negocios, a sua politica, a sua palestra no Club, uma infinidade de cousas que os interessam, que lhes occupam a actividade; nós temos só o governo da nossa casa, e, diga-se a verdade, não é uma missão agradavel em todas as suas partes. Os senhores do sexo forte vivem mais pelo espirito, e nós pelo coração, sentimos aqui thesouros de aífecto, exuberâncias de amor que chegam de sobra para o marido e para os filhos, e nenhum poderá com razão queixar-se da mesquinhez do seu quinhão.

E demais eu sinto alguma cousa de superior a mim mesmo; o amor de mãe, a maternidade é uma força viva da natureza, aninha-se no coração, penetra-nos todo o ser, rebenta espontânea e irresistivel como uma seiva de primavera. É uma necessidade da nossa organisação, um impulso providencial, desconhecer isto é desconhecer o coração da mulher e decididamente eu teria um grande desgosto, se não tivesse um filho!.. -- E vinha-lhe ao rosto pallido e branco uma animação, mas as faces não tinham o rubor vivo dos temperamentos fortes, nacaravam-se apenas, á similhança de uma gota de carmin que se espalha em uma taça de leite.

--Bravo! Que enthusiasmo! Dir-se-hia que Michelet fallou pela tua bocca. Mas não te impacientes tanto, para que havemos de estragar a vida sem motivo, aferrando-nos a contrariedades e dissabores imaginarios?. . Ainda não é tarde, estamos casados apenas ha dous annos. ..

--Bem sei, e o doutor disse que ha casos de muito maior demora, ás vezes passam-se muitos annos. Mas Deus me livre de esperar tanto, e depois um regimen hygienico, os banhos de mar. ..

--É verdade, os banhos de mar. . .

Então vamos para a Foz, hein?

Eu acho excellente, quando vamos procurar casa?

-- Mas quanto antes, a tarde está linda. Se nós fossemos hoje? Em vez de passear para outra parte. .. Mas ha-de concordar commigo, senhor meu marido, que é uma grande alegria, uma grande felicidade ter uma filho; estremece-se de prazer só de pensar no nosso pequenino, louro como um cherubim, deitado no seu berço com a carinha fresca e córada entre roupas brancas, como uma rosa em leito de neve, e depois o seu chilrear de passarinho, as suas pernitas roliças a sarilhar, os primeiros sorrisos a brincar nas bochechas gordinhas, as suas primeiras travessuras, e elle a bamboar-se nas grandes pernas do grande papá, e depois as suas arrelias, a desfazer com as pequeninas mãos polpudas o frisado artistico do bigode. Pense em tudo isto o meu marido e diga-me, se este coração não palpita mais apressado pensando no seu bebé.

-- Menos isso, bebé isso é que não, não lhe chames bebé pelo amor de Deus. Bebé é o producto de uma educação delambida e falsa, o petit-crevé da infancia, um dandy em miniatura com opulências de vestuário e pobreza de sangue, é um entesinho infeliz, estragado, cheio de anemia, de perrice e de lambugens. O nosso filho não ha-de ser nada d'isso, havemos de fazel-o vigoroso, sadio, com umas bochechas rechonchudas e rijas. Primeiro que tudo ha-de ser um homem, antes de ser bacharel formado; não será um sabio pelo formato dos nossos doutores, mas terá uma instrucção mais prática e util, e saberá nadar, dar saltos, trepar a uma corda, montar a cavallo e supportar as fadigas...

-- Devagar... devagar, castellos no ar, meu amiguinho, tudo isso era muito bom, se fosse um rapaz, mas eu reclamo que seja uma rapariga...

Um creado de casaca e gravata branca, batendo discretamente á porta, annunciava a visita da snr.a D. Guiomar de Athayde.

E ao mesmo tempo entrava com semceremonia, movendo-se com muita vivacidade, a pequena e magrinha pessoa da snr.a D. Guiomar. Era pallida, franzina, de olhar vivo, nariz grande e afilado, queixo saliente, tinha trinta e oito annos; era orphã de mãe, havia muitos annos, filha unica e vivia só com o papá, o snr. Fabião da Rocha, digno funccionario publico, que contrahira o laço matrimonial por inclinação, e tambem um poucachinho por vaidade, com a filha segunda, sem dote, de uma familia afidalgada. Desenganada de não poder contrahir mais vantajosa alliança, decidiu-se a acceitar a mão do snr. Fabião, com annuencia da familia. Por fim era uma bocca de menos.

A snr.a D. Guiomar, que se dizia aparentada com muitas familias blasonadas do reino, por parte de sua mãe, tinha por costume fazer esforços desesperados para se collocar sempre no pleno foco do brilho da sua parentella illustre. Ainda menos feliz do que sua mãe chegara a uma idade, em que o coração se sente premido pela desesperança de um casamento, e este desengano cruel, esta decepção amarga nas illusões da sua mocidade fizera-lhe uma revolução profunda no caracter, e á similhança das tempestades, que revolvem nos lagos os limos depositados que- sobem a turbar a superficie serena, e nos mares os sargaços que vão escurentar os tons de um verde limpido nas vagas encapelladas, o desgosto de ficar solteira convulsionava-lhe todo o ser, fazendolhe fermentar á flôr do coração a espuma biliosa de um fel venenoso. Queixava-se silenciosamente, com muito azedume, de si para comsigo da crueldade da sorte, da cegueira dos homens, insensatos!- dos quaes nem um só suspeitou os thesouros de affecto e virtudes que o seu coração escondia, e este desgosto, que lhe cachoava constantemente no peito, dava-lhe ao caracter um sabor amargo, como uma agua muito refervida que faz mau chá.

Sempre que ao seu conhecimento chegava a noticia de um casamento expremia-se-lhe do coração um azedume; a sua leitura predilecta no jornal, a primeira que buscava soffregamente, era o registo dos casamentos, commentava-os satyricamente, sentia uma amargura deliciosa em se revolver n'este fel.

A actividade do seu espirito necessitava vasto campo para se exercer, mas reduzida ás esterelidades do celibato e á insignificância do singelo governo da sua pequena casa, buscava nas casas e nos negocios dos outros o alimento essencial ás exigencias do seu espirito. Visitar as suas numerosas amigas e relações era uma das suas mais constantes occupações e preoccupações. De uma actividade infatigavel, de uma assiduidade e pontualidade irreprenhensivel, causticante, no cumprimento rigoroso de todas as etiquetas e exigências de boa sociabilidade, a sua vida era um movimento continuo de visitas, de cumprimentos, de cousinhas amaveis; segura, como uma consciência forte, illibada, d'esta irreprehensibilidade, desafiava que lhe atirassem a primeira pedra e era inexoravel para as faltas dos outros.

Este theor de vida permittia-lhe estar ao corrente do viver intimo de todos, das novidades, mexericos e casos escandalosos ou simplesmente facetos. E insinuava-se por toda a parte com modos adocicados, a irritação do seu caracter azedado, como um vinho que fermenta, sabia dulcifical-a com as suavidades de uma palavra unctuosa, de uns sorrisos assucarados, que accusavam apparentemente os finos quilates de uma boa alma.

Verdade é que a um ou a outro causava estranheza a insistencia d'esta excellente senhora em se occupar com tanto afinco das fraquezas do proximo, mas os seus propositos malevolos eram repassados de tanta compuncção, penetravam-se de tanta uncção religiosa, de tão compassivo e magoado interesse pelos peccaminosos desvios da humanidade, que as verdadeiras intenções escapavam á penetração do maior numero, e d'este modo todo aquelle mexericar de alto soalheiro era levado á conta da fina tempera de uma alma de eleição, que chora sobre as fraquezas do proximo, e arde na aspiração de ura ideal levantado e no santo zelo da regeneração dos costumes pervertidos. E esta crença tanto mais se radicara, quanto eram conhecidos os seus fervorosos sentimentos religiosos.

Toda a genta sabia que a snr.a D. Guiomar tinha o seu director espiritual, a quem se confessava frequentemente, trazia sempre comsigo um rosario benzido pelo Santo Padre e tinha na alcova do seu quarto um pequeno sanctuario, herdado da mamá, com muitas imagens de santos, com pequenas figas de azeviche e moedas furadas, suspensas do pescoço em fios e fitinhas de seda; alli costumava fazer as suas orações e alli ardia perennemente uma lamparina entre jarras de flores, além das velas que se accendiam era castiçaes de prata, scintillando sobre as alvuras das toalhas engommadas e debruadas de largas rendas nos dias solemnes e n'aquelles, que eram consagrados a cada um dos santinhos da sua pequena corte celestial.

Com todos estes predicados D. Guiomar devia necessariamente ser acolhida em toda a parte com uma cordealidade sympathica. E depois era esperta, bem fallante, sabia narrar; esmaltava a bisbilhotice com ditos acerados; polvilhava-a com o dourado pó do riso epigrammatico, e tinha uma voz meliflua, muito quebrada nos accentos de uma melopêa arrastada, como quem se delicia na musica da própria palavra. Tirava um contentamento vaidoso d estes dotes, que a tornavam apreciável, requestada, festejada, sobre tudo era recebida com prazer nos interiores, em que a sua conversação picante ia fazer uma diversão ás longas horas do tedio, que se aninha em tantas casas privadas dos elementos de vida propria. Ora tinha um lugar em um camarote, ora jantava com uma amiga, outras vezes repimpava-se em um landó luxuoso, e a ditosa solteirona, em cuja indole as fascinações do luxo exerciam uma influencia irresistível, comprazia-se em roçar pelos confortos macios da vida elegante, que não podia ter, ainda que este gôso de emprestimo lhe mortificasse a vaidade invejosa.

Era insinuante, uma boa rapariga, dizia-se.

Sómente era pena a expressão de seccura e azedume, que a physionomia revelava, quando a não alegrava a animação da conversa ou do riso; então os beiços delgados, desbotados, com rugasinhas finas ao canto da bocca, comprimiam-se e davam-lhe ao rosto um aspecto de dureza hostil.

-- Apezar de vêr o trem á porta, fui entrando, como não sou de ceremonias.. . Mas não quero demorar-te, saio jâ, queria só vêr-te, saber como estás, ha quanto tempo não te vejo, já tinha saudades. ..

-- Mas vens muito a proposito, vamos á Foz, e se não te desagradam o passeio e a companhia, tens um lugar no trem.

-- Com mil vontades, d'aqui ia ainda prégar a outra freguezia, mas em primeiro lugar a minha boa amiga -- E erguia-se na ponta dos pés para beijocar pela terceira vez a sua boa amiga.

-- E como está o snr. Fabião? -- Atalhava Fernando.

-- O papá nem por isso tem passado muito bem, jantou ha dias em casa do conselheiro Silvestre, e não lhe fez bem. Era dia de annos, é costume velho, o papá é sempre convidado, e depois o conselheiro isso não larga o papá, são uns frenesis que parece se não faz a festa sem elle, não havia remedio. . . E depois o papá pelos amigos. . . isso é mesmo uma cousa por demais.

-- Mas isso não póde ser, levar a dedicação até ao ponto de sacrificar a saude... e por causa de um jantar! O snr. Fabião já não está novo, não póde com esses sacrificios.. .

-- Isso tenho eu dito ao papá, mas então.. .

os amigos não o deixam, jantar aqui, jantar acolá. Por fim é um habito e já não passa sem aquillo, diz que é a sua maior distracção, estarrecia se isto lhe faltava; tem aquelle genio e depois onde está melhor é na convivencia dos amigos.

Effectivamente era na companhia dos seus numerosos amigos que o digno funccionario sentia o mais completo bem-estar da sua existencia, quando jantava com elles. Era este o seu fraco, ou antes era n'este campo que se accentuava mais energicamente a parte forte da sua individualidade, a sua superioridade typica e caracteristica era o estomago, e o seu fraco verdadeiramente era a desproporção entre as exigências descommunaes do ventre pantagruelico e os recursos do seu magro orçamento; o estomago de Fabião, isto é, todo o seu ser, todas as suas sensações, toda a sua vitalidade resumia-se, concentrava-se n'esta viscera poderosa, aspirava aos bons bocados, aos piteos saborosos, aos pratos succulentos, como qualquer outra pessoa póde aspirar ás honras, á gloria ou ao amor. Elle sentia estremecimentos abdominaes, requintes de deleite, voluptuosidades refinadas só de aspirar os aromas de um prato predilecto, adubado com um molho fino; toda a sua carne palpitava contente, como a um rapaz ferve nas veias o sangue dos vinte annos ao contacto perfumado de uma mulher amada.

Nao era um homem, era um estomago. Um bom jantar com acepipes exquisitos, que lhe acirrassem todos os pruridos do paladar, vaporando perfumes estonteadores entre o colorido das flores e as scintillações dos crystaes, regado de vinhos deliciados, era para elle um poema, um hymno, um cantico, que subia do fundo das suas entranhas agradecidas até á sua bocca gulosa em phrases expansivas e sorrisos aduladores.

O bom Fabião conseguiu insinuar-se na estima de muitas familias, desempenhando o papel de -- amigo da casa -- a sua presença era apetecida sobre tudo pelas senhoras idosas, tinha um bom humor que inspirava alegria, na sua presença ninguém podia estar triste. O semblante aberto, radioso, como umas paschoas, era de uma tranquillidade satisfeita, com um sorriso çhronico, cheio de bonhomia, de complacências approvadoras para todas as opiniões. Ninguem como elle tinha mais a proposito uma anedocta, a historia de um caso succedido, em que elle era o primeiro a dar o exemplo do riso; ninguem como elle estava mais bem informado da ultima novidade e das datas dos anniversarios natalicios. E sabia dar uma descripção correcta de uma toilette complicada, informar quem guiaria este ou aquelle andor nas procissões, esclarecia com incontestada authoridade ácerca dos cantores e das operas cantadas em todas as epochas theatraes e era sempre o primeiro a dar relação dos casamentos projectados.

Rematava-se sempre o seu elogio -- É uma pessoa muito prestável. Sobretudo era apreciabilissimo para desempenhar pequeninas commissões femininas; em summa, um regalo só de ver a sua pequena pessoa obesa expandir-se, do mesmo modo que uma papoula desabrocha as cores rubras e flamantes aos raios do sol, e purpurear-se como uma lagosta cosida, em tons luzentes e jubilosos, sob a acção dilatante das iguarias condimentadas e dos vinhos generosos.

Entretanto Margarida tinha subido ao seu quarto e pondo o chapéu dava a ultima demão á toilette. D. Guiomar passarinhava em volta d'ella.

-- Já visitaste a Adelina?

-- Que Adelina?

-- A Adelina do Litiz de Albuquerque.

-- Ah!, ainda não... Se ella chegou ainda ha tão poucos dias... E tu já foste?

-- Hoje mesmo. Eu cá n'estas cousas sou pontualissima, como sabes, de mim ninguem póde queixar-se. Não posso eu dizer o mesmo de muita gente, ha pessoas então que fazem mesmo ferro. Imagina as Carvalhaes, que me devem uma visita ha um rôr de tempo, faz hoje exactamente tres mezes. Assim nem sei se ainda somos visita. Pois estas cousas são sérias, ou se anda na sociedade ou não...

-- Mas ás vezes ha um motivo justificado, uma doença. .. um desgosto. ..

-- Qual!.. . Pois é exactamente d'isso que eu me queixo, aquellas presumidas andam a sergentear por toda a parte, e depois tudo são desculpas, palavrinhas doces, parece mesmo uma cassoada, ha gente que não sei como tem cara para tanto, fazem mesmo raiva. E não ha ninguém mais passa-culpas do que eu, mas não posso ver desmazelos, cabeças no ar. .. E então estas Carvalhaes!. .. Que trapalhice!... Sempre mettidas nas lojas e nas modistas e sempre mal vestidas, uma farrapada... E depois que modos tão despegados!... nem sei o que me parecem... Dás licença... esta haste prende-se nos cabellos... Assim agora está bem. É mesmo chic este chapéu, lindo, lindo, como tudo o' que usa esta menina, se todas fossem assim!... -- E mais uma vez a snr.a D. Guiomar escalava o porte elegante de Margarida para desafogar a sua ternura na sonoridade cantante de um beijo cordeal.

-- E que telha! Que desarranjo! Como aquillo nunca vi.. . Imagina que a ultima vez que as visitei surprehendi a mais pequena a fugir pelas escadas com as meias esburacadas e os cotovelos rôtos! Tenho mesmo pena de gente assim... O véu ficava melhor mais acima, eu prégo. . . assim.

Mas é verdade, estavamos a fallar da Albuquerque, está mais nutrida, lembras-te quando veio ao Porto pouco antes de casar? Galantinha, mas magrita, agora está melhor assim. Fallou-me muito de ti, diz que foram muito amigas no collegio.

-- Amigas!... Precisamente amigas, não. Da.

vamo-nos bem, mas os nossos genios não se ligavam muito. Eu ás vezes no recreio até fugia d'ella, como era muito forte, viva, tinha umas travessuras!. . .Eu não gostava de brincar assim...

-- E é verdade. Olha que parece mesmo uma estouvada, basta ver aquelles modos, parece-me que o juizo não lhe ha-de pesar muito...

-- Não, eu não quero dizer que ella seja isso.

Era alegre, traquinas, gostava de brincar, muito expansiva. Podéra, se tinha boa saude, mas boa rapariga.

-- Também não digo que não, isto sahiu-me da bocca assim como uma cousa vaga, que já ouvi dizer não sei a quem. .. Mas fallamos muito de ti--e já se vê, dissemos muito mal--da tua vida feliz, da tua casa elegante, de teu marido que te adora. E Adelina interessava-se muito por ti, parece muito tua amiga, e quem não o ha-de ser d'esta menina? Eu por fim disse-lhe--Se aquella não é feliz, rica como é. . .

-- Feliz sim, mas não pela riqueza, a mediania não exclue a felicidade.

-- Mas has-de concordar, quando se é rico parece que até a felicidade acode mais depressa... ?

Iam descendo a escada. Magarida calçando a luva tinha-se adiantado para passar pelo quarto de Fernando, D. Guiomar ura pouco atraz, affastada para não pisar a cauda, remirava-a toda, da cabeça ás pontas dos pés, com um olhar duro, em que parecia transparecer uma perfidia invejosa e malquerente.

VIII Margarida adorava seu marido, este affecto era a sua alegria, a sua felicidade, a mais querida preoccupação na paz da sua vida limpida.

Os dous eram filhos unicos, herdeiros de uma grande fortuna. Os pais, socios da mesma firma commercial, uma das casas mais consideradas da praça do Porto, tinham affagado desde muito longe o projecto d'este casamento. Além de lisongear a intima amisade que sempre os unira, tinha para elles a grande seducção de verem realisado o mais querido sonho da sua vida, transmittindo-se em globo aquelles cabedaes, grandemente accumulados nos ultimos annos com transacções em larga escala e bem succedidas, que os fizeram crescer e medrar, sempre associados, como a propria amisade que os trouxera unidos.

D'estemodo esta alliança apparecia-lhes, a um tempo, como um fito digno de um trabalho honrado, e como uma supervivencia na pessoa dos filhos d'aquella inquebrantavel amisade que se robustecia na sua longa diuturnidade.

Subordinados a este pensamento trabalharam para o realisar, mas era preciso que as cousas se passassem de modo, que os filhos abraçassem espontaneamente as ideias paternaes. Este ponto era essencial e sobretudo Leonardo da Cunha, que bebia os ares pela filha, era intransigente, a vontade da filha era também a sua, e especialmente em caso de tanta ponderação sentia-se incapaz de a contrariar.

O thema do casamento por amor debatia-se por vezes na roda dos Cresos bancarios e Leonardo da Cunha fazia escandalo no grupo dos nababos de carteira com as suas ideias excentricas.

-- Homem! deixemo-nos de modernices--regougava com a exaltação de uma convicção inabalavel o snr. Joaquim de Araujo. Eu cá vou indo com os calças de couro que leem pela cartilha velha; uma filha quer-se obediente, redeatesa, o poder paternal primeiro que tudo, esse é o nervo das familias e por conseguinte dos estados.

Quando não, anda tudo á matroca. Menina educada no temor de Deus e da religião recebe o marido que lhe dão; desengane-se, snr. Leonardo, não ha nada como um casamento á portugueza,

e olhe que havia mais moralidade, agora é o desaforo que se está vendo, mesmo uma choldra. ..

--Mas ponha os olhos em tantos casos infelizes. . . Que se aconselhe, que se encaminhe a escolha dos filhos, lá isso não digo que não, ás vezes, com a inexperiencia da idade, dão com as ventas em um sedeiro. E tambem quando a asneira é muito calva que a gente ponha os pés á parede, sim senhor, tambem lhe digo que sim; mas agora mais do que isso, oh, snr. Araújo, isso é até um caso de consciência.

-- Historias! patranhas de novelleiros, modos viventes para armar ao pintasilgo, para mim veem de carrinho. Até me admira que o snr. Leonardo se deixe levar pela beiça com essas cantigas, o que se quer é juizo no miolo, é com essas e outras que as minhocas lhes entram na cabeça. Em se lhes dando por marido um homem de bem que mais querem? Tudo o mais é farelorio, romancices de uns valdevinos de má morte! Eu cá, filha que me andasse com a cabeça á roda a choramigar amoricos com pintalegretes, que só miram ao dote, parece-me que a desancava, desancava-a, snr. Leonardo, e ou o juizo lhe entrava na boia ou convento te valha.

Mas Leonardo da Cunha era de pedra e cal, impor marido, forçar-lhe o coração, isso nem para a casar com o rei, e demais -- concluia triumphantemente--a sua Margarida tinha juizo para escolher, educar sensatamente para formar bem o coração, levar a luz ao entendimento para verem claro e saberem o que fazem, esse é que é o segredo.

--E tudo o que não fôr isto, snr. Araujo, póde limpar as mãos á parede, que é uma obra aceada e sobre o caso temos conversado.

Foi a mãe de Margarida que assumiu a tarefa de ir lançando no espirito da filha vagos vislumbres do brilhante projecto de familia, como uma semente que se lança á terra e rodeada de cuidados germina, brota, braceja e fructeia. Repetia-se o elogio de Fernando, faziam-se confrontos vantajosos para elle, alludia-se ás alegrias de familia, ás commoções jubilosas dos dous velhos que levariam do mundo esta consolação. E foi assim que esta ideia, cahindo no cerebro de Margarida, produziu uma perturbação na sua vida calma e descuidosa, como um acido que se dissolve produz uma effervescencia.

Desde então a filha de Leonardo entrou de reparar em Fernando de um modo differente, via-o sob um aspecto novo; nunca pensara em casar e esta ideia apparecia-lhe de repente no céu azul dos seus dezasseis annos, como o esplendor de uma aurora triumphal na transparecencia de um horisonte limpido, e parecia-lhe que via mais claro na vida, que lhe tinham tirado um veu dos olhos, que havia mais luz e mais colorido em volta d'ella e que essa claridade se projectava mais intensa sobre Fernando. Não sabia mesmo muito bem o que era o casamento e contemplava-lhe, toda alvoraçada, perturbada de curiosidades, as perspectivas seductoras, como que esfumadas nos veus de uma nevoa translúcida.

Fernando apparecia-lhe agora, como se a estatura se tivesse engrandecido nos destaques de um relevo; não estava costumada a vel-o sob este aspecto desusado e impressionador, e sosinha no seu quarto, com um olhar intuspectivo, punha-se a observal-o com muita attenção em todos os aspectos da sua vida. Tirava dos albuns alguns retratos d,elle, photographados em differentes epochas, examinava-os com grandes contensões de espirito, comparava-os, cravava a sua vista curioso n'aquelle olhar de uma viveza varonil, como se quizera devassar-lhe a alma, perscrutar-lhe o interior, sorria e depois sentia-se estremecer na vaga sensação de uma doçura infinita.

E avocava o passado, transportava-se em pensamento á sua infancia; perpassavam no seu espirito com admiravel nitidez, como quadros qtie se succedem em um haleidoscopo, as scenas d'esse tempo. Via o pequeno Fernando, vivo, agil, nervoso, com um pescoço branco como uma sopa de leite, as maçãs do rosto coradas como um pecego, e o cabello louro annellado; recordava-se das travessuras d'aquelle vivo diabrete, terrivel para os companheiros e bom para ella, defendendo-a sempre com um cavalheirismo quixotesco em miniatura. Uma vez com um movimento brusco e desastrado quebrara um braço á sua boneca predilecta, a grande, que ella vestia com toilettes de um gosto muito aprimorado, a sua amiguinha, com quem conversava muito, a quem confiava todos os segredinhos do seu coração pequenino, em uma doce intimidade, aquella mesmo que era linda, linda, lourinha, rosada, com uns oihos vidrados de uma claridade muito azul, grandes, dilatados como se estivessem a comprehender o que se lhe dizia. Só lhe faltava fallar. E a pobresinha ficara nas mãos de Fernando com o braço a dependuro, desengonçado, inerte, e ella sentiu uma grande dor, fez-se branca, despediu um grito de terror, como se a sua boneca fosse cousa viva. Fernando ficara pallido, aterrado, deixou cahir a boneca que se estatelou no meio do chão, desmanchada, como uma pessoa morta ou desmaiada; ella com uma affiicção ajoelhou diante da sua pequenina amiga, levantou-a com carinho, conchegou-a ao seio, saluçava. Fernando, cheio de remorsos, pedia-lhe perdão muito desolado, abraçava-a.

Lembrava-se ainda da imagem de Fernando em uma das circumstancias mais solemnes da sua infancia, a qual se lhe gravara no espirito com uma impressão indelevel.

O altar resplendia, elevava-se um pequeno throno de lumes e flores, os lumes tremeluziam com uma cor amarellada, vaporando fumosinhos que punham na sala uma nevoa muito diaphana, ella e muitas das companheiras de collegio, alvissimas, como grandes pombas brancas, formavam circulo, esperando cheias de anciedade e compuncção religiosa; presos da cabeça pendiam, cahindo pelos hombros, veus de tarlatana, como se tivessem nas costas a sensação de umas azas brancas.

A sala regorgitava de espectadores, havia uma atmosphera espessa, quente, respirava-se um ar appressivo, impregnado do aroma das flores e do cheiro da cera, sentia-se um romorejar de sedas, de leques que se agitam, de vozes que ciciam baixinho; as professoras iam e vinham, com modos discretos e passos leves, subtis, dispondo tudo para a cerimonia; a alvura do linho em volta do pescoço contrastava com o negrume dos habitos monachaes e dava-lhes um aspecto seraphico.

Sentia-se sobresaltada, perturbada de vagos receios; o coração latejava-lhe com força, e toda, nervosa umas vezes o sangue subia-lhe ao rosto, afogueava-a; outras vezes refluia-lhe ao coração e ficava com um frio nas faces, os beiços brancos, um suorsinho na palma das mãos. Mas sentia-se mais perto de Deus, fluctuavam na sua imaginação agitada visões, nimbos gloriosos de anginhos, banhados na limpidez de um azul luminoso, e tinha um desejo, que a estimulava muito urgentemente, de se desprender da terra e absorver-se radiosa, feliz, n'aquella fluctuação etherea.

O seu olhar cruzava-se com o olhar sorridente e bom de sua mãe e com o de Fernando, que a fitava com uma attenção avida, e a sua perturbação crescia de ponto.

Mas a sala agitou-se com mais rumor, fez-se logo um silencio solemne, e o peito arfou-lhe com uma palpitação mais aguda, dolorida. Junto do altar surgiu um padre, aprumou a estatura pequena, roliça; alteou o rosto branco e gordinho; o azulado de uma barba muito escanhoada accentuava a linha correcta de um oval beatífico, muito fradesco; circumvagou um olhar dominador, levantou o braço com um gesto theatral, cheio de importância, mostrando uma mão curta, rechonchuda, crivada de covinhas nas articulações, e no meio do silencio, em que as respirações se reprimiam, cortado apenas pelo crepitar modor rento das luzes, reboou uma voz cheia de uma sonoridade emphatica e ôcca. Margarida sentiu um calafrio nas veias e um zumbido nos ouvidos.

O orador começava dispondo primeiramente o animo do auditorio para as grandes commoções finaes:

«Esta solemnidade imponentissima, minhas meninas, estas galas, o esplendor d'estas luzes, a fragrancia d'estas flores, qual primavera olorosa, esta ala de brancos cherubins que vejo ás minhas plantas, arrancam-me da minha alma enternecida um cantico de recordações saudosas da infância, como um cantico divino ao som de todas as harpas angelicas; d'essa idade innocente, oh!

minhas meninas, engrinaldada das mais mimosas e fragrantissimas flores, a qual é como um oasis no deserto, essa idade immaculada como o candido lyrio do valle, essa idade finalmente de que hoje só nos resta uma remeniscencia dulcíssima, que se transforma n'aquellas preciosissimas e tenrissimas perolas, que se chamam as lagrimas da saudade».

E n'este ponto a voz do orador cabia no tremor de uma commoçao e elle limpava com o reverso da mão uma lagrima furtiva.

Mas logo proseguia na sua linguagem lyrica, exhortando aquellas crianças prostradas e abatidas a arrependerem-se, a renunciarem ao peccado, a devotarem-se a Deus, a expurgarem da alma qualquer ideia maligna e mundana. A sua voz crescia como uma- maré, tinha accentos retumbantes, e as palavras--peccado, maldição, colera divina, castigos de Deus, penas infernaes faiscavam como relâmpagos, cabiam como anathemas iracundos sobre aquellas cabecinhas atordoadas.

Depois reforçando a corda vocal com um tom cavo e pathetico fulminava esta apostropbe:

«E ai d'aquella de entre vós, a desgraçada!

se alguma ahi commette porventura o nefando crime de esconder algum pensamento ruim, de occultar algum peccado, de abrigar no coração, como uma vibora venenosa, alguma impureza nao confessada. Ai d'ella! essa seria a ovelha leprosa entre o rebanho immaculado, essa seria, como uma herva ruim, de que as outras deveriam fugir! E se essa tal, de coração impuro, ahi está, que se apresente, que se affaste das outras, que confesse humilde e contricta o seu hediondo peccado, que se roje aos pés do Senhor, que desarme, em quanto é tempo, a colera celeste. E ai d'aquella que n'este momento augusto for indigna de tocar com os seus lábios maculados o pão eucharistico, este pão dos anjos, este alimento delicioso, precioso sangue do divino Esposo. Ai d'quella que n'este momento solemnissimo não derrama sinceras lagrimas de arrependimento pelas offensas que fez a Deus, porque sobre ella recahirá todo o rigor das penas eternas!» E ás palavras do padre respondia um soluçar convulso e aflictivo e aquellas crianças, debilitadas pelo jejum, tremiam aterradas, sentindo a voz do cathechisador echoar-lhe no cerebro como o ribombo de um trovão.

Então o orador, contente da sua obra, apontava ao auditorio edificado com gesto triumphante, e um sorriso de victoria nos lábios, o quadro desolador que se lhe desenrolava aos pés.

Depois um pequeno orgão soluçou uns accordes plangentes, uns threnos mysticos; um coro de vozes frescas, argentinas soava; espalhou-se um cheiro a incenso condensando mais a atmosphera pezada e viciada; respirava-se um ambiente incandescente, irritante que aquecia o cerebro.

Margarida tinha nos nervos uma grande excitação, mirava, penetrada de extasi, as espiraes de incenso que subiam, o céu emtreabria-se-lhe, sentia-se leve, imponderável. De uma janella, pela abertura de uma cortina, coava-se um raio dourado de sol, cahia reluzente sobre os castiçaes de prata, no altar, e esta radiação apparecia-lhe como um effluvio do céu.

Lá fora o firmamento arqueava-se na serenidade de um dia cheio de sol, os passaros saltitavam, chilreando alegremente nas grandes camelias que se afogavam em bosque no jardim, a agua cahia de uma bica no tanque com um sussurro canoro; abriu-se uma janella e uma columna de ar fresco alliviou as respirações oppressas.

A ceremonia tinha sido demorada e quando foram almoçar as crianças estavam prostradas de commoção, fadiga e debilidade; as mais fracas, as nervosas e anémicas tinham uma pallidez muito morbida nas faces, e, com o olhar amortecido, pisado, faziam lembrar flores murchas; em algumas mais fortes, sanguíneas, as faces ruborisavam-se febrilmente; as feições inchadas, os olhos accesos davam-lhes um aspecto estranho, que denunciava um desequilíbrio perturbador no organismo. E Fernando sorria-lhe com interesse, dizendo-lhe baixinho -- Coitadinha! tanto tempo sem almoçar!. . .

Em outra mesa, o orador almoçava abundantemente e conversava com outros padres, intercalando a deglutição pausada com gestos e phrases importantes; sentava-se-lhe ao lado uma creança loura, magrinha e lympathica, o padre Campos tentou acaricial-a, mas a pequenita irrompeu em um choro nervoso. Tinha medo d aquelle homem de sotaina preta que ralhara tanto com a irmãsinha.

IX Estas impressões do collegio deslisavam-lhe limpidas e fugazes aos olhos d'alma, recordava-se d'aquelle tempo em que, penetrada d'aquelle ambiente de religiosidade, respirado a longos haustos, como um fluido subtilissimo que se inocula no organismo, saturada de mystissimo, como um perfume acre e penetrante que inebria, aspirava á vida seraphica de uma immobilidade contemplativa, e fazia o confronto d aquella phase da sua existencia com o momento psychologico, em que a sua alma se abria contente, doidejante, aos aspectos serenos da vida de familia, affectuosa e fecunda.

Em outro tempo a paixão religiosa dominava-a com uma fascinação irresistivel, atrophia va-lhe todas as forças da sua alma affectuosa e dedicada, suffocava-lhe todas a energias do caracter amoravel, absorvia lhe a melhor seiva da sua mocidade em proveito de inanes e estereis arroubos.

As pompas religiosas extasiavam na, não havia para ella espectaculo mais fascinante do que a perspectiva de uma igreja a escorrer de galas, de luzes e de psalmodias. Como se sentia bem na capella do collegio, em dia de festa, sob a torrente das notas compungentes do orgão, envolvendo-se voluptuosamente n'aquellas nevoas de incenso de um aroma adocicado, que o thuribulo vaporava!

Comprazia-se com um deleite pungente em tudo o que havia de triste e doloroso na religião, e quando ouvia missa contemplava com muita devoção as estampas do seu livro, e olhava, muito compungida, o doce Jesus, sereno na sua resignação dorida, tropeçando sob o peso do madeiro, ou livido pendendo da cruz a cabeça gotejante e exânime. No confissionario experimentava uma sensação deliciante em ciciar peccadinhos, com o rosto collado ao crivo, revolvendo a memoria e a consciencia melindrosa, e depois toda dulcificada, estremecendo de goso ineffavel sob a absolvição, ia ajoelhar com muito recolhimento nos degraus do altar, inclinando a cabeça, com o corpo arqueado, cerrando as palpebras com um extasi mystico, unindo as mãos ao coração devotamente, com ademanes muito freiraticos, parecendo-lhe que desciam sobre ella todos os effluvios da graça celestial.

As superioras tinham organisado dentro do collegio como que uma ordem religiosa, em que se admittiam as mais dignas, havia diversos graus em escala hierarchica, consoante as provas de fervor e obediencia religiosa; no ultimo grau faziam-se mis votos, que então não entendia, mas como ella aspirava fervidamente áquella recompensa suprema! Era preciso paralysar toda a acção de uma vontade própria, abandonar-se, instrumento docil e inerte, com toda a passibidade de uma cega submissão, mas em compensação que deleitosa serenidade celestial! E apetecia ardentemente vestir aquelle habito monachal, e, com uma beatitude angelica no rosto, o olhar humilde e baixo, revestir-se imitativamente d'aquella apparencia funebre, que era para ella um modelo e um ideal.

Sentia dentro de si opulencias de affectos expansivos, exuberancias de uns impulsos bons, como a crystalinidade de um manancial que jorra abundante, sonhava empregar toda esta vitalidade trasbordante em uma obra de sacrifício e amor, e não via nas perspectivas da sua vida incipiente destino mais tentador do que ser irmã de caridade ou hospitaleira, consagrar-se com heroica abnegação á consolação dos afflictos, enxugar as lagrimas da humanidade enferma, acercar-se dos doentes prostrados nos seus leitos de dôr, minorar-lhes os soffrimentos, salvar-lhes a vida, confortar-lhes a alma.

De repente tiraram-na do collegio e disseram-lhe que a sua educação se completaria em casa. Não comprehendia, onde poderia ella ser melhor educada? Um collegio tão bom, que até já nem se lhe dava de ir á casa! Era inacreditavel!... E teve saudades das companheiras, da vida em communidade, dos canticos em côro, das bondades das superioras que a tratavam com tanto carinho e lhe diziam tantas vezes com uma voz doce, que a penetrava deliciosamente -- Continue assim, minha filha, continue, e o céu a recompensará, é uma eleita do Senhor.

Apresentaram-lhe miss Lyndsey, a mestra a quem ficava confiada a sua educação. Apertouse-lhe o coração, era tão feia! Comparava esta ingleza vigorosa, de cores sadias, com as santinhas com quem até alli tinha vivido, e não comprehendia como se preferia esta ingleza escanifrada, com as faces angulosas, as mãos osseas como um porta-machado, usando botas chatas como sandalias, e trajos esquipaticos; invariavelmente no inverno waterproof escorrido funebremente até aos pés, chapéu de feltro avantajado, como uma barretina, e no verão uma meia tunica branca, destacando sobre vestido de alpaca preta, lustrosa de gomma, só debruada com um folhinho, apertada na cinta com uma fita encarnada, e chapéu de palha grossa, desabado como um beiral de telhado.

Mas pouco a pouco a repugnancia decrescia, a imagem do collegio apagava-se gradualmente, ia-lhe ficando recuada na indecisão de um horisonte longinquo, e por fim habituou-se facilmente ao seu novo viver. Miss Lyndsey era boa, affectuosa, muito intelligente e instruida; affeiçoo-use-lhe. Que importava o feitio?

E ella fallava-lhe de cousas desconhecidas, qile pareciam vibrar-lhe no coração uma corda até então inerte, despertavam se no intimo da sua alma ideias novas e adormecidas, acordavam no fundo do coração emoções ignoradas, como se uma parte do seu ser estivera prostrada em uma lethargia. E sentia-se surgir á vida, renascer, entrava uma luz nova no seu espirito, começava a entender de outro modo a missão da mulher, e sentia desenhar-se, pouco a pouco, um outro ideal, destacar-se e crear forma, como um objecto de que nos approximamos paulatinamente e vai sahindo de uma obscuridade.

O seu coração começava a abrir-se palpitante aos affectos e alegrias da vida de familia, tinha noções claras da missão sympathica e dos deveres da mulher na serenidade affectuosa do lar domestico, comprehendia que a presença da mulher no seio da família era tão nobre e consentânea á religião, como nos hospitaes, e seguramente muito mais necessária e benefica. E o casamento, que primeiro lhe apparecera como o estudo de uma these no campo especulativo, apresentava-se-lhe agora como uma hypothese realisavel para ella. Via-se já, no centro da sua casinha, alegre e tranquilla, conciliando harmonicamente os deveres religiosos com os de esposa e de mãe, espargindo a bondade, o conforto e a felicidade sobre tudo o que lhe tocava de perto, como um corpo que absorve o calor do sol e depois o irradia.

Fernando para ella fora sempre um amigo, nunca se lembrara de o encarar como marido, mas agora ficava toda corada, alvoroçada, diante d elle, e sentia que a alma lhe recebia esta ideia, como as trevas recebem a luz! Ter um marido, ser mulher de Fernando!

Mas começava a reparar que um marido não era o mesmo que um homem qualquer, já não podia olhar para Fernando com os mesmos olhos, com a quietação de um espirito despreoccupado, elle já não era simplesmente o seu companheiro de infancia e, estremecendo, sentia um deslumbramento. Cerrava os olhos, concentrava-se toda com os seus pensamentos e tentava levar a serenidade á sua alma deliciosamente perturbada.

Transportada nos seus devaneios horisontavam-se-lhe perspectivas attrahentes, ideava quadros suaves de felicidade domestica, e sentia-se mover com uma alegria leve no interior da sua casinha resplandecente de bom gosto e aceio, um primor de conforto, de ordem e arranjo, presidindo ao governo domestico, como uma fada no meio do seu palacio encantado, esperando com um anceio jubiloso o marido que lhe agradecia a existencia feliz que ella lhe creava. Depois, mais tarde, vinha um novo raio de sol que alegrava mais a habitação conjugal; um vagido, em seguida um balbuciamento, um sorriso adoravel, um rosto pequenino, afofado como um passarinho em ninho macio e branco, que exhala o cheiro bom do linho fino lavado, davam á casa um aspecto novo de festa.

Era mãe, rasgavam-se outros horisontes, no coração abria-se uma veia opulenta de novos affectos e sentia-se tepidamente conchegada na sala confortavel, ao flamejar rubro do fogão, sob os reflexos de uma luz doce, esbatida pelo abat-jour, como sob o agasalho de um manto acalentador, com o pequenino no collo, e stendendo os braços irrequietos ao papá refestelado na poltrona, muito regalado n'aquelle amollecimento quente e feliz; ou no verão na sua quinta, vendo medrar o filho na plenitude do ar sadio, batido do largo sol, á sombra das grandes arvores opulentas de seiva, e dos pinheiros a exhalar emanações resinosas e vivificantes.

Era alli, no seio da familia, que se lhe abria um campo muito mais fecundo para exercer a sua actividade affectuosa, um espaço ainda mais vivificador aos seus sonhos de sacrifício e dedicação. Fazer do lar domestico um ninho macio, onde o marido, ao seu bafo acalentador, encontrasse o conforto, a alegria, o bem-estar, a felicidade, as horas fáceis e tranquillas do repouso reparador, depois do labor externo, os desafogos salutares que aliviam a alma dos desgostos da vida e retemperam o caracter; e depois consagrar-se toda ao seu filhinho, descer até ás claridades suaves e immaculadas da sua alma innocente, sem uma sombra, como a transparencia azulada do ar, inebriar-se n'aquella atmosphera de pureza; fundir a sua alma com a d'elle; aprender, fazer-se séria com os livros e creança, ao mesmo tempo, para descer até elle, instruil-o, educal-o, fazer d'elle um luctador forte no corpo, energico na alma para os combates da vida, inocular-lhe noções do bom e do justo, não era porventura uma missão muito mais nobre, meritória e fecunda?

E com este devanear ia-se familiarisando com a ideia de esposar Fernando.

Em casa do socio de Leonardo da Cunha Fernando era chamado com solemnidade ao aposento paterno, e Antonio de Azevedo dizia-lhe refazendo a voz gravemente:

«Estou velho, Fernando, é forçoso ir pensando na grande viagem; quando houver de ser, vou-me com a paz na consciencia, mas antes de ir dar contas a Deus dos meus actos, quizera ver o teu futuro bem definido. Tens sido bom filho, Fernando, estou contente comtigo, ás vezes um bocadito no ar, mas no fundo bom rapaz, e graças á educação que recebeste e com o tempo vens a assentar de todo. No ultimo quartel da vida, antes de abalar, queria ver realisado o que é hoje o meu mais querido pensamento, é o teu casamento com a filha do meu socio, se vos vejo casados levaria esta alegria para a cova. É cá uma lembrança nossa, minha e do Cunha, consolava-nos a ideia de que a nossa velha amizade continuasse nos filhos e depois esta fortuna, adquirida com tanto trabalho, não se esfarrapava, vocês ficavam com um casão!. . De Margarida escuso de te dizer nada, sabes o que aquillo é, um anjo!. . Mas não pertendo que me dês já uma decisão, nem eu nem o Cunha queremos violentar a vossa vontade, pensa como devem ser pensados todos os actos sérios da vida.

Somente te peço que leves em conta a grande alegria que me darias em recompensa dos meus constantes cuidados pela tua felicidade.» O pai de Fernando era um d'aquelles portuguezes de bom quilate, em cujos moldes se vasaram aquelles caracteres que vão sendo hoje legendarios. Honesto, bom catholico, temente a Deus, era respeitado no mundo commercial e em geral estimado na cidade.

As irmandades e confrarias reclamavam-no, disputavam-no entre si; quasi todas registavam nas suas actas, com palavras farfalhadamente encomiásticas, offertas de paramentos faustosos ou donativos quantiosos.

Ouvia missa com um grande livro espalmado nas mãos e parte da sua vida trabalhada dispendia-se pelas sachristias entre as pompas das cerimonias religiosas, enfardelado nos hábitos das ordens terceiras e nas opas das confrarias.

Á politica era avesso e resistira sempre ás instancias dos partidos militantes que o sollicitavam; repugnavam á sua indole pacata as exaltações odientas dos corrilhos, e depois concluia sempre -- tão bons são uns como outros.

Nem mesmo o seu amigo Joaquim de Araujo lograra quebrar a sua abstenção politica.

«Porque se os homens -- tregeitava largamente o negociante--se os homens importantes se não mettem n'estas cousas, são os pelintras que hão-de dar as cartas? Ainda ha pouco me dizia o governador civil, estavamos a conversar com alguns amigos, poucos, só os mais importantess. . . Não conhece o novo governador civil?. . Hei-de apresentai o, boa pessoa, somos amigos, em chegando ao governo civil é entrada franca no gabinete, esteja quem estiver. Elle também sabe que em‘firmeza de caracter e dedicação ao governo nem que andasse com um prego acceso, e o ministro disse-lhe ao ouvido duas palavrinhas.. . que eu e o ministro, o meu amigo sabe-o muito bem, somos unha e carne. Ainda ha dias tive uma carta. . . E não é por me gabar, mas elles também sabem que sou homem para as occasiões e quando metto a cabeça. . .

E assim ia rolando n'esta ladeira de palavras, porque o snr. Araujo, quando fallava, e sobretudo em politica, era uma catadupa palavrosa, como uma fonte que expelle um tapume compressor, rebentando em borbotões impetuosos.

Mas todas as torrentuosas investidas do influente ministerial eram impotentes para quebrar a indifferença politica do pai de Fernando, e comtudo o digno capitalista não levou a sua isenção até ao ponto de recusar a graça de duas commendas, nem tão pouco se recusou, depois do caso das commendas, e era perspectiva de um titulo, a concorrer para o triurapho dos candidatos ministeriaes com o poderoso auxilio da sua bolsa.

-- Para isso, sim senhor, pode contar commigo, diz muito bem snr. Araujo, é preciso dar uma lição a essa sucia} ordem e credito primeiro que tudo, tem razão, é preciso dar força a um governo serio.

-- E depois eu que os conheço, snr. Azevedo--confidenciava o negociante com olhar finorio e sorriso espertalhão--aquillo não é gente capaz de fazer governo, sabem lá fazer politica, uma lastima! biem é gente para servir os amigos, eu que o diga, a mim fizeram elles uma!. . Ora veja o meu amigo, pelos domingos se tiram os dias santos. Não e por me gabar, mas já fiz grandes serviços áquella gente, já fui dos seus mais acérrimos, mas preguei-lha mesmo na menina do olho. . . Não que elles cuidavam que era só dar o lombo para treparem !. . Tinha escripto ao Eduardo Torres, uma pertensãosita. .. uma bagateíla. Pois, senhor, nem me respondeu! é verdade. . . uma corja... E eu zás, passem lá muito bem. . . Pois ainda se moveu meio mundo, mas qual!. . eu fiche, antes quebrar que torcer, eu cá sou assim, como ura penedo. . . Quem uma vez m a pregou, espere-lhe pelo troco. E mostreilhes o que podia e valia; depois torceram a orelha.

X Antonio de Azevedo idolatrava o filho, mas sabia disfarçar as fraquezas do affecto faternal sob uma apparenciade grandes severidades e costumara-o, de pequenino, a uma submissão respeitosa. Notara-lhe por vezes umas vehemencias de temperamento, que mais o convenciam da necessidade de uma educação rispida, e meneava a cabeça com ares tristes e apprehensivos, meditando n'aquella vivacidade de caracter.

O director do collegio informava que o Fernandinho tinha tanta agudeza de entendimento como turbulencia, mas no fundo bom mocinho; tão depressa se exaltava, como era de facil arrependimento. Por isso Antonio de Azevedo deliberou tirar o filho do collegio, desviando-o do contagio de maus exemplos e educal-o em casa. Desde então a vida de Fernando começou a ser pautada cora uma regularidade monotona, que fazia um contraste brusco cora a animação turbulenta do collegio. O dia repartia-se invariavelmente pelas lições, pelo estudo, pelas comidas e pelo recreio de uma insipidez pacatinha; de vez em quando sahia com a mamá, ia ás lojas, fazia visitas, rezava na igreja em dia de -- Lausperenne -- ouvia o borborinho da vida em torno de si, tinha saudades das expansões travessas no collegio, e sentia dentro de si uma desconsolação, o vacuo, o que quer que fosse de falho.

Ás horas do estudo não podia conciliar a attenção com os livros, as letras bailavam-lhe diante dos olhos, bocejava, distrahia-se com o voo de uma mosca, interessava-se pela sua vagabundagem áerea, seguindo lhe muito entretido os zigzags phantasticos, ou absorvia-se muito concentrado na operação de aparar um lapis com muito primor. Á noute, á hora do chá com a familia, era interrogado sobre a lição, ouvia palavras graves, que lhe cahiam pesadamente na cabeça, como uma bala no soalho, conselhos piedosos, sentenças substanciosas; depois de rezar ia deitar-se; a luz bruxuleante da lamparina espalhava no quarto uma penumbra, projectando sombras vagas; agitava-se na cama, custava-lhe adormecer, na parede fluctuavam visões, surgiam perfis de animaes extravagantes ou o rosto ladino de algum camarada do collegio, carranqueando-lhe uma caramunha escarninha.

Muitas vezes havia gente de fora ás noutes; Margarida vinha, e essas eram as horas melhores da sua vida. A filha do Cunha occupava-se era talhar vestidinhos para as suas bonecas e elle ajudava-a; folheavam juntos os albuns, com as caras quasi a tocar, e depois analysavam as gravuras primorosas das encadernações luxuosas, representando mulheres biblicas, formosas, e a estampa de Rachel -- dizia -- tinha semelhança com Margarida, ella sorria, fitava-o com um olhar muito claro, surprehendido, e Fernando sentia-se bem n'aquelle conchego tépido, sob o influxo d'aquelle olhar limpido, meigo.

Ao cabo de alguns annos Fernando estava investido na posse de um peculio de instrucção, representado por um numero de exames bastantes para lhe dar accesso á Universidade. A mamá aventou a ideia de uma formatura em Coimbra, Antonio de Azevedo oppoz objecções, lançal-o n'essa carreira não era o seu intento, queria-o quanto antes á frente da sua casa commercial. E demais a capa e a batina inspiravam-lhe sérios receios. Coimbra apparecia-lhe como uma Sodoma condemnada e no estudante coimbrã elle só via um typo que lhe repugnava, e lhe apparecia traçando a capa ennodoada, toda esbeiçada e branqueada na extremidade de se arrastar pelo pó subtil dos geraes e das calçadas relaxadamente, chupando o cigarro ao canto da bocca com ares afadistados, libertinos, melenas esguedelhadas, barba por escanhoar, desmazelada, bambaleando o corpo com um gingar presumpçoso, affectando attitudes pandegas, esbandalhadas com ressaibos a escandalo, encarando a humanidade com olhares desaforados, trocistas, e as mulheres com olhos brejeiros, petulantes, dando em toda a parte um espectaculo cynico com modos acanalhados ou ares atrevidos de disfructe e usando uma linguagem relles, chinfrim. Antonio de Azevedo media tudo por esta bitola.

D. Maria das Dores, sua mulher, insistia; em toda a parte havia bom e mau; citava exemplos, e depois tinha gosto n'isto, bem sabia que nao usaria da formatura, não precisava com a fortuna que havia de herdar, a sua vida seria outra, mas então. .. era uma scisma, um apetite que chamassem ao filho o snr. doutor.

Antonio de Azevedo sorria, ia cedendo até que um dia se decidiu, occorrendo-lhe uma ideia que conciliava tudo. Fernando não iria só para Coimbra, acompanhal-o-hia o seu capellão, um bom padre, muito affeiçoado á casa, o qual lhe inspirava toda a confiança.

Fernando, isolado como vivia, recebeu com alvoroço a boa nova, pouco conhecia da vida, sentia no entanto, pelo que entrevia e adivinhava, que devia ser uma cousa bem melhor do que a quotidiana ruminação a que estava condemnado.

Por isso Coimbra apparecia-lhe como uma redempçao; apesar da vigilancia do padre esperava resfolegar alli um ambiente mais livre.

Atravez do seu isolamento, como atravez de uma bruma, via confusamente cousas que não comprehendia bem e que por isso mesmo mais o impressionavam; sentia no temperamento vehemente, facilmente excitavel, perturbações profundas, ardia em anceios de apalpar a vida sob todas as manifestações, que lhe fluctuavam no espirito, obscuramente esboçadas nas sombras das meias tintas, e quanto maior era o cuidado em o isolarem, mais irresestivelmente se sentia attrahido para esses objectos defezos, apresentados como perigosos, com toda a fascinação e prestigio que exercem sobre as imaginações impressionaveis os mysterios e as cousas prohibidas.

E a cada instante sorabandeavam-lhe no cerebro excitado imagens seductoras; procurava fixal-as, aguilhoavam-no curiosidades acirrantes.

Lembrava-se uma vez, era ainda pequeno, de ter visto nos vidros de um cosmorama um grupo apetitoso, banhado de luz, era Axis e Galatheia; a nympha reclinava-se com toda a voluptuosidade do abandono nos braços do amante. Antonio de Azevedo ficara furioso, e sahira bruscamente, resmoneando colericamente contra as authoridades que não viagiavam estes desaforos.

Aquella nudez perturbava-o, a imagem da bella Galatheia apparecia-lhe em sonhos, cingia-o a elle nos braços alvíssimos e aquelle contacto macio dava-lhe uma sensação incomprehensivel de grande voluptuosidade. A sua curiosidade em actividade continuava a devassar idênticas surprezas; sentia como que a sensação de um veu diante dos olhos que lhe occultasse a vida, mas por vezes fendia-se aqui e acolá e então elle mergulhava avidamente a vista atravez d'esses rasgões.

Em Coimbra desdobravam-se-lhe mais largos horisontes para fazer a iniciação da vida, n'aquelle meio expansivo sentia dilatar-se dentro de si a sua mocidade exuberante, mas reprimida ató então. Comtudo a sua impetuosidade soffreava-se sempre dentro de modestos limites. Quantas vezes ardia em desejos de se associar ás expansões da alta estroinice academica!

Havia nomes dourados de grande prestigio, uns pela excentricidade do talento, outros pela extravagancia e pela veia humoristica de um riso todo gaulez, outros ainda pela pimponice esturdia, e elle sentia também um grande prurido de sobresahir da turba, de ferir as vistas. Estremecia de enthusiasmo, quando percorria na academia, como um sopro de vento que agita uma floresta, a noticia de uma boa partida -- o desapparecimento das settas do martyr de S. Sebastião apparecendo por baixo, na vertiginosa altura do aqueducto das aguas, o distico -- basta de soffrimento, ou o furto do badalo da -- cabra -- á custa de uma aventurosa escalada nocturna á torre da Universidade.

Ouvia fallar de sociedades secretas, de planos atrevidos e palpitava de sympathia e admiração, o sangue refervia-lhe nas veias, sacudiam-no uns impulsos estonteadores, mas lá estava o padre Balthazar para lhe sopear os impetos.

O padre Balthazar era filho do José da Tapada, caseiro de uma quinta que Antonio de Azevedo tinha nos suburbios da cidade, o pai de Fernando era o padrinho. Ter um filho padre, era o sonho querido do lavrador, Antonio de Azevedo encarregou-se das despezas com os estudos do rapaz.

Depois tomara-o para capellão, em quanto não arranjava parochia -- ideal supremo de pai e filho.

Por isso o padre Balthazar acceitou contente o encargo de acamaradar em Coimbra o filho do seu protector. Formar-se-hia em theologia e era meio caminho andado para a abbadia. Arranjarse commodamente na vida era a sua preocupação, e o filho do Tapada tinha um instincto maravilhoso para o positivismo da Vida, finorio e malleavel sabia metter o barco da vida ao seu rumo com mao firme e olhar seguro.

Elle conhecia o seu mundo; contar comsigo não era mau, mas trepar é difficil e o apoio do capitalista, seu padrinho, não era para desdenhar.

Insinuara-se no animo do filho, como captivara o do pai; com uma tactica habil que fazia honra á sua esperteza e tino prudencial adoptou para com Fernando uma norma de vida, que nem era rigorismo, nem um relaxamento que trahisse o seu mandato de mentor; viviam como Deus com os anjos; era complacente, sómente o desviava das demasias, lá isso não, estroinices não consentia.

Foi assim que da crysallida da criança sahiu o homem, e a sua formatura concluia-se ao mesmo tempo que a flor da mocidade desabrochava em toda a plenitude de sua natural vivacidade aos bafejos das brisas, que gemem melancholicamente roçando pelas harpas eolias suspensas nos salgueiraes do Mondego, e ao sopro dos enthusiasmos académicos, que n'aquelle tempo se desgrenhavam ao contacto dos arrojos romanticos do genio descommunal de Victor Hugo.

A criança que tinha ido para Coimbra voltava homem, mas nao, graças ao padre Balthazar, com a alma requeimada ao halito deleterio do vicio e o corpo consumido á chamma calcinante das orgias.

Antonio de Azevedo e a mulher trasbordavam de alegria e affecto paternal; os intimos da casa acudiam pressurosos a felicital-os, o snr.

Fabião da Rocha e sua filha também vieram, não podiam faltar ou não fossem elles amigos de familia tão respeitável. Logo que pai e filho entraram na sala o excellente Fabião recebeu-os com uma explosão aífectuosa; da sua pequena e rotunda pessoa irrompeu, como um licor doce de um odre destapado, uma torrente de comprimentos e phrases aduladoras.

-- Um abraço, meu bom amigo, um abraço, não tenho expressões... só assim posso significar-lhe a rainha alegria!.. E ao nosso doutor tambem, permitta que um velho amigo da casa. . . E cada vez mais guapo, hein! Um mocetão! Um bello rapaz!

E para melhor se extasiar na contemplação de Fernando, inclinava o corpo para traz e arredondava a proeminencia do ventre.

-- Tal filho, tal pai, sim senhor, é como lhe digo, porque o senhor seu pai, aqui onde o vê, no seu tempo não lhe digo nada... um rapaz perfeito. Mas como o tempo passa! E eu que o trouxe ao collo... faz a gente velha. Mas é um regalo um filho assim, outro abraço, meu respeitavel amigo, estimo as suas prosperidades, como as minhas proprias, isto é cá do amago.

E levava ao peito a mão de Antonio de Azevedo com effusão.

Entretanto D. Gruiomar dirigia á mãe de Fernando palavrinhas melifluas, com modos ingenuos e inflexões repassadas de bondade, esforçava-se por se tornar interessante, por captivar a attenção de Fernando, deixando cahir, de quando em quando, phrases de effeito que dessem de si uma ideia elevada. Mas elle prestava uma attenção mediocre ao seu phraseado delambido, voltava-se para o digno íunccionario de preferencia, gostava de o ouvir, provocava-o a manifestar em toda a plenitude a sua personalidade ramalhuda.

Depois houve jantar para festejar o acontecimento, só com alguns intimos; Fabião da Rocha era dos privilegiados, estava radiante. Á sobremeza fizeram-se brindes muito cordiaes; os calices, faiscando a cor do topazio, cruzavam tocando-se fraternalmente; os convivas, com os copos diante dos narizes rubros, trocavam inclinações de cabeça affectuosas, mesuras sorridentes. Fernando levantou-se pallido, e, no meio de ura silencio solemne, com voz cavernosa de commovido, disse algumas phrases de effeito arranjadas para a occasião. O auditorio sensibilisou-se, os estomagos repletos dilatavam-se até á ternura, a mãe de Fernando limpava uma lagrima, Antonio de Azevedo fazia esforços para dominar a commoção e o excellente Fabião sentia um enternecimento.

O rosto afogueava-se-lhe em tons apopleticos; os olhinhos piscos, humedecidos, lucilando n'aquella aureola de carmin, faziam lembrar um raio de sol nas purpuras de um occaso; o ventre boleava-se-lhe em uma curva graciosa até tocar na meza, e toda a sua carne vibrava com a satisfação da comezaina. E agitava se na cadeira como quem medita alguma cousa de grande: de repente ergueu-se como tocado de mola occulta, e corq o olho luzente, muito enternecido, brindou -- Ao respeitavel capitalista, que o honrava com a sua amizade, ao marido exemplar, ao pai extremoso, ao cidadão prestante, anjo tutelar dos pobres, sustentaculo da religião, a quem a munificencia regia, os poderes publicos, e o publico em geral e os amigos em especial tributavam a mais alta estima e consideração -- E com uma inclinação de cabeça muito mesureira acompanhava o toast com um gesto affectuoso, espalmando a mão no peito e desdobrando a physionomia em uma jucundidade pascacia.

XI Casar com Margarida foi para Fernando, como para ella, uma ideia que lhe cahia no cerebro com todo o fragor do imprevisto.

Estimava-a desde pequenina, as suas existencias andavam ligadas, mas nunca pensara na possibilidade d'este casamento; agora, porém, recordava uma infinidade de circumstancias, que se lhe apresentavam com uma significação nova. Margarida fôra-lhe sempre affeiçoada, mas hoje que era mulher amal-o-hia? O que pensaria ella?

Estas interrogações invadiam-no, como centelhas que ateiam um incendio. Regeitaria o casamento ou acceital-o-hia só por condescendencia? Este pensamento atormentava-o, magoava-o de despeito, impacientava-se, julgava-se com direito a ser amado. Devoravam-no curiosidades de saber o que Margarida pensava, e de repente sentia um pungimento muito acerado. Se Margarida tinha outra inclinação?

-- Mas isso não podia ser, tinha que ver!

Margarida, a sua companheira, a sua amiga de infancia, dispor assim do seu coração e muito caladinha a guardar o seu segredo! Não faltava mais nada, ser preferido por outro! E se eu estivesse apaixonado por ella, sim, se eu estivesse apaixonado? Supponhamos, porque isso podia succeder, nada mais natural. . .

E depois?.. Eu que estalasse para ahi com a minha paixão. ..

Estes pensamentos tumultuavam-lhe na cabeça, como um marulhar de ondas que se embátem. Mas procurava serenar, e convencer-se de que Margarida não pensava em casar. Em breve o saberia, reuniam-se n'aquella noute, segundo o costume, em casa d'ella; prommettia de si para comsigo não sahir de lá sem um desengano.

E mais calmo olhava para dentro de si no esforço de uma contensão de espirito muito concentrada, buscava analysar friamente o seu estado psychologico. Estaria deveras namorado de Margarida? Seria realmente amor tudo isto que sentia e o perturbava? Esse embryãosinho de paixão estaria aninhado, latente, no intimo da sua alma, esperando apenas um estimulo para brotar vehemente e radiante? Era isso, não podia ser outra cousa, só faltava o momento da revelação, de resto a semente germinadora já lá estava desde longe; as suas almas attrahiamse, comprehendiam-se ha muito tempo, sómente em parte inconscientemente. Pois o que significava que só agora a physionomia boa e meiga de Margarida lhe infundia uma sensação nova e desconhecida?

E ficava contente com a descoberta que dava um colorido romântico ao seu casamento. E também seduzia-o a perspectiva de viver em casa sua, onde elle só fosse o chefe, uma casa flamejante em primores de luxo e bom gosto, alegrada pela presença de uma mulher bonita; vinham lhe alvoroços, anciedades jubilosas, e ante-gostava as seducções do seu estado novo. Imaginava-se a rodar em um phaeton reluzente, ao trote largo de uma ogoa ingleza, com a sua mulhersinha ao lado, levando-a pelo braço, sentindo uma pressão quente e acariciante.

Á noute, quando entrou em casa deAntonio de Azevedo, tinha mais brilho no olhar e uma pallidez no rosto. Margarida córou, e, quando apertaram as mãos, fez-se pallida; Fernando sentiu-lhe a mão fria.

Joaquim de Araujo jogava o voltarete com Antonio de Azevedo e Leonardo da Cunha, discutindo a ultima mão com grande espalhafato de gestos e palavriado; as senhoras formavam circulo em volta da mesa, a mãe de Fernando fazia uma -- paciência - ; Sebastião da Rocha com o jornal na mão lia alto, de quando em quando, uma noticia interessante, commentava-a dogmaticamente.

Margarida, cabisbaixa, muito calada, entregava-se com uma concentração muito grave, e um arsinho serio no rosto, ao bordado, que tinha entre mãos; Fernando com uma inquietação phrenetica no olhar tinha uma curiosidade soffrega de penetrar nas intenções d'aquella exagerada preoccupação com a costura.

A luz do grande candieiro, esbatida de alto pelo bojudo abat-jour, envolvia-lhe a cabeça em uma onda luminosa, e dava-lhe ao cabello castanho quasi preto suavemente ondeado, uns tons luzentes, flexuosos, como os de uma seda moire; o pescoço curvado descobria atraz uma alvura baça; um pequenino tufo de cabello encaracolado escapava-se do penteado com uma rebellião travessa e roçava maciamente sobre aquella alvura bem torneada; as mãos febrilmente occupadas tinham movimentos atarantados, nervosos. Sentia-se envolvida no fluido magnetico do olhar de Fernando, comprehendia que descia sobre ella alguma cousa, a um tempo deliciosa e perturbadora, queria levantar os olhos, mas um peso abatia-lhe as palpebras e depois com um esforço, pestanejando muito, olhou com decisão, encontrou a vista de Fernando, e logo com uma confusão precipitada, toda corada, palpitante, baixou a cabeça outra vez para o bordado.

Nunca lhe parecera tão bonita, não reparara mesmo que era bonita, e depois achava-lhe o que quer que fosse de novo, de estranho, no semblante, que a tornava interessante, parecia-lhe que tinha mais expressão na physionomia. Seria do penteado? e de facto o penteado estava mais cuidado e tinha um feitio differente. Seria por sua intenção?

Sentou-se ao lado d'ella, interessou-se pelo bordado, achou-o de muito bom gosto, balbuciou umas banalidades com uma certa frieza acanhada, como se ella fora um conhecimento novo e ceremonioso, Margarida respondia muito corada, levantando o rosto lentamente, um sorrisinho, entre ingenuo e malicioso, desfranzia-lhe a bocca, e fitava em Fernando uns olhos francos e bons, de uma claridade muito azul.

As primeiras hesitações iam cahindo, como uma penna que voa ao acaso e vai descendo. Conversaram muito toda a noute, Fernando estava expansivo, palavroso, e Margarida, com o rosto banhado na luz do candieiro, tinha uma radiação alegre, no olhar havia um brilhosinho da excitação que lhe accelerava o sangue. O Azevedo e o Cunha exultavam, e á despedida apertavam vigorosamente as mãos, trocando olhares jubilosamente intencionaes.

Fernando e Margarida vieram a entenderse perfeitamente; chegaram até a descobrir que, sem se perceberem, já ha muito tempo se attrahiam, decidiram que estavam talhados um para o outro e sobre este thema, romancearam largamente. O verão ia adiantado, antes do inverno já não havia tempo de se casarem, havia tanta cousa a fazer! E Margarida não queria casar no inverno, decidiu se que fosse na primavera, quando a natureza renasce e se enflora. E demais ella queria ter o seu noviciado de noiva.

O tempo passou-se em preparativos, em arranjos de enxoval, em escolha de casa--porque estava decedido que teriam a sua casinha, só d'elles, isso era ponto essencial--e assim o inverno passou depressa entre um scenario brilhante de projectos e sonhos amaveis, como um rio fecrico correndo entre margens deliciosas.

A noticia do casamento propalou-se, taramelouse muito em differentes circulos. D. Guiomar no dia em que lhe deram a certeza do casamento teve uma exasperação desolada; chegara a ter uma esperança, e era mais uma illusão desfolhada! E, desfranzindo os beiços descorados em um sorriso negro, encolhia os hombros com um despeito muito azedo.

«Que mundo, que mundo este! Uma sucia de parvos! Margarida. . . uma insignificante! mas em tendo dinheiro tudo casa. .. E que religião póde ter a creaturinha? Educada por uma protestante!... E dizem-se religiosos os Azevedos!

E ella que era o que todos sabiam.. . e para mais fidalga.. . que iria dar muita honra áquella família.. . Mas como não tens dinheiro fica-te para ahi para um canto. . . Nunca engracei com aquella sonsa, mas agora detesto-a, parece que não quebra um prato, a lesma, mas por fim é uma espertalhona!... Ah! que se eu te podesse ser boa...» Enterrada em uma cadeira de vime da ilha da Madeira, resmoneava surdaraente este aranzel peçonhento, torcendo um lenço nos dedos e bambaleando a perna traçada, que mostrava por baixa do vestido de alpaca muito desbotado um sapato surrado e acalcanhado.

N'isto a lamparina espirrou no sanctuario, dentro da alcova, ameaçando apagar-se em crepitações suffocantes.

Lembrou-se então que tinha feito uma promessa, e, levantando-se rigidamente, com um sorriso de uma lividez muito azeda, foi arranjar a lamparina; a mão nervosa tinha movimentos desastrados; aspirando o fumo do morrão, que ainda mais a irritava, bezuntava os dedos de azeite, que limpava ao cabello, entremeando o devoto labor com a continuação do palavriado bilioso.

Mas as andorinhas já chilreavam com fremitos amorosos nas azas, que esvoaçavam com lampejos azulados pelos beiraes dos telhados, sentiam-se nos primeiros bafos da primavera, de uma frescura temperada, aromas bons, que vinham dos jardins, as arvores todas palpitantes de seiva estremeciam ao vento, e luziam ao sol com os renovos muito polpudos a desatarem-se em folhas espelhadas; nuvens, como novellos de algodão, tingiam-se de tons rosados entre claros de um azul suave, muito luminoso.

Tinha chegado o dia do casamento. Margarida sentia uma felicidade sobresaltada, tinha uns impetos alegres, e de repente assumia uns ares sérios, muito alvoroçados. Fernando acariciava pensamentos bons, a alma abria-se-lhe ao bem com uma dilatação expansiva e enthusiastica, tinha vontade de fazer alguem feliz e de ver tudo alegre em volta d'ella.

O casamento fez-se sem ruido, com grande descontentamento de Antonio de Azevedo, que queria espalhafato, modestamente, á capucha, a instancia de Margarida: assistiram apenas alguns intimos.

O parocho dirigiu aos noivos uma exhortação cheia de conceitos graves, que perturbaram Margarida no momento solemne teve uma hesitação muito atordoante e o sim sacramental sahiu-lhe da garganta em um murmurio engasgado, quasi imperceptivel. Partiram logo depois da ceremonia, para a quinta de Antonio de Azevedo; Fabião da Rocha ficara muito contrariado -- Ora esta, nem ao menos um lunch! Era incrivel... Que diacho de exquisitice! Estava tudo mudado, não se entendia com as novidades da epocha.

Mas, não obstante a decepção, dispendia-se em congratulações e abraços cordiaes.

-- São dignos um do outro... duas pérolas... um perfeito par!... com todas as condições de felicidade. Os meus parabens, meu bom amigo...

Depois estas scenas remexem-nos cá por dentro, já passamos por tudo isto, e a gente não póde ser superior a estas recordações...

Os noivos no campo deixavam-se invadir de um sentimentalismo bucolico. Margarida sobretudo, com a alma muito dilatada pela felicidade, abria-se a todas as influencias da natureza, extasiava-se tanto com os panoramas de uma largueza grandiosa, como com os quadrosinhos de uma amenidade singela. E gostava de escutar e comprehender as vozes do campo, o balido meigo das ovelhas, o mugido tristonho dos bois pachorrentos, lambendo o focinho com as suas largas linguas côr de rosa, e deixando cahir pelos cantos da bocca, com ares muito sisudos, na presa de agua onde vão beber, um fio liquido que reproduzia uma multiplicidade de discos concentricos, tremulos, que davam á tranquillidade da agua um arripio doce; o latido longinquo dos cães na solidão calada da noute; o chiar gemebundo dos carros; o zumbido dos insectos, os ruidos murmurosos dos ribeiros e as badaladas das -- Ave-Marias -- reboando pelas quebradas dos montes e cahindo melancholicamente na uniformidade pardacenta do crepusculo.

Passarinhava alegre pela quinta, com um chapou de palha de abas largas, e a cor amarellada da palha esbatia-se no rosto em tons polidos de marfim, as longas fitas, cor de rosa, agitadas pelo vento, batiam-lhe no rosto e ella impacientava-se com um movimento sacudido da cabeça.

Levava abadas de milho á capoeira, ria vendo todo aquelle mundosinho alado atropellar-se soffregamente, e tinha uma cabra, que habituara a vir comer á mão, mas sempre com grandes sobresaltos e risinhos nervosos, receando ser mordida. Fernando seguia-lhe os movimentos do corpo esbelto, e, excitando o seu Terra-Nova, que latia e pulava, de contente, ria do pleno idyllio em que viviam.

Um dos maiores prazeres de Margarida era lidar no quarto de vestir de Fernando, tinha umas curiosidades imperiosas da pessoa de seu marido, deleitava-se em tocar, examinar todas as suas cousas, o seu fato, todas as suas miudezas de toilette. Uma vez, antes de jantar, em quanto Fernando lidava no jardim, occupado com o hortelão, começou a remexer com muita curiosidade nas navalhas de barba, nas charuteiras, nas boquilhas a trescalar aromas acres de charuto, cheirava-as e chegava a ter tentações de as levar á bocca.

Abria as gavetas, punha em ordem o fato, apalpava tudo, ageitava muito cuidadosamente a roupa branca, perfumava-a com um aroma a violeta.

E gostava de se mirar ao espelho d'elle, alisava o cabello com o seu pente, e, não podendo resistir á tentação de uma extravagancia travessa, poz na cabeça um dos seus chapeus com uma inclinação garrida, sorrindo maliciosamente.

Fernando vira-a do jardim saltitar pelo quarto.

Que andaria a fazer? Veio surrateiramente, entrou abafando os passos; no sitio onde ella estava não se via no espelho a porta, e de repente cantava no pescoço branco de Margarida um beijo sonoro, ao som de uma risada. O chapéu cahia estatelado no chão, soava um gritinho de susto, os braços de Fernando enyolviam o corpo franzino de Margarida e ella toda palpitante, enleada, escondia o rosto afogueado no peito do marido, sentindo um estremecimento delicioso percorrer-lhe as veias.

XII Os primeiros tempos passaram-se para Adelina nos arranjos da casa, a fervilhar pelas lojas, pelas modistas, muito entretida a estudar as modas, a fazer compras, a gastar, gastar muito. Andava toda no ar, muito radiosa, extasiava-se com as toilettes novas, queria-as com todo o chic do bom tom, muito farfalhudas em guarnições, colladas ao corpo, accentuando com uma percepção nitida os contornos do busto, desenhando a curva rija e graciosa do seio, a linha ondulosa dos quadris.

Vieram depois as visitas, Luiz tinha parentes no Porto e ella companheiras do collegio. Margarida visitou-a, e Adelina achou-a mais interessante; no collegio era muito magrita, com uma pallidez morbida, mas agora estava outra, que differença! Mais alta, desempenada, não tinha na tez aquelles tons de uma amarellidao doentia, agora tinha uma brancura sadia, muito macia, nas mãos uma alvura de leite e na transparencia mimosa da pelle umas veiazinhas muito azues, com as unhas bem talhadas, polidas, muito rosadas, como pequeninas conchas nacaradas e sobretudo achava lhe uma expressão insinuante, o olhar muito rasgado, e meigo. Admirou a, sobretudo invejoulhe a mão. E depois vivia com um estado!

Apresentava-se como uma princeza. Quando a via passar no seu trem, parecia-lhe que em volta d'ella scintillava uma aureola.

Reparou muito em tudo, quando lhe foi pagar a visita. Ao longo da escada corria um tapete acinzentado com duas largas barras de um vermelho vivo; no primeiro lanço pendia da parede um grande espelho moldurado em madeira lavrada e fosca; sobre uma meza de pés torneados destacava uma estatueta de marmore branco, representando uma mulher envolta em roupagens fluctuantes, com os braços airosamente arqueados a cima da cabeça, em uma attitude graciosa de dansa, e ao lado dous vasos da índia com plantas decorativas. Entrava-se primeiro para uma saleta toda azul, os reposteiros e cortinados franjavam-se em pregas abundantes, sentia-se impregnada de uma luz azulejada, com quem mergulha em um fluido de anil.

Na sala immediata os estofos, os reposteiros e as cortinas davam á luz discreta uns tons sanguineos, e os cortinados com uns reflexos de um dourado muito ardente, como uma fusão de purpura e ouro, destacavam sobre as alvuras finas e rendilhadas de outras cortinas sobrepostas; um tapete muito flácido, de uma côr de ouro queimado afofava os passos; mobilia de pau rosa, com ornatos de bronze dourado, sophás acolchoados, di0 vans, causejisesy cadeiras de braços faziam meandros; um lustre de crystal e bronze pendia do tecto lavrado a estuque; no meio da sala arredondava-se um sophá, cujo centro saliente era encimado por uma taça de porcellana fina com flores; nos marmores delicados dos consoles, e no rebordo do fogão coberto de um estofo assetinado, cahindo em apanhados, sobresahiam candelabros de prata dourada, vasos de Sevres, crystaes da Bohemia, e grandes espelhos davam uma reprodueção deslumbrante e infinita d'esta sala opulenta.

Adelina palpitava deliciosamente ao contacto d'estas delicadezas do luxo. Como deveria ser feliz a mulher que vive n'este meio esplendoroso!

Desejou estreitar relações com Margarida, attrahiam-na estas fascinações da opulencia. Como a invejava! Invejava-lhe a casa, aquelle apparato de importância: da sua pessoa. . . só se desejasse a mão, a mão sim, era realmente um modelo, comprida, bem contornada, sem magreza, dedos atilados, aristocráticos. E tambem desejava ser alta, como ella; mirava-se ao espelho, sorria, não ficava descontente de si, comtudo um poucachinho mais de altura não era nada de mais; de resto Margarida ao lado d'ella ficava a perder de vista.

Mas devia ser bem feliz, ella! E depois tem um marido, um verdadeiro marido, esbelto, desempenado. Que elegancia, que distincção na almofada a governar sereno a parelha fogosa. Mão de redea segura, facil; naturalidade negligente mas firme! Sympathico, muito sympathico! um homem perfeito!... E que esmero no trajar!... O Luiz nem isso... sempre umas cores sarapantonas... que toleirão!... Com um marido como Fernando, então sim, como a vida seria boa!

E o pensamento cahia-lhe em uma tristeza, depois vagueava acariciando uma ideia confusa, e ficava por muito tempo prostrada na poltrona, com muita molleza, perdida nas fluctuações vaporosas de um devaneio.

E vinham-lhe umas preguiças somnolentas, muito langurosas, desejos indefiniveis, aspirações vagas como sonhos febricitantes, em que o espirito se mortifica para descobrir a forma de objectos diffusos e nevoentos. Sentia que a invadia um aborrecimento morbido, como na aldêa, e espantava-se d'esta sensação. Pois era possivel?..

Estava realisado o seu mais querido sonho e ainda não se sentia bem, o que lhe faltava?.. Não o sabia bem, mas tinha a percepção desconsoladora de um mal-estar, de uma inquietação que a invadia, como a um doente que procura em vão uma posição calma, sentia que no espirito lhe rolava sempre um aborrimento, como um céo nublado, cujas nuvens se revolvem, mudando sempre de aspectos, abrindo de quando em quando alguns claros azues, mas ficando sempre sombrio, melancolisador. E insensivelmente o pensamento voltavase para Fernando, e a sua imagem como que lhe projectava na alma uma claridade. Mas se tivesse um marido como elle, já não seria assim; viver sem amor, era cousa que se tolerasse! Que expressão, e que viveza elle tinha no olhar! A conversação era scintillante, muito intelligente, que differença do palavriado tolo de Luiz! um ignorante, um imbecil, um fallador seccante com ares importantes e inchados; parece que vai dizer bocadinhos de ouro e«cahe sempre em uma insignificancia oca, que soa a vasio, mesmo de vexar! E depois sabe lá o que é amar, aquelle grosseirão?

o que são as energias da paixão?... Qual! todo matéria, resonava como um almocreve e que gosto depravado! cachimbava como um marinheiro!

Um horror! que nojo!... Faz mesmo mal aos nervos. .. Com um marido como Fernando como seria bom! Aquelle sim, que ha-de saber o que são delicadezas de amor, requintes de sentimento! Uma

lua de mel com elle... imagine-se... Passeariam muito juntos, ella pendendo-lhe do braço com um peso languido, banhados na brancura luminosa de uma noute de luar, ou contemplando as estrellinhas a tremeluzir, em alguma quinta, com as mãos enlaçadas; elle envolvendo-a nos fluidos de um olhar apaixonado, e ella entregandolhe toda a sua alma no extasi de um beijo doudo, ou então trepariam aos montes escarpados, deleitando-se nas transfigurações gloriosas do occaso, ou ainda dentro de um barquinho, pintado de branco com uma lista azul, cortariam com remos leves e flexiveis a serenidade doce de algum riosinho calmo, muito liso, como um lago azul em que o céu se espelha, e onde os choupos, os salgueiros, toda a casta de arvores ribeirinhas, muito tufadas, mergulham umas sombras nitidas na estagnação de uma profundidade tranquilla. E depois, como eram muito ricos, viajariam na Italia, veriam Napoles, o Vesuvio, os lagos ceruleos, absorvendo os tons quentes e retintos do céu, com as suas ilhas pittorescas, com as suas villas, onde as aguas murmurosas gotejam e repuxam em fontes de marmore, respirando, na serenidade das noutes estrelladas, de azul ferrete, o perfume dosmagnolios e dos laranjaes em flôr. Depois na Suissa trepariam ao Righi, onde os chalets, entre cascatas prateadas, torrentuosas, e pontes rusticas de muita graça pittoresca, se penduram sobre abysmos, como ninhos de aguia; admirariam as geleiras eternas, onde o luar espalha a lividez de uma luz espectral e passariam ainda á Escossia, ao paiz lendario de Rob-Roy, escutariam com enlevo o som da rústica gaita de folies de algum pastor com o seu pittoresco trajo nacional, lançandos aos echos das montanhas uma canção singela, consagrada a uma poetica legenda da Caledonia; nas margens de algum lago palpitariam deliciosamente, imaginando entrever as aguas agitaremse com a apparição da mysteriosa dama do lago -- e contemplariam, como Walter Scott, o transmontar do sol do alto da Abbadia de Holyrood com as suas torres em ameias.

Mas uma voz disse da porta:

-- Dás licença?

-- Que susto!. .. Não póde a gente estar um bocado em socego.

-- Desculpa, mas é que está alli o Fernando de Azevedo, vem. ..

-- Ah! -- E levantou-se de repente com um alvoroço.

-- Vem convidar-nos para um jantar; é uma fineza, bem vês, perguntou por ti, parece-me que devia prevenir-te, seria bom que apparecesses.

-- Mas que duvida!.. . está claro, eu vou já, não o deixes só.

E com muita vivacidade foi direita ao espelho, mirou-se com grandes requebros, compoz os cabellos, repuxou o vestido para traz, ageitou-o com palmadinhas, meneava-se, torcia-se, erguendo-se nas pontinhas dos pés, diligenciando vêr-se de todos os lados, levantou o vestido, e curvada analysou de todos os lados o sapato de couro bronzeado, em que brilhava uma fivela de aço polido sobre laço de setim, muito ramalhudo.

E desceu com uma animação no rosto, o olhar vivo, o sangue accelerado. Fernando folheava um album a resplandecer de novo, bambaleando negligentemente a perna traçada, e, na oscillação larga e lenta, o pé com meia cor clara acastanhada, de fio de Escossia, calçado em sapato de verniz, dava scintillações. Levantou-se, trocaram um shake-hands com muita effusão.

-- E como se dava no Porto? O que lhe parecia a cidade? Teria a fortuna de ficarem patricios?

Sem duvida nenhuma, gostava muito do Porto e para quem vinha da sécca da provincial ... Teve impressões muito agradaveis, quando chegou, sómente cuidava que havia mais animação, mais distracções...

-- Também esta é a peior occasião, uma epocha morta, de transição; a vida de sociedade esmorece, pensa-se na aldeia, nas quintas, vai-se para o campo, para as caldas... Ao contrario de v. exc.a vem-nos o tédio da cidade, a imaginação volta-se-nos para os aspectos do campo.

-- Exactamente -- atalhou Luiz refazendo a voz com uma sonoridade importante--ninguem está contente com a sua sorte, eu bem digo á Adelina. Fossem todos como eu, eu cá estou bem onde estou, gósto do Porto, então por Lisboa dou o cavaquinho, mas também não me ralo vivendo na provincia. A gente precisa de ter uma certa philosophia, eu tenho pensado muito...

-- Mas dizem que depois na Foz se passa muito bem -- atalhou Adelina com fastio.

-- Ás vezes, o anno passado houve assemblêa, não se passou mal. Mas por fim isto é um paiz impossivel, quando se olha para a vida lá fóra!

Por minha vontade fazia pelo menos uma viagem por anno. A Margarida é que é muito agarrada ao ninho, se não já tínhamos abalado... Diz sempre que mais tarde, que temos tempo, e não quer deixar o pai, está velho, tem medo que adoeça.

Mas ainda assim para o anno quero ver se a resolvo.

--Ah! tencionava viajar! -- Pensava Adelina e a pessoa de Fernando engrandecia-se no seu conceito.

-- Mas quando se passa melhor é no inverno; vem o baile do Club, sempre ha alguma soirée e o theatro lyrico...

-- Ai! o theatro lyrico. . . quem lhe dera!...

Ella então que era douda por musica.

E discorria ácerca do estylo dos compositores, dos authores que preferia, das bellezas das operas.

-- Sobretudo adoro Bellini, a expressão, o sentimento, a melodia da sua musica... -- E endireitando-se no sophá, com um esgazeamento no olhar -- A musica, a arte, o theatro fascina-me, era a minha vocação, se precisasse de um modo de vida...

-- E o Circo? -- atalhava Luiz erguendo-se com animação, dando sacudidellas ás perninhas curtas -- O Circo tambem é muito divertido, é de apetite, Um bom cavallo a trabalhar em alta escola... é mesmo de enthusiasmar! E as amazonas, hein?... E as amazonas, oh Fernando?... Não te digo nada... -- E arregalava uns olhinhos cupidos.

-- Este meu marido, tem umas ideias sobre o bello!... -- Encolhendo levemente os hombros, as faces faziam-lhe covinhas, com um risinho de mofa, e na vermelhidão lisa dos beiços entremostrava-se um fio branco, que promettia uma fila de dentes miudinhos e unidos.

Fernando sorria, admirava-a, era muito interessante. .. e intelligente, bastava vêr-lhe a mobilidade de expressão na physionomia, os olhos riam antes da bocca. .. adoravel! E isto vinha da provincia!. .. Mas é que não as havia por ahi assim!...--E pegando no album folheava-o com uma negligencia distrahida.

-- De quem é este retrato?!...

-- Então não vês!. .. De minha mulher.

-- Mas isto é um attentado! Por piedade, minha senhora, tire isto d'aqui; este photographo era um barbaro, uma verdadeira irreverencia... ao original. . .

Um rubor afogueava as faces de Adelina, e fazia protestos com risinhos ingenuos e modestos.

Fernando insistia e redobrava de expressões amaveis, aduladoras. Adelina estendeu o braço para o album, a manga larga correu um pouco para traz, descobrindo a meio um braço roliço, de um contorno firme que estreitava no pulso e se alargava, bem torneado, para o cotovelo, de uma brançura baça, como a de um marfim antigo, a que tirassem o lustro, e com uma penugemsinha sedosa, muito leve.

Luiz explicou que o retrato tora tirado ha muito tempo, havia physionomias difficeis.

-- Elle, por exemplo, nunca conseguira tirar um retrato que o satisfizesse, era um desgraçado, todos o desfavoreciam. Só um lhe ficara soffrivel, foi quando se vestiu em costume de Mephistopheles, em Lisboa, para‘o baile da viscondessa de Alpedrinha. Ficava-lhe mesmo bem com a penna de galo sobre a gorra e as lantejoulas a reluzir; estava muito bem caracterisado, tinha mesmo um ar satanico... um costume de furor... todos o diziam...

Em quanto Luiz se extasiava revendo-se, em memoria, na sua figura mephistophelica, Adelina, um pouco curvada para Fernando, virava as folhas do album, indicando outros retratos.

Os cabellos cahiam-lhe na testa em franja muito frisados, alguns fios annellados, mais rebeldes levantavam-se vaporosamente, iam roçar com muita leveza pela testa de Fernando e elle sentia um perfume de vaga suavidade.

Fallavam de photographias, Fernando tirou do album dous retratos, um de Luiz, outro de Adelina, com promessa de permutação, fallaram de outras cousas, a intimidade estabelecia-se, como entre velhos amigos. Fernando ergueu-se, pegou do chapeu.

-- E até domingo, é um jantar muito em família, sem comprimentos. ..

-- Então já, para onde vais?

-- Nem sei, sahi só com este destino, provavelmente vou parar ao Palacio de Crystal, é o unico passeio... E se nós fossemos tambem?... -- E os olhos de Adelina dilatavam-se com uma vivacidade.

-- É verdade... que ficavam a fazer em casa?.. A tarde estava linda, havia musica.. .

-- É um momento, não me demoro mesmo nada... só pôr o chapau. -- E sahiu com alvoroço.

-- Tua mulher é muito amavel... interessantissima... Dou-te os parabens.

-- Hum -- E Luiz, empertigado, com as mãos nos bolsos das calças, balanceava o corpo firmando-se nos calcanhares -- um bocadito activa de genio, mas por fim boa rapariga... E tambem deu com o seu homem, agora está ella macia como um velludo, ao principio custou, ellas sempre querem dominar a gente, mas isso é que não anda.

Ainda está para ser a primeira, eu cá sou assim, o ninho atraz da orelha é que não me fazem, eu é logo, ponho-as na regra do bom viver.

E brilhava-lhe um sorriso vaidoso na physio nomia inexpressiva.

Adelina desceu, calçava as luvas á pressa, com movimento apressado, frenetico, tinha nas faces uns tons quentes, amaciados com uma nevoa de pó de arroz, subtil, posto com arte.

Havia concorrencia na avenida do Palacio de Crystal. O dia estivera encalmado, tinha havido no ar uma d'estas immobilidades atmosphericas, pesadas, saturadas de electricidade, que fatigam e amollentam os corpos; mas a tarde ia cahindo com uma aragem fresca, que dá aos musculos quentes e lassos uma deleitação tonica, refrigerante como um banho frio.

Grupos passeavam na larga avenida, o colorido das toilettes e o fervilhar das crianças cortavam a monotonia d'aquelle movimento continuo e uniforme no seu sussurro igual e ininterrupto de fremitos de saias engommadas e pés, que rangem na areia, como um brou-haha longinquo de cidade rumorosa; senhoras e homens, recostados nos bancos, ainda com a prostração molle do calor, gosavam, olhando calados com physionomias apagadas, incaracteristicas, a gente que passeava; moços bem trajados, com os bigodinhos macios da puberdade, davam passos embrulhados e disfarçavam, com um gingar do corpo, o acanhamento entalado dos pés que sahiam em bico do largo bojo das calças; meninas de cabellos frisados, cahidos sobre os olhos, remiravam-se ao passar, arrastavam as caudas com requebros de cintura, fallando pouco, rindo e olhando muito.

A aragem agitava a verdura forte das arvores e trazia, de vez em quando, uns aromas muito leves a rosa e lilaz; laivos rosados, no alto, esbatiam-se no azul que desmaiava; no poente ateava-se a intensidade luminosa de um clarão immenso; nas arvores do bosque, entre a folhagem tufosa, formava-se um resplendor de ouro em fogo, e o estridor metallico da banda instrumental punha no ar fino uma sonoridade vibrante.

Adelina passeava com movimentos preguiçosos, arrastados, meneando o corpo com uma languidez quebrada, o ruido dos cobres dava-lhe aos nervos uma excitação vibratoria, fallava alto e a voz subia no tom agudo com uma pureza argentina, trocava mesuras e shake hands amaveis, com requintes de sorrisos doces, attrahia as attenções; as meninas miravara-na de alto a baixo, com a cabeça alta, enviezando a vista hostilmente; os homens voltavam olhares entendedores, curiosos, segredavam, informavam-se a seu respeito. Ella via tudo e sentia-se dilatar com o contentamento da vaidade satisfeita.

Passearam muito, estavam fatigados, sentaram-se. -- Como se está bem aqui! Este banco parecia estar mesmo a convidar-nos para admirar esta linda vista--E dizendo Adelina reclinava-se muito repousadamente.

-- Isto é um encanto para quantos estrangeiros veem ao Porto -- Fernando apontava com a badine, dando explicações sobre differentes pontos do panorama.

A tarde descia com muita suavidade, o vento cahira, o ar estava tranquillo, de uma transparencia muito luminosa, o rio escoava-se com uma serenidade espelhada, entre as collinas marginaes, alcantiladas; as verduras escurentavam-se nas sombras da tarde cadente, projectavam uns tons escuros no rio, e a claridade do poente, escorregandolhe pela superficie lisa, punha uns reflexos metallicos,como se a massa liquida fosse uma grande lamina cobreada; um barco vogava deixando um arripio na agua, como uma folha de metal estremecendo em uma vibração; mastreações de navios pousavam tranquillamente, como decorações; ao fundo, no mar que se alargava, um fumosinho de vapor fazia penacho no afogueado do horisonte, como um fumo de incendio. O ceu ia-se deslavando e cahindo na uniformidade de um tom opalisado, lacteo; o sol escondido projectava um clarão entre uma nevoa, como uma claridade forte atravez de um veu; por cima agglomeravam-se nuvens grossas, purpureavam-se debruando-se de ouro vivo.

Adelina fitava com abstracção uma nevoasinha, que se espalhava ao longe no mar, como quem persegue um pensamento pouco nitido; lembrava-lhe a beira-mar, e parecia-lhe que aquella nebrina que crescia lhe trazia um perfume acre e salgado a sargaços; appetecia a vida das praias, informava-se a respeito da Foz, fazia projectos, havia de alugar uma casinha risonha, com aspecto de cottage, de onde se gosassem os aspectos do mar, as velas a alvejar na linha do horisonte, os esplendores do poente.

E se houvesse assemblêa, como seria bom! Ha quanto tempo não walso?... Em Golpilhães walsa-se uma vez na vida, e que walsistas!...

Gosta de walsar?

-- Uma vez ou outra.... com um bom par.

Reclamo para mim a sua primeira walsa... .

-- Ah, walsa!... O Luiz não gosta...

-- Mas não é que eu seja contrario á dansa -- E Luiz cruzava a perna com importância, agitando a bengala em compassos largos -- Até está nos meus principios, mas para a walsa não tenho bossa, não me dá para ahi a tineta, e eu, quando me metto em uma cousa, quero a perfeição, sou assim, é genio, ou tudo ou nada.

Na banda instrumental os clarinetes e a flauta espalhavam, em requintes delicados, as derradeiras notas da sentimentalidade penetrante do ultimo acto da Lucia, e Adelina sentia invadir-se de uma excitação deleitosa, que se coava pelas veias como um licor exquisito e inebriador. As pinceladas rosadas do céu destingiam-se, as nuvens purpureadas arroxeavam-se; no horisonte a faiscação dourada alaranjava-se, depois todas aquellas opulencias de colorido diluiam-se na sombra diífusa e plumbea do crepusculo; uma estrelinha começava a tremeluzir pallidamente.

O pensamento de Adelina borboleteava pelas suavidades melancolisadoras da paisagem, tinha a perna traçada, pondo a descoberto um pé pequenino. Fernando, tirando lentamente do bolso uma charuteira de couro da Rússia, via os ultimos reflexos rosados do occaso darem á meia de seda de um cinzento claro, uns tons quentes de urn colorido oarnal, como uma illusão de nudez mimosa d'aquelle pé, bera calçado em um sapato de pellica.

Fernando e Luiz fumavam, Adelina aspirava as exhalações finas dos charutos caros e pensava -- Que differença do cachimbo reles de Luiz!

A musica tocava estridentemente a ultima peça, um galope de circo de um ardor impulsivo, que dava uma excitação aos nervos de Adelina.

A sombra do crepúsculo ia descendo, ao passo que a avenida se despovoava e cahia em silencio. Levantaram-se, iam sahindo, á porta despediram-se, Fernando seguia em direcção opposta.

Adelina e Fernando apertaram as mãos muito affectuosamente.

-- E até domingo. Ás seis horas.

Muitas saudades a Margarida. .. e que não esqueça a nossa walsa.

Adelina caminhava calada, cortou bruscamente a conversa cora o marido, arremessando com fastio respostas seccas, levava pensamentos a tumultuar na cabeça, como punhados de pedacinhos de papel agitados por uma ventania. Lembravamlhe os olhares namoriscadores que no Palacio de Crystal se cruzavam, e via passar as costureiras de chale e lenço na cabeça, galhofeiras, o olhar brejeiro, arrastando chinellas acalcanhadas com modos lascivos, conversando com rapazolas magros, gingando com ares patuscos; outras mais aceadas, com capas de panno preto e manta na cabeça, saracoteavam-se lépidamente, com expansões de risinhos ladinos nos semblantes pallidos, e accentuando o tic-tac das botinas com a vivacidade jucunda que dá o contentamento amoroso; na volta das esquinas, nos sitios sombrios, uma ou outra rapariga confidenciava amores, com a cara voltada para a parede, affectando muito pudor, cabisbaixa, olhando de esguelha, fincando o guardasolinho no cháo, ou fazendo ss, quebrando o corpo com ares de uma timidez discreta; ou então via cochichar a uma janella, e o sujeito do namoro, de quando em quando, retirar-se com disfarce do passeio. Tudo amava, tudo lhe fallava de amor, respirava uma atmosphera inebriadora, tinha, é verdade, uma existencia bem melhor do que a da sua aldeia, alli no Porto já havia um certo brilho de vida elegante, sentia-se bem nos contactos do luxo, como quem se reclina em uma poltrona molle; mas era uma sensação toda exterior, o espirito esse estava cercado de uma aridez, e para elle aspirava tambem ao luxo de uma vida superior de sentimento, como para o corpo apetecia os requintes da riqueza.

Fernando caminhava para casa com passo vagaroso, subia uma rua um pouco ingreme, com uma frouxidão preguiçosa, absorto em uma abstracção fluetuante da alma, passava pelos transeuntes distrahido, com o pensamento longe de si e de tudo que o cercava; por vezes correspondia ás saudações, que lhe dirigiam, sem reconhecer quem o cumprimentava.

-- É muito interessante, uma bella mulher!... e que bonito pé!... E intelligente... muito espirituosa... Decididamente é uma mulher que se distingue, e que perfeições!... O pateta do Luiz estou certo que não sabe aprecial-a, não é mulher para elle. .. isso vê-se logo... E' pena. .. Tambem como é que ella cahiu. .. E então nao me ficava agora a pensar na mulher de Luiz!...

E endireitando o corpo, como quem sacode um entorpecimento com um esforço da vontade, caminhou rapidamente com passadas de um vigor sacudido.

Quando entrou em casa, Margarida esperava-o com impaciencia.

-- Então o snr. meu marido, prometteu vir cedinho, e até agora...

-- Desculpa, fui com o Luiz e a mulher ao Palacio, com a conversa fui-me demorando -- E Fernando, abraçando Margarida, pousou-lhe na face um beijo sonoro.

-- Pois saiba que o esperava com impaciência, snr. extravagante, tenho aqui uma surpresasinha á sua espera, adivinha. ..

-- Não sei... não posso atinar... Mas dize depressa...

E Margarida tirava de um cesto de costura uma tira magnificamenté bordada, de um desenho primoroso, e, com uma expressão socegada no rosto e um sorriso de um contentamento tranquillo e feliz, desdobrava-a lentamente.

-- Lembras-te d'quelle desenho, que achaste tão bonito? Pois ahi está, é para a poltrona predilecta das suas preguiças, seu grande commodista! E olha que me deu um trabalhão.

Fernando com a tira em uma mão, apertou-a muito commovido com o outro braço e beijou-a com meiguice na testa.

És um anjo...

XIII No domingo seguinte Adelina e Luiz estavam em casa de Fernando com os outros convidados.

-- Eram poucos -- dizia Fernando -- um jantar em família, só os intimos. -- E apresentava D. Guiomar, uma amiga de Margarida, seu pai o snr. Fabiao da Rocha, dous amigos Antonio Barreiros, Arthur de Sepulveda e o velho amigo de seu pai, Joaquim de Araujo.

Desciam a escada-com etiqueta, as senhoras iam pelos braços dos homens com uma serenidade solemne, os passos abafavam-se no tapete, o froufrou dos vestidos dava um ruido fidalgo.

Ao entrar-se na sala a mesa jorrava um deslumbramento. O soalho, entalhado de madeira enxadrezada, tinha uma superficie escorregadia e espelhada, as cadeiras altas, forradas de marroquim verde, aprumavam-se com gravidade em volta da mesa; no fundo escuro dos aparadores, com pratos da India embutidos, resaltavam faiscações das pratas alinhadas e dos crystaes; do largo ahatjour, de uma brancura da cor de leite coalhado, abrindo-se sobre o grande candelabro bronzeado, muito lavradà, com serpentinas, reverberava-se uma luz crua que punha na mesa scintillações; no centro um veado de prata á sombra de uma arvore, que sustenta uma taça de crystal, onde sobresahe entre flores a pinha de um ananaz com o seu penacho rijo de um verde pallido, reflecte-se em um espelho circular que lhe serve do fundo; duas serpentinas de prata, sumptuosas, augmentavam a intensidade luminosa; taças de crystal com fructas, gelados a tremeluzir com os seus reflexos gomosos e coloridos, fructas crystalisadas, como que polvilhadas de diamantes esmagados, transparencias de garrafas a irradiar as fulgurações do crystal e do topasio, todo este conjuncto luminoso, colorido, dava á mesa uma resplandecencia harmoniosa; pelo meio da mesa uma ou outra flor delicada, em pequeninos calices de crystal da Bohemia, esguios, rendilhados, matisava com toques coloridos, animados, esta confusão symetrica.

Criados muito engommados circulavam discretamente; o ananaz exhalava suavidades de uma frescura aromatica, que se misturava a outros aromas bons e exquesitos.

Adelina experimentava uma sensação ineffavel nas doçuras d este ambiente perfumado, penetrava-a uma excitação sensual, voluptuosa, era assim, em uma casa como aquella, que desejaria passar a vida, entre as delicadezas do luxo, era assim que sonhava a existência, banhada sempre nas claridades dos bailes, dos jantares finos, dos theatros!

Trajava um vestido de seda cor de granada, que dava realce aos tons quentes do rosto, o meio decote descobria o comêço de uma redondeza firme e branca, onde Arthur mergulhava com disfarce olhares accesos.

Margarida tinha um vestido de faille preto, o semblante placido, branco, entre alvuras de rendas, tinha uma frescura suave; a claridade farta, que cahia decima envolvia-a em uma abundancia muito luminosa, que se fundia harmoniosamente com a transparência mimosa d'quella pelle, como uma pintura de mestre que se dá bem como uma boa luz.

D. Guiomar trazia ura vestido de seda verde, e esta cor arreliosa dava-lhe ao semblante agri-doce um aspecto quisilento.

O jantar começara com um constrangimento, havia uns ares ceremoniaticos, importantes, e Adelina sentia-se n'aquelle ambiente, como uma vela que se enche ao vento. O Arthur é que fallava mais, tinha ditos finos, fazia rir, a frieza ia desapparecendo, como um gelo que se dissolve.

Era pequeno, muito magro, a pelle amarellenta, sem frescura, adherindo muito repuxada a saliência das maçãs do rosto, dava-lhe um aspecto chupado e anémico; o cabello apartado ao meio da cabeça, cortado curto no alto da testa, cahia em repasinhas muito escorridas, lustrosas de pomada; usava de luneta só de um vidro, punha-a no olho direito sómente nas circumstancias importantes, em occasiões de effeito, e achava elle que a pelle arrepanhada para segurar o vidro lhe dava á expressão da physionoinia um ar excentrico, sobretudo perturbador; nunca se esquecia de recorrer ao seu instrumentosinho terrivel, sempre que desfechava alguma phrase de effeito, algum dito humoristico, picante, esmagador, a sua setta do Partha--dizia; um tio nervoso completava-lhe o aspecto superior, o ar exquesito que o distinguia logo da vulgaridade incaracteristica, e revelava a extravagancia de um talento original. Tinha um emprego em repartição publica, onde seu pai occupava um lugar graduado e usava de anel com brazão gravado, porque o papá tinha o foro de fidalgo cavalleiro, mas não cuidassem era um diploma de favor ou comprado, um desaforo, não senhor, o seu era ouro de lei. Tinha tambem arranjado o habito de Christo, e usava de fitinha vermelha na casaca, em occasiões solemnes, não que elle désse importancia áquella frioleira, mas era um chic, como quem traz uma flor. Fazia versos, já collaborara em dous jornaes litterarios -- A Borboleta e os Devaneios; não o entretinha o cavaco de homens, vinham-lhe logo bocejos, sabia-se lá conversar... apreciar um cavaco espirituoso... no Porto !..

Com senhoras, isso sim, era o seu forte, dizia pilherias que as faziam estalar de riso, e que elle acompanhava com um geito particular da bôcca, mostrando os dentes amarellados com um sorriso de ironia fina. Tinha pilhas de graça -- diziam -- um marrafico, muito espirito, dansava muito a compasso e valsava na perfeição, sómente era pena ter tanta presumpção na sua attitude de um arqueado correcto, de resto muito sympathico e amavel. .. com as senhoras, com os homens não, nem todos lhe serviam, era muito escrupuloso nas suas relações, escolhia só do tino. Com Fernando, sim, sympathisava muito, festejava-o, frequentava-o, invadia-o; não que como elle havia poucos.

Antonio de Barreiros dizia muitas vezes :

-- Não sei como supportas esta sarna, um toleirão d esta marca !

-- Ora, coitado, por fim é um pobre rapaz... e até me diverte.

-- Um asno, um sabujo... a mim faz-me nojo ..

-- Mas então que queres?.. Ainda que não seja se não por gratidão... diz que é tão meu amigo!..

-- Hein !.-. amigo... ora não sejas tolo...

Antonio Barreiros era filho de um negociante abastado, valera-lhe em um apuro commercial o pai de Fernando, ficou-lhe devendo a sua fortuna, e desde então consagrou-lhe um affecto muito grato; a amisade dos pais continuou nos filhos, já em pequenos tinham brincado muito, ficaram sempre intimos. O Barreiros tinha o curso da Eschola, fora sempre um estudante distincto e um rapaz serio; tinha já alguma clinica e era concorrente a uma cadeira da Eschola. A estatura era mediana, robusto e espadaudo, trigueiro, testa espaçosa, cabellos pretos muito corredios. Tinha uma physionomia rude e um olhar firme, muito luminoso, penetrante, quando fixava a vista de um verde claro, mas profundo, com firmeza; entre as sobrancelhas desenhavam-se duas rugas, que lhe davam um aspecto de energia e vontade tenaz. O typo de um luctador para a vida, era feio, comtudo aquella physionomia franca, insinuante, captivava logo, e os olhos de uma claridade esverdeada, quasi a diluir-se no azul, adoçavam o que havia de rude no semblante, e attrahiam pelo contraste excêntrico d'aquelle olhar de gazella quando estava em repouso, com o moreno quente da pelle, que denunciava a energia de um sangue opulento.

O Sepulveda faliava alto, com animação, das ultimas novidades, de modas, de theatros, convertera-se em centro de attençoes.

-- E no Príncipe Real vai muito bem a Bella Helena, já viram?

Não, que não tinham visto.

-- Pois vale a pena, musica seintillante, a verdadeira musica de charge, aquelle entrain que só tem Offenbach.

O Giróflé também foi admiravelmente, sobretudo a mise-en-scene era esplendida, o setim, o ouro, as cores faziam um ensemble deslumbrante, uma verdadeira feerie; vieram da Italia todos os costumes.

Em Pariz não se fazia melhor, mas prefiro a musica da Bella-Helena, mais agaçante, mais scintillantée.

Adelina ouvia com admiração este palavriado novo para ella, aquillo era de certo do melhor tom estudava aquella tagarellice, procurava fixal-a na memoria.

Discutiu-se musica, theatro lyrico. Fabião da Rocha deplorava a decadência do theatro de S. João, citava datas, nomes illustres de cantores, epochas brilhantes.

-- Lembra-se do Saint Leon, snr. Araujo?

Isso é que eram tempos, não voltara outros, foi uma idade de ouro para o theatro de S. João, reunia-se a melhor sociedade. Fazia gosto; que lá as taes operetas buffas não as posso tolerar e o can-can... uma abjecção... -- E as ultimas palavras estrangularam-se na deglutição de uma garfada de galantine de perdiz aux-pistaches.

-- Nem uma senhora que se preze vai presencear similhantes indignidades--Acudia D.

Guiomar sentenciosamente. -- Não tenham medo de me ver a mim frequentar o theatro a torto e a direito, antes menos divertimentos, e ficar em casa com o nosso serão c muito em paz com a consciencia. Isto mesmo me escrevia de Lisboa a prima viscondessa de Rialto. ..

O Sepulveda fitava-a com um olhar impertinente.

-- Cuidei que v. exc.a pensava de outro modo. -- E punha a luneta com um requinte de ironia.

-- É verdade que fui ao Principe Real outro dia com a Menezes -- continuou D. Guiomar com uma perturbação azeda -- mas instaram tanto commigo... foi uma condescendencia... depois arrependi-me, não sabia. E tambem na primeira todos cahem, mas nunca mais... Agora ir um ror de vezes, como por ahi vejo... e levarem meninas novas, umas creanças... Olhem que educação!... Mesmo uma dor de consciencia...

Joaquim de Araujo apoiava com authoridade.

-- Tem razão, minha senhora, uma patifaria. Para isto e que deviam olhar as authoridades. -- E reclamava, com uma convicção ruidosa e urgente, vigilancia activa nos theatros, moralidade, policia, muita policia.

O Sepulveda encravava a luneta no olho com a severidade de expressão emphatica de quem vai atirar á balança o pezo de um voto authorisado, decisivo.

- São respeitaveis, altaraente respeitáveis esses escrupulos -- e logo dando á physionomia o cambiante de uma ironiasinha mordente--mas na actualidade um pouco rocócó. E depois é querer fazer d'este mundo uma cousa bem séria e insipida. Em toda a parte a élite da melhor sociedade delira com a verve de Offenbach, e não consta, que por causa de uma opereta buffa nenhuma virtude deixasse de cumprir o seu dever, nem póde servir de pretexto para peccar. Isso hoje é fossil, escrupulos burguezes. E levantando o calix a altura dos olhos sorria, olhando atravez do crystal cora olhar finorio, contente da superioridade do seu dizer.

Luiz apressou-se a interpôr tambem a sua opinião. Estava calado ha muito tempo, incommodava-o este silencio, via-se pequeno, parecialhe que o envolvia e suffocava um ambiente de obscuridade, de insignificancia; revoltava-se contra este pensamento.

-- Tambem sou da sua opinião, snr. Sepulveda, de accordo, perfeitamete de accordo. A Grã-Duqueza, por exemplo, musica de apetite, e eu quando vou ao theatro não é para estar macambúzio, nada. .. o theatro é para rir. . .

Mas Adelina vibrou-lhe surrateiramente um olhar flamejante, emquanto que Margarida também intervinha na discussão.

-- Quem não havia de gostar da musica? Lá o dizia Michelet -- a sublime alegria do homem, a amiga constante e certa, a ineffavel consoladora da humanidade -- Mas quando Michelet escrevia isto, pensaria tambem na musica burlesca?

E o snr. Barreiros que diz? qual é a sua opinião?.. Está tão calado!

-- Eu sou profano no assumpto, mas se me é permittida a minha opinião aqui diante da authoridade do meu amigo Sepulveda, diria simplesmente que acho deploravel a semceremonia com que se talham carapuças de histrião nas purpuras do genio. Mas eu só procuro entender-me com o pulso dos meus doentes, e curvo-me diante da reputação incontestada de um litterato distincto como o snr. Sepulveda.

O litterato tregeitou um comprimento, a um tempo, modesto e hilariante de agradecimento, conscio da sua superioridade e circumvagou um olhar triumphante e vaidoso -- Eu tambem não quero dizer. . . sim, eu não digo, lá faltar ao respeito ao genio, lá isso, não senhor.. . Eu sou o primeiro a respeitar. ..

São essas as minhas ideias. .. bem sabidas.

-- Por fim o sério e o comico são dous extremos que hão-de sempre existir e tocar-se -- dizia Fernando -- Não é essa uma das feições caracteristicas do genio de Shakespear? o pathetico, o sublime ao lado do comico e da trivialidade; a alegria galhofeira de Mercutio em contraste com a exaltação apaixonada de Romeu. A comedia humana de Balzac, como a divina comedia de Dante são monumentos litterarios. O sal attico e o riso gaulez teem lugar na arte, a difficuldade está em assignar-lhe os limites, que o separam da baixa chocarrice.

-- Isso, é isso mesmo -- clamou o Sepulveda em uma explosão de enthusiasmo -- tiraste-me as palavras da bôcca. Ora é uma cousa célebre estas coincidencias de ideias!. .

Adelina envolvia Fernando em um olhar profundamente admirativo.

Houve uns momentos de silencio. Ouvia-se apenas um sussurrosinho de masticação, cortado pelo toque agudo dos talheres na porcellana, e pelo ruido da louça entrochocando-se nas mãos dos criados. Sentiam-se uns aromas quentes, bem cheirosos a molhos finos; as physionomias repletas dilatavam-se, o ventresinho de Fabião arredondava-se, os olhinhos humedecidos piscavamlhe, a claridade escorregava luzidiamente sobre o seu rosto pando, acceso; nos intervallos de prato a prato respirava largamente, endireitando o corpo; com um movimento instinctivo, irreprimivel, corria a mão pela pansasinha e, com disfarce, desapertava a fivela do collete, relanceando olhares furtivos, soffregos, para o novo prato que apparecia.

O champagne saltou com um estalido sonoro no meio do silencio, espumejou nos calices largos, travesso, saltitante. Adelina olhava para os granulos irrequietos, linda, linda --pensava -- aquella effervescencia de flocos de prata sobre uma fusão de ouro!.. Teve um arripiosinho de uma titillação deliciosa sentindo nos beiços calidos aquella frescura doce, espumante; passou a pontinha vermelha da lingua, sorvendo com deleite um resto de espuma. Respirava-se um ambiente excitante, passavam aromas finos do Porto velho e exhalações delicadas de ananaz, nosgada, e baunilha; começava a faiscar um pontinho luminoso nos olhos dos homens, como o bico de um alfinete acceso fluctuando em um humedecimento; sentiam um redobramento de intensidade luminosa; a conversação reanimava-se.

Fabião, limpando ao guardanapo o beiço luzente, levantou a cabeça descahida para o prato com uma grande concentração.

-- E a ultima novidade?. . O que lhes parece, hein?.. Então não sabem... vejam se adivinham. ..

-- E relanceava pelos circumstantes um olhar malicioso.

Não, que não adivinhavam; tãmbem quem havia de adivinhar uma novidade.. . d'elle!..

-- Ora verdade, verdade, não admira, ella é mesmo fresquinha -- e apressando a deglutição de um gelado de fructas, meio entalado. -- Pois a viscondessa de Arentella requereu divorcio, foi hontem, só hontem, apresentado o requerimento; já veem que não era facil saber-se. . . disse-me o juiz, somos amigos -- E olhava triumphantemente em redor e ao mesmo tempo relanceava um olhar jubiloso para uma charlotte à la Chantilly, que se aproximava magestosamente na mão do criado.

D. Guiomar accrescentava com uma superioridade desdenhosa, que não estranhava este desenlace, estava previsto, e accumulava accusações acrimoniosas sobre a viscondessa.

O Sepulveda defendia-a.

-- Era muito amavel, adoravel, um anjo. . .

a culpa nao era sua. .. uma victima do marido, um grosseirão, um brutal, egoista, não a merecia, os homens são sempre culpados. .. são poucos os que sabem comprehender a mulher. -- E fitava Adelina com enternecimento alcoolico -- Por isso estou sempre do lado do bello sexo.

-- Era uma evaporée, -- o visconde por fim não passava de um -- bom serás -- não fosse ella uma douda. . . -- E D. Guiomar encolhia os hombroscom um despreso enojado.

-- Mas um marido não deve ser apenas um -- bom serás -- objectava Adelina com um sorriso, ameigando a voz.

Joaquim de Araújo lamentava a repetição de tantos casos de divorcio depois do novo codigo, e fulminava as leis, os governos, a immoralidade do seculo.

-- Nós cã somos de outro tempo, eu sou da criação do pai alli do nosso Fernando e d'aquella senhora, outra louça.. . isto hoje está tudo podre, uma sucia... -- E com um figo crystalisado na mão, meio traçado com uma dentada, dava um impulso forte ao braço, e o fructo acompanhava, com uma scintillação, a energia do gesto largo.

-- Mas deixemos o caso do divorcio para os pensadores e legistas -- atalhava Margarida com um sorriso triste -- o que temos a fazer de melhor é lamentar duas creaturas infelizes, que não souberam comprehender o acto mais serio da vida.

Estas palavras comedidas produziram o effeito de uma agua fria que cahe em uma fervura.

A conversação dividiu-se, cada um conversava com o visinho. Arthur revirava-se para Adelina, o corpo sempre em uma agitação, em attitude constante de uma cortezia refinada, palaciana; na cara uma aurora de sorrisos.

-- Ah! gosta de versos!. ..

-- Muito, e já que os não-sei fazer, recito-os -- e Adelina exprimia a falia, e dilatava as pálpebras com o geitinho habitual de fazer os olhos grandes.

-- Ah! recita!. . . Que prazer eu teria em ouvil-a. . . Como deve ser commovente com uma voz tão harmoniosa!. . . Eu tenho uma poesia.. . como deveria recital-a bem.. . com o seu timbre!. ..

É triste, mas bonita--O noivado do sepulchro -- começa assim -- e descendo a voz a um tom grave, muito cavo, recitava:

Horror... além sob a lonza estendida Qual visão ideal, empallidecida!

Mas Fernando pediu que o acompanhassem em um brinde aos seus hospedes, congratulandose viessem abrilhantar a sociedade portuense com as suas qualidades sympathicas, e fazendo votos, que o Porto tivesse a fortuna de os captivar e fixar: pelo menos eram estes os seus mais ardentes desejos e, estava certo, os de todas as pessoas presentes tambem -- Brindo ao meu amigo Luiz de Albuquerque e a sua amavel esposa.

-- Pois não, ora viva, sou uma sua criada, estamos mesmo todos derretidos -- Pensava para si D. Guiomar, mas, com a physionomia muito aberta em um sorriso amavel, muito captivador, cortejava Adelina com uma inclinação de cabeça aduladora.

Adelina estava toda palpitante de emoção, muito afogueada, o olhar vivo. Luiz enfiara, era preciso responder, hein!.. . diacho, não estava má, sentia um arrepiosinho muito incomraodo pela espinhal medulla, havia um silencio que o opprimia, Adelina fitava-o, como quem sentia uma anciedade affiicta, colerica, a situação tornava-se difficil, mas de repente com muita decisão:

-- Agradeço ao meu bom amigo Fernando de Azevedo a honra do seu brinde, as.. . mas... as suas expressões. .. confundem-me -- e gaguejava, a sua voz fazia-lha o effeito dentro de si do echo de um trovão, sentia um atordoamento idiota, Adelina tinha uma pallidez irada, fitava-o com uma dureza anciosa; mas elle tirando um esforço da propria afflicção, proseguiu -- Não as merecemos, sabemos que as devemos só á sua boa amisade, mas isso já é mais que sufficiente para que nos seja agradavel a residencia no Porto. Por isso, agradecendo as suas expressões amaveis, brindo ao meu bom amigo Fernando e a sua virtuosa esposa.

E em seguida este exforço supremo e victorioso resfolegou glorioso, alliviado, como depois de um cansaço.

Pouco depois levantaram-se; o café foi servido em cima; ás senhoras na sala do piano, os homens foram para o bilhar.

Arthur ficara atraz com Fernando, e, levantando-se nas pontinhas dos pés, apertando-lhe o braço com força, segredava-lhe ao ouvido:

Que deliciosa mulher! boa pequena! e que pinta!.. . hein! oh, Fernando?!. . .

Ora não sejas creança, ao menos tem juizo em minha casa--e encolhia os hombros enfadado, com um vincosinho entre as sobrancelhas.

-- Oh, menino! não te escafties, se te parece, faz-te agora caturra.. .

E Fernando sentiu um azedume, teve um sentimento hostil, de zanga, contra Arthur, nunca lhe parecera tão quizilento o pateta do Sepulveda. -- Adelina não lhe era nada, e comtudo aquellas expressões irreverentes, indelicadas, magoavam-no, offendiam-no. Porque? Que lhe importava a elle o conceito que o Arthur fazia da mulher de Luiz?. ..

Era realmente exquisitice, e no entanto sentia que descia sobre elle uma tristeza.

O Sepulveda assaltara o bilhar com grande ruido, experimentava todos os tacos, que ficavam tombados, descompostos; punha giz com força, cahiam pedacinhos, esmagavam-se no soalho, polvilhava o chão e o bilhar de branco, punha tudo em desordem. O panno do bilhar, em um momento mosqueado de branco, brilhava com uma cor verde forte aos reflexos de uma luz muito viva, Arthur saltitava de redor com modos estabanados, as bolas rolavam em giros frenéticos, doudos, faiscando lampejos redemoinhantes na superfície polida, tinha presumpção de jogar bem, com um jogo floreado, de muitos effeitos, tacada forte, elegante, que fazia saltar as bolas. E a voz ouvia-se-lhe, em agudos hilariantes, entre o estalido secco das bolas, que se entre chocam.

-- Hoje quero tirar desforra, anda d'ahi, oh Fernando, quero mostrar-te que não sabes nada d'isto, outro dia era tudo sorte, uma leiteira... estupida.

-- Hoje não jogo, fico a marcar. Joga com o Luiz.

-- Que diacho! estás macambuzio, com cara de quem perdeu á renda, hein?... Não queres fazer fiasco aqui diante de Luiz.

- É melhor jogarmos todos, um giro, uma guerra--opinava Luiz.

Está dito, até eu jogo, e mais aqui o snr.

Araujo, uma rapaziada, uma rapaziada, eh, eh, eh -- O abdomen estremecia-lhe com as contracções da hilaridade, depois passeava em volta do bilhar lépido, o pé leve, com o taco empinado no hombro, o ventre proeminente, e, com o rosto galhofeiro, affectava uns ares farçolas de boa feição.

Na outra sala as tres senhoras conversavam sentadas no sophá e em cadeiras de braços, Adelina examinava tudo com uma attenção admirativa, ouviam-se as gargalhadas dos homens vibrando com uma expansão muito prazenteira, e o ruido das boias soava-lhe aos ouvidos aristocraticamente, sentia uma excitacão, umas vehemencias impulsoras para o bilhar, tinha tentações de ver jogar, de fazer carambolas, de se ver entre homens, rindo com elles, lidando tambem com uma vivacidade alegre, travessa, em volta do bilhar.

D. Guiomar contava com voz dolente que a Coutinho tinha ura filho doente, perigosamente doente, Margarida informava-se com interesse da doença, do estado da criança, e da mãe, coitadinha, como devia estar afflicta!

-- Aqui estão duas casadas sem filhos, nunca tiveste nenhum, Adelina?

-- Eu não, felizmente. Quem é tua modista? Está muito bem talhado esse vestido.

-- Felizmente!. . E eu que os desejo tanto!..

-- Ora! em quanto se é nova, são mesmo um empecilho, então quando é que a gente ha-de gosar alguma cousa?. . Depois tudo são secas, quizilas. .. E refastelando-se mais no sofá cruzou a perna.

-- Os espectaculos, os divertimentos tambem cançam, gastam-se, e nunca satisfazem, aspira-se sempre a um goso novo e nunca se está contente. Os divertimentos por fim são um incidente na vida; a felicidade tambem depende muito de nós, e quando a podemos ter em casa. .. As distracções são como uma embriaguez passageira, depois de dissipada fica o vacuo; com a felicidade que procura raizes nos affectos do coração, nas alegrias de familia, não succede assim, é sempre constante com a sua Iranquillidade serena, não tem exaltações, mas tem encantos mais duráveis, um frescor perpetuo, encontra-se sempre quando mais é precisa... e fios momentos difficeis da vida...

-- Tudo isso é muito bonito, mas vão lá ensaiar uma scena ingenua de felicidade domestica com um marido como o meu!... Tinha graça, palavra, que tinha graça!... -- Deu uma risadinha e com o impulso que imprimiu ao corpo levantou mais alto a perna traçada, com um movimento nervoso, na convulsão do riso.

-- Esta menina falla sempre assim, porque tem uma confiança por ahi além no seu Fernando, mas ora Deus queira... -- Dizia D. Guiomar com um sorriso sorna -- A final são todos o mesmo, não ha nenhum, que não seja capaz de a pregar mesmo na menina do olho... Bem fiz eu que não me casei. .

-- É que ás vezes a culpa não é d'elles...

-- Tambem um marido maricas... Que implicação! -- E Adelina dava á physionomia uma expressão muito enjoada.

-- Creio que se póde ser bom marido sem fiar na roca, e quando não se está talhado para grande homem...

-- Ai! que conversa tão seria! E se nós fossemos ao bilhar? Uma surpreza, hein? cahimos lá de repente... Nunca vi jogar aquillo -- E toda exaltada, muito estouvada, foi levando comsigo as duas.

Uma acclamação recebeu-as.

-- Hercules depoz a clava aos pés de Omphale -- E Arthur, radioso, ufano do seu madrigal, todo dobrado pelo espinhaço, offerecia o taco a Adelina.

-- Mas como é? Como se faz isto? -- E muito risonha pegava no taco desastradamente com ar travesso, e imitando comicamente uma attitude de jogador.

-- Eu ensino... eu ensino -- E Arthur, todo saltitante, explicava a posição.

Adelina dava risadinhas, toda alvoraçada, uma vivacidade no olhar; dobrava-se sobre o bilhar, as fórmas do corpo espelhavam-se, a vista podia seguir-lhe, com uma percepção nitida, os contornos admiráveis, harmoniosos; o corpete do vestido, repuxado, desenhava o seio firme, redondinho. Arthur, para explicar melhor, chegava-se muito.

Perdão. .. assim... os dedos mais estendidos.. . firmes -- E com uma pressão suave da sua mão guiava a mão de Adelina.

Fernando sentiu um estremecimento pelas veias, tinha a respiração oppressa, não sabia porque, mas tinha vontade de atirar com um taco á cabeça do Sepulveda. Estavam todos attentos a olhar de redor; Fabião tinha um ar embasbacado, com o taco empinado no hombro; Luiz olhava contente, abrindo a physionomia na expansão de um sorriso papalvo.

Depois passaram todos á sala do piano. A cor fulva do papel e dos estofos decorativos, banhada nos reflexos luminosos do grande candieiro bronzeado e das grandes serpentinas do fogão, davam á sala uma luz doce, de um colorido ameloado. Pediram ás senhoras que tocassem.

Margarida passou a mão com suavidade pelo teclado, tocou uma -- reverie -- de Schubert, singela, expressiva, que expirava em um murmurio, sem preparar o ouvinte, com a trivialidade de um final ruidoso, para os applausos e elogios banaes do estylo.

Houve um rapido momento de silencio, mas como não chegasse o atabalhoamento estrugidor das notas convencionaes, o Sepulveda appressou-se a applaudir, e batia palmadinhas com as pontas dos dedos, acompanhando os applausos com uma profusão de phrases amaveis e inclinações do corpo franzino.

Fabião por um triz que tinha adormecido, succumbindo a uma modorra invencivel, que costumava invadil-o, embirrava com aquillo, então que diacho ! era superior a elle; mas poz-se logo de pe, como sacudido de uma mola, e secundou com enthusiasmo as expansões de Arthur.

Adelina desfazia-se em elogios, mas sentia no intimo um contentamento -- Que miseria! que lastima! não toca nada... -- E contente da sua superioridade sentou-se ao piano, depois de muitas desculpas modestas e outras tantas insistencias.

Nao tocava sem musica, e as musicas de Margarida eram exquisitas, não as conhecia, mas appareceu um -- Trovador -- esquecido, relegado.

Casualmente era a sua melhor peça de execução, e o piano começou logo a cantar com um espaihafato estrepitoso, brilhante; os principaes motivos da opera passaram na garrulice de umas variações repenicadas com um brio vibrante.

Arthur estava de pé com o braço estendido, as pontinhas dos dedos levemente apoiadas ao piano; sabia um bocadinho de musica, virava a folha, acompanhando a melodia com movimentos de entendedor.

D. Guiomar, essa não tocava, afofada no sophá relanceava para tudo olhares gelados. Observava, disfarçando a curiosidade dos olhos buliçosos com a luneta, tinha nas feições uma immobilidade reservada, e os beiços delgados, cerrados davam-lhe um aspecto maligno, de muito azedume.

Adelina tinha acabado de tocar, e, depois dos applausos, Arthur permanecia em pé diante d'ella, com uma mão atraz das costas; agitando com a outra os breloques do relogio, elogiava o methodo de tocar, informava-se do professor, do collegio, do tempo de estudo.

-- E recitar? uma poesia depois da musica, isso é que era! ouro sobre azul! -- E fazendo instancias dava ao corpo repetidos movimentos oscillatorios.

Uma vermelhidão accendia as faces de Adelina. Excusava-se, quiz recusar-se, mas todos insistiram e caminhou para o piano com ar constrangido, mas, no intimo da alma, com um jubilo alvoraçado. Arthur fez o acompanhamento, já estava costumado.

O peito de Adelina arfava suavemente, tinha uma pallidez leve no rosto, no corpo movimentos quebrados, indolentes, mas nos olhos uma vivacidade esgazeada e uma dilatação nas narinas. Recitou uma poesia de Soares de Passos. Umas vezes o semblante acccndia-se de enthusiasmo, sacudia a cabeça para traz com um estremecimento rapido, e a voz assumia uma excitação vibrante; outras vezes o timbre cahia langurosamente, o olhar avelludava-se, velava-se de um fluido de muita doçura, e, revirando-o ao céu, fitava um pedaço de estuque lavrado.

Fernando, com uma pallidez no rosto, cravava a vista em Adelina com uma firmeza ardente, e os seus olhares encontravam-se. Um sorriso vago passou pelo rosto de D. Gruiomar.

Ás onze horas sahiram todos. Adelina despedia-se de Margarida com muitas affabilidades, e, trocando beijos sonoros, agradecia aquellas horas apraziveis. Fernando descera o primeiro lanço de escadas, despedia-se de Adelina muito affectuosamente, as mãos apertaram-se com uma pressão forte, os olhos encontraram-se em um lampejo rapido, magnetico.

Adelina offereceu a D. Gruiomar um lugar na carruagem, trocavam amabilidades, como muito boas amigas. O Sepulveda desengoçava-a a enfiar o paletot.

-- Boas noutes, sabes que nos déste um jantar de principe, tambem para que queres o dinheiro... -- e ao ouvido--decididamente atiro*me, a cousa vai bem, Au remir. E offerecia o braço a Adelina, descia a escada tagarellando jovialmente.

Fernando entretanto voltava á sala. Abriu a janella para observar a noute, debruçava-se na varanda, a portinhola do trem batia, echoando no silencio da noute, as patas dos cavallos feriam a calçada, e sentiu-se o ruido forte das rodas.

E debaixo uma voz:

-- Parece que temos o tempo transtornado.

-- A noute está fria.

-- Tenham cuidado, não se constipem.

-- Boas noutes. Adeus.

Fernando e Margarida ficaram calados, ouvia-se o trem rodar ao longe, a noute cahia de novo em silencio. O som pigarroso do catharro do uma patrulha fazia um ruido grosso no ar calado.

-- Sabes que não gósto mesmo nada d'esta Adelina, e não é que eu seja facil em antipathias, mas nao sei o que sinto que me affasta d'ella.

-- Ora, coitada; ella que mal te faz, até diz que sympathisa muito comtigo.

-- Pois sim, mas parece-me que nunca nos havemos de entender bem.

E ficaram outra vez calados. Nuvens passavam, no alto, de vagar, brancuras luminosas de luar brilhavam entre nuvens esfarrapadas, como que esfumadas a carvão; os bicos de gaz, agitados pelo vento, espalhavam claridades tremulas, incertas; sentia se no ar silencioso um arripio humido de nevoeiro; de vez em quando soava o ruido surdo de algum trem a distancia.

Fernando fumava, com os olhos meio cerrados, olhava abstracto para os rolos de fumo azulado, que se fazia luminoso na claridade do luar; entrevia, atravez do fumo, nas indecisões de uma bruma, formas vagas de uma correcção apetitosa, uns hotnbros nus de contorno muito arredondado, beiços vermelhos, carnudos, com sorrisos provocadores, e olhares de uma voluptuosidade irritante.

-- Está muito fresca a noute. E melhor recolhermos.

Margarida sentou-se ao canto do sophá; Fernando na outra extremidade.

-- Sinto hoje uma tristeza! -- E aninhou-se muito conchegada com o marido, como um ente fragil que se encosta ao seu apoio natural, e, com um estremecimento gelado, reclinou a cabeça no hombro de Fernando.

-- Creança!. . .

E um beijo frouxo cahia com uma tranquillidade fria na testa branca de Margarida.

XIV Fernando teve um somno inquieto, sonhos fatigantes agitavam-no, acordava repetidas vezes com sobresaltos, tinha a bocca secca e a lingua escandecida, grossa, com um gosto acre, salobre, a má digestão. Esteve algum tempo acordado, quatro horas bateram em dous relogios da casa com intervallo curto, lá fóra outras horas nas torres cahiam com um timbre fortemente metallico, arrastando-se tristemente no silencio da noute, e aquelles differentes sons faziam-lhe no tympano um estridor acirrante. Um chvveiro rufou na vidraça. Sentia o sangue accelerado, cálido, como se o alcool dos vinhos, que bebera ao jantar, lhe circulasse acceso nas veias; esmagava-lhe o corpo uma fadiga pezada, e no cerebro tinha uma excitação, mas um torpor somnolento invadiu-o. Cedeu a um amodorroamento, adormeceu mas com uma actividade febril na cabeça; passaram visões extravagantes, indecisas, via imagens vagas na confusão de uma nevoa; depois Adelina surgia a principio em uma penumbra, com fórmas incertas, pouco a pouco a sua imagem acclarava-se, apparecia, com uma percepçao nitida, banhada na intensidade de uma luz forte, que augmentava gradualmente. Era a claridade de uma ribalta. E ella declamava com emphase, de repente voltavase para elle com sorrisos provocantes, dizia-lhe phrases de um amor muito romanesco; quiz arremessar-se ao palco e sentiu uma inercia impotente; os espectadores seguravam-no, aniquilavam-lhe os esforços desesperados; vozes enfurecidas bradavam que era um escandalo, havia reboliço no theatro, senhoras indignadas, rubras de pejo, sahiam dos camarotes, a policia intervinha, elle debatia-se, levantava-se na sala uma poeirada, que se illuminava á luz do gaz, e via Adelina, atravez d'aquelle pó luminoso, em uma attitude voluptuosa. De súbito o Sepulveda apparecia-lhe ao lado com umas grandes azas nos hombros; dizia lhe que eram as azas de Pegaso, por ella tinha ido conquistal-as ao Parnaso para fugirem juntos, e Adelina, revoluteando em uma pirueta lubrica, voou nos braços de Arthur.

Acordoou com um estremeção violento, os olhos esbugalhados; tinha uma transpiração fria no corpo, relanceou ura olhar de espanto inconsciente. A lamparina espalhava no quarto umas claridades frouxas, oscillantes, e aquella luz mortiça, coada pelo vidro coalhado, dava uma penumbra tranquilla que se reflectia docemente no papel azul; de fóra começava a vir uma claridade branca de alvorada, peneirada atravez das cortinas, fundia-se mansamente com a luz da lamparina, havia no aposento como que um crepusculo opalisado, calmo, refrigerante; ouvia-se, no arvoredo do jardim, a chilreada estridula e alegre dos passaros.

Fernando sentia-se prostrado de um cansaço aniquillador, succumbiu a um peso invencivel, o ambiente tranquillo e dulcificante, que se respirava no quarto, infiltrava-se-lhe consoladoramente nas veias; cahiu na profundesa de um somno calmante.

Acordou tarde com um quebranto no corpo, mas estava placido, sentia uma serenidade na alma, como a de um cerebro que se allivia dos vapores de uma embriaguez.

A imagem de Adelina ainda lhe apparecia aureolada de seduções; mas agora sentia uma grande tranquillidade dentro de si e uma firmeza fria na razão, como a serenidade immovel de um céu azul e transparente fazendo pressão sobre a limpidez espelhada de um lago tranquillo.

Discorria placidamente, o pensamento vagueava, mas pausado e reflectido:

Adelina é com effeito uma belleza. .. uma belleza muito picante, e tem uns olhos!.. um olhar que vai direito, como uma setta de fogo, ao mais intimo da nossa alma, e nos revolve voluptuosamente todo o ser! Luiz.. . era aquillo que se via, e ella com toda a certeza aspirava ás sensações romanescas de uma vida intensamente amorosa, como uma planta, na escuridão de uma sala, aspira á luz e ao ar tepido da primavera.

Tem no sangue a nostalgia da paixão, e se não for elle, será outro.. . Ah, que se elle fosse solteiro!.. como deve ser linda no sensualismo exaltado do amor, abandonando-se loucamente em um paraxismo de paixão!. . Mas não, que tolice!. . Como chegou a occupar-se com este pensamento! elle! casado com uma mulher boa, que lhe fazia da vida um ninho macio, elle que era tão feliz no conforto honesto e alegre da casinha bem organisada!. .

E imaginava-se por momentos cedendo ao inebriamento da paixão, e a imagem de Margarida apparecia-lhe desolada, soluçando afflicta, via o interior caseiro, desordenado como um ninho desfeito violentamente, com o aspecto desconsolador e lugubre de uma casa abandonada, em que a desgraça e o desespêro cahiram, e estremecia de frio, sentindo descer-lhe sobre a vida a opacidade de um futuro cheio de amarguras, como uma perspectiva nevoenta, que dá arripios de humidade. Não, nunca, seria uma vileza, defender-se-hia com a imagem da sua boa Margarida!

Bateram á porta do quarto, o almoço estava na meza.

E sentia-se dulcificado ao contacto de todos os impulsos bons, que se levantavam do fundo da sua alma, fez protestos de evitar Adelina, e sentia enternecimentos de uma suavidade muito affectuosa, calmante, pensando na sua mulhersinha: decididamente era alli, só alli, com ella, que estava a felicidade, a alegria sem sobresaltos, sem desesperos, sem perturbações dolorosas, e a vida apparecia-lhe de um bem-estar consolador, de um contentamento cheio, abundante, de uma tranquillidade deliciosa, como a dos lagos preguiçosos banhados fortemente na meiguice dos luares esplendidos.

Entrou na sala de jantar alegre, contente de si, como quem acaba de praticar uma acção boa. De noute cahira uma chuvada, que dava uma frescura lavada aos arvoredos, mas o dia raiara cheio de sol, nuvens esbranquiçadas esfiavam-se, rarefaziam-se, como fumos brancos que se evaporam, as folhas do grande magnolio, no jardim, com a poeira lavada pela chuva, resplandeciam nos tons de um verde lustroso e forte, pelos stores verdes entrava uma bafagem de verão, balsamica e temperada pela frescura, de que ainda estava impregnada a atmosphera, do chuveiro da noute, e a luz viva, scintillante de claridade solar, amortecida pelos Stores, esbatia-se na sala com uma suavidade esverdeada. Um fio de sol doudejava no soalho enxadrezado, Fernando fitava-o, e aquelle raio de luz dava-lhe a ideia de uma fulguração de esperança e alegria que entrava na sua alma.

Margarida vestia um roupão branco, bordado a retroz preto, afogando-se no pescoço com um laço de seda azul. Também não passara muito bem a noute, e as oscillações da sua saude melindrosa espelhavam-se logo na susceptibilidade do semblante mimoso, como a transparencia de uma agua crystallina, que accusa immediatamente a mais leve gota de liquido colorante; tinha uma alvura pallida no rosto, de uma morbidez suave, que se casava harmoniosamente com a brancura do vestuario; umas olheiras ligeiramente pisadas, de uma transparencia levemente azulada, davam realce ao olhar luminoso e limpido, e tinha um aspecto de serenidade, de alegria placida, de confiança feliz, como quem se entrega descuidosamente ao bem-estar, que a penetrava e abraçava de todos os lados.

Fernando de vez em quando envolvia-a em um olhar acariciante, disfarçado, como que receioso de que o seu segredo se lhe trahisse no olhar: Margarida nunca lhe parecera tão linda, nao de uma belleza que escalda e espicaça os sentidos, mas de uma belleza meiga, commovente, que dulcifica como um balsamo unctuoso, e elle sentia que do fundo da sua alma se exhalava, com um impulso de tocante sympathia, tudo o que havia de mais affectuoso e honesto, como a pureza de um culto.

Almoçou com apetite, e na ausencia do criado, depois de acabado o serviço da meza, ficou a conversar mais tempo do que costumava, de bom humor, em uma paz jubilosa, feliz, com a sua consciencia.

Fallaram com animação de projectos de verão, Fernando propunha excursões ao Bom Jesus, ao Bussaco, ao Minho, apetecia os aspectos alegres e vivificantes do campo, os descanços calados á sombra fresca e murmurosa dos arvoredos, as ascensões, cortadas de peripécias joviaes, ás alturas das montanhas, as contemplações scismadoras diante dos occasos esplendurosos, os passeios pacatinhos em bote pelos rios pittorescos, cheios de sombra, afogada em ramagens, que se miram nas aguas sussurrantes e espelhadas..

Margarida approvava tudo com alvoroço feliz, mas não queria uma digressão demorada para irem cedo para a beira-mar, era isso o que apetecia primeiro que tudo--respirar muito o ar do mar, as brisas salgadas, o ambiente fortemente iodado, tomar muitos banhos, dar passeios pela costa em barco, ou a pé, quando o mar se espreguiça em uma indolência dormente, e absorve na sua superficie tranquilla a intensidade luminosa da immensidade azul.

--É verdade. . . a beira-mar.. . os banhos salgados. . . e também o pequerrucho a engatinhar pelo chão, e depois a traquinar com os seus passos atarantados e a trepar esbofado ás cadeiras. . . Não é isso ?

O calor augmentava, vinham de fóra bafejos mais quentes, o ròdar dos trens, que passavam com um ruido grosso, fazia estremecer a casa, os ruidos da rua chegavam amortecidos, ouvia-se o martelar de uma sonoridade secca e compassada na loja de um funileiro. Sentia-se um echo do movimento, da labutação, da vida da cidade, como um convite ao trabalho util e honrado, que transforma em vigor sadio os quebrantos molles da carne e os enervamentos morbidos do espirito.

-- Sabes que estás hoje com um arsinho adoentado, fica-te bem, é muito sentimental, mas prefiro uma côr menos poetica, mas mais sadia.

Logo quero ver-te muito bem disposta para darmos de tarde um grande passeio.

E com um beijo franco, sonoro, despedia-se alegremente de Margarida.

Pouco depois sahia com uma limpidez radiosa no semblante, trauteando surdamente uma miscellanea humoristica de operas, composição repentina de sua phantasia. Ia para o escriptorio de seu pai; tinha desapparecido o amollecimento doentio com que acordara, sentia nos membros a elasticidade vigorosa da energia e da saude, apetecia-lhe o trabalho, tinha vontade de ser util, de produzir alguma cousa de bom, proveitoso, desejava tambem um filho, exactamente como sua mulher, queria amar um entesinho, que lhe sorrisse com amor, pensar na sua educação, trabalhar para elle, accumular-lhe riquezas, fazel o feliz.

E os dias passaram sem intimidades de convivência com Adelina, contactos passageiros, comprimentos banaes e mais nada, de resto andava entretido com os preparativos para passar na Foz a estação balnear O jantar em casa de Fernando, as fulgurações da sumptuosidade que o rodeava, os primeiros contactos do luxo, actuavam intensamente sobre o temperamento impressionavel de Adelina.

Estas revelações da vida nova, que se lhe abria, exerciam sobre ella uma fascinação magnetica, inebriavam-na como uma essencia penetrante que atordoa, sentia-se vibrar toda na expansibilidade opulenta de todas as energias da sua mocidade sedenta, como uma flor dos tropicos que se abre voluptuosamente, vaporando aromas, aos beijos calidos do sol.

No dia seguinte ao do jantar, acordou jubilosa, como se tivera a alma toda banhada em um fluido luminoso, cor de ouro e rosa. . .

Relanceou um olhar de redor, passou em revista a decoração e a mobilia da sua casa, e viuse como que cercada de uma atmosphera de mesquinhez, de insignificância que a vexava e mortificava, e depois toda aquelia mediocridade chata, toda aquelia vulgaridade arida do meio em que vivia contrastava grosseiramente com o luxo de sensações, em que o seu espirito se engolphava.

Não havia tapete nas escadas, o da sala de visitas era barato, de uma trivialidade que lhe bolia com os nervos, o sofá estofado a lã; com as respectivas e symetricas poltronas, tinha uma amarellidão insípida e deslavada que lhe dava enjôos; no tapetinho do sofá, de um tamanho mesquinho, exhibia-se ridiculamente um leão côr de chocolate a fulminar umas olhadellas ferozes de vermelhidão. No centro perfilava-se friamente, com solemnidade lôrpa, a jardineira circular, e em cima do mármore pompeava vaidosamente um candieiro, com deposito de vidro em que transparecia a amarellidao enjoativa e oleosa do petroleo; entre as cadeiras de palhinha, alinhadas com uma solemnidade pretenciosa, perfilavam-se as duas banaes e symetricas consoles de mogno, com jarras de vidro verde coalhado em cima do marmore, mosqueado a cor de rosa, e em cada uma d'ellas bonecos de formato grotesco, com obesidades plethoricas ou magrezas quixotescas, davam largas oscillações ás cabeças, com expressões picarescas, a que o Luiz achava muita graça; nas janellas pendiam cortinas brancas, escorridas, com pregas molles, que davam á sala uma alvura fria e deixavam passar cruamente, como em uma loja, toda a luz externa em um jacto impudico e brutal. Havia em toda aquella sala uma symetria secca, insignificante, que a irritava, tinha um aspecto vulgar, inexpressivo, ignominiosamente burguez, que a escandalisava, como uma physionomia desbotada e estupida com que se implica.

Era tudo obra de Luiz. Revoltou-se contra a mediocridade deprimente da sua habitação; instou com Luiz para fazer uma reforma radical, elle fazia objecções sensatas, já agora a despeza estava feita, ia-se gastar um dinheirão e as larguezas do Antunes não chegavam para tanto.

Mas Adelina foi inexoravel, muito energica, de hoje em diante era-lhe insupportavel a ideia dé receber visitas n'aquella sala, até se envergonhava pelo passado.

A sua preoccupação constante era rodear-se de uma atmosphera de consideração, pairar em uma esphera elevada de importância, ascender a uma altura da qual não enxergasse o ponto terreno, de onde levantou voo, fluctuar em uma região superior, onde só se respiram os aromas estonteadores da vaidade, do orgulho satisfeito, dos prazeres que excitam os sentidos. Os meios pouco lhe importavam, o Antunes não era rico?

Escrever-lhe-hia, o dinheiro appareceria, dinheiro!.. Podia ella porventura pensar em falta de dinheiro? Não fora ella creada n'essa atmosphera dourada, como no ar que se respira? Tinha molhado os labios em uma taça preciosa, com um liquido delicioso e finamente aromatico; queria vêl-a sempre trasbordante, e fartar-se n'aquella abundancia embriagadora, aspirar a longos haustos aquellas fragranoias delicadas das existencias fidalgas. E depois era preciso collocarem--se á altura do meio em que viviam, Margarida não vivia cercada de todos os requintes do luxo?

Porque havia de valer menos do que ella?

E a casa transformou-se, vendeu-se por um preço vil a maior parte da mobilia, pouco se conservou do que havia. Mas a sala de uma amarellidâo enjoada, com o seu arrelioso leão côr de chocolate, essa foi renovada completamente, transformando-se em um ninho, acolchoado de estofo azul e assetinado, com um tapete fôfo, e as porcellanas, crystaes e outros accessorios sumptuosos agglomeraram-se em profusão. O dinheiro veio com effeito, mas acompanhado de conselhos comedidos e prudentes. Comtudo fora insufficiente, a despeza feita excedeu as previsões do orçamento e a generosidade do Antunes, e Luiz viu-se forçado a deixar parte da conta do estofador em aberto, na esperança de a ir saldando paulatinamente.

Agora sim podia vir Margarida, podia receber visitas sem vexame, estava aliviada do pezo d'aquella oppressão burgueza e plebeia, respiravam-se na sua casa uns ares de bom tom, umas scintillações de luxo e elegancia, que resaltavam em reflexos de consideração sobre a sua pessoa.

E refastelava-se com delicia nas suas poltronas macias, com a perna traçada, enterrandose em uma inércia molle, fazendo contracçoes distrahidas com o pé pequenino, obrigando o calcanhar redondinho a sahir do sapato catita, e por desfastio pegava èm um livro. Mas a leitura agora prendia-lhe mediocremente a attenção, trazia a imaginaçaosinha muito occupada e buliçosa, o livro descahia sobre o regaço, e o pensamento vagueava em voos caprichosos e irrequietos.

Pensava em Margarida, no seu viver aristocrático, invejava-a, quizera surprehender-lhe todos os segredinhos da sua vida intima de casada.

Tinha um marido a quem amava, ella! era feliz pela posse d'aquelle sentimento, emquanto que para si o melhor da vida ia passando, os dias iam deslisando, um a um, como os grãos de um relogio de areia, sem saber o que era amar, sem experimentar as commoções da paixão! E comprazia-se a idear na phantasia as scenas da sua felicidade conjugal d'ella, os arrebatamentos delirantes do amor; sentia um exaspero ciumento, uma sobreexcitação que lhe escandecia o sangue, e lhe ateava um desejo intenso, perturbador de exaltações amorosas. Um torpor muito enervante amollentava-a, apetecia os paroxismos das sentimentalidades apaixonadas, sonhava desfallecer, Vencida de um languor inebriante, sob a pressão nervosa e suave de uns braços trementes, que a envolvessem, como um ambiente tépido e perfumado de volupia.

E insensivelmente a imagem de Fernando apparecia-lhe, deleitava-se na sua contemplação.

Era a posse de um marido assim que ambicionava, o seu ideal tomava corpo e vulto nas formas palpaveis do marido de Margarida.

Vinham-lhe grandes curiosidades da sua pessoa, do seu modo de viver, de pensar; recordava o seu timbre de voz, as phrases que mais a impressionaram, reparava em todos os accessorios do seu vestuario, nos botões dos seus punhos, no feitio dos collarinhos, nas cores que usava, no talho do fato, achava tudo perfeito, correcto, sentia uma admiração.

Mas pertencia a outra; eram para outra todas as suas attenções, todas as suas caricias e ternuras, e este pensamento pungia-a cruelmente, como uma injustiça. Porque não se tinham conhecido mais cedo?

E revoltava-se contra esta mystificação da sorte.

Depois um sorriso vago adoçava-lhe a physionomia, brincava nos labios vermelhos, lembrava-se dos olhares, que tinham trocado no magnetismo de uma scintillação sympathica, da pressão nervosa das suas mãos.

Se elle a amasse, a ella?

E o peito dilatava-se-lhe na aspiração inebriante de uma esperança de felicidade.

Mas depois estranhava-o, ultimamente parecia-lhe outro, esquivo, reservado, evitava-a, e de repente uma ideia penetrava-lhe no cerebro, como uma restea de sol em uma sala escura; o semblante fazia-se-lhe sério, com uma expressão de dureza energica; no olhar passava uma fulguração, como um relampago, os olhos, com uma leve rugasinha entre as sobrancelhas, pareciam mais negros na profundidade luminosa de um pensamento em que se concentrava, e davam ao seu semblante uma expressão de decisão e desafio.

XV O verão ia adiantado, o sol escaldava, cahindo nas pedras largas dos passeios com reflexos faiscantes, o mac-dam desfazia-se em um pó subtil, impalpável, que o vento leste levantava branqueando tudo; espalhava-se no espaço uma nevoa muito transparente, e os tons quentes da profundidade azul viam-se embaciados, atravez d'esta diaphaneidade, na sua radiação ardente; respirava-se uma atmosphera empoeirada, suffocante; as arvores com as folhagens polvilhadas tinham ura aspecto de seccura e elanguescimento; o movimento da cidade tinha a apparencia de uma frouxidão indolente, arrastada; casas fechadas apresentavam perspectivas silenciosas, dormentes; familias retiravam-se para o campo, para a beira mar, os. transeuntes encalmados passavam preguiçosamente, rentes com as casas pelas ruas desertas, engolphadas em torpores quentes e modorrentos. Apeteciam frescuras ensombradas, sestas regaladas debaixo das ramarias ciciantes, embaladas ao rythmo das fontes que cantam sonoramente, ou dos regatos que correm murmurosos; pensava-se em banhos frios, tonificantes, em refrigerios á beira-mar, brisas salgadas, perfumes acres que no3 lambem de salsugem marinha.

Adelina fazia preparativos para passar na Foz a estação balnear. Andava muito alvorotada, toda embevecida nas perspectivas d'esta sensação nova. Fazia projectos, deliciava se em devanear cousinhas, e tinha uns contentamentos alvoroçados, pensando nos ruidos alegres da praia pela manhã, e no banho, vendo-se entrar pelo mar dentro, com as tranças fartas, a cahir pelos hombros, onduladas luminosamente ao sol, vinha depois a sensação da agua que trepa, que arripia deliciosamente, e, com aquella impressão percorria-lhe as veias um estremecimento, instinctivamente a cabeça inclinava-se levemente para traz com um movimento flexuoso de cysne, o contorno firme, correcto do pescoço resahia, e ella sentia-se envolvida nas correntes magneticas de olhares admirativos.

Depois espanejavam-se toilettes frescas, com muita novidade, no Passeio Alegre, e para cumulo de contentamento fallava-se de uma assemblêa.

Como seria bom! como se divertiria! E uma nuvem de projectosinhos alegres, que lhe davam tonturas, esvoaçavam-lhe de redor da cabecinha.

A principio os aspectos novos da vida de praia tiveram para ella um grande encanto, mas, depois do enthusiasmo das primeiras impressões, com o habito, iam perdendo o brilho da seducçao, desbotavam-se como um movei que se embacia com o tempo e com o uso, e a sua vida cahia na insipidez de uma regularidade de hábitos, que lhe davam fastio; aspirava ao movimento, á animação, ás distraeções repetidas, e via-se cercada de um ambiente que só vaporava uma monotonia que lhe dava bocejos.

-- Que semsaboria! irra!. . . Quem havia de dizel-o! Vista de longe, com a fama que a Foz tinha. .. Tirante a primeira impressão que differença havia da sua aldeia? Ah, que era de suffocarl.. . E a assemblêa? Qual assemblêa. . . ninguem falla n'isso.

Uma pasmaceira. . .

E sentia um aborrimento que se apossava d'ella, como um narcotico; o tédio invadia-a e fazia muito silenciosamente a sua teia de aranha, que alarga pouco a pouco e se prende com a sua opacidade a todas as protuberâncias do cerebro; obscurecia-lhe a alma, como um nevoeiro espesso que encobre o infinito azul. No exterior nada que a satisfizesse, no intimo o vacuo, e sentia-se desconsolada, devorada de um mal-estar, balouçando-se ao acaso na vida, sem um interesse forte que lh'a dirigisse, que a estimulasse, como um barco sem leme fluctuando á mercê das ondas. E insensivelmente suspirava pelas sensações intensamente amorosas, que fazem bater o coração de felicidade.

O espirito cahia-lhe em uma prostração, mas no meio d'este marasmo intellectual um pensamento fixo brilhava, como uma braza em uma escuridão, elevava-se como um fumo vaporado de um brazeiro, e a phantasia seguia-o na sua ascenção, á semelhança de um extasi que se eleva no desdobramento de um fio de melodia deliciosa.

-- E Fernando hein?. .. alguma olhadella furtiva, uns cumprimentos rapidos, umas phrases frias. . . e nada mais! E eu que cheguei a persuadir-me que pensava em mim. .. Mas é por causa d'ella, decedidamente é por causa d'ella!

E esta ideia irritava-a, exasperava-a, amarfanhava-lhe a vaidade beliscada.

Mas um dia, depois de sahir do banho, ouviu dizer na barraca que a assemblêa ia abrirse, teve um estremecimento que lhe dava um arripio na pelle. Sorria, o pensamento perdia-se em phantasias, e os braços pareciam acompanhar com movimentos voluptuosos o doudejar do pensamento, enxugando, com a indolencia de uma satisfação muito lenta, a cutis excitada pela reacção mordente da agua salgada, como se uma tintura cor de rosa muito diluida se espalhasse, dando ao corpo uns tons quentes.

Alguns dias depois abria-se a casa da assemblêa com a primeira soirée. Havia uma claridade embaciada, grupos de homens, no meio da sala, conversavam com expansibilidade jovial, outros encostavam-se á umbreira das portas imperturbáveis, immoveis, com ares macambuzios, e olhares vasios e opacos; de redor faiscavam scintillações de cores, de leques que arfavam, de cabeças que se meneavam.

Arthur arqueava-se, muito quebrado pela cintura, diante das senhoras, e, enxergando uma cadeira vasia, foi occupal-a, afofando-se entre os vestidos, fallava com vivacidade, as senhoras estalavam de riso com as pilhérias que lhe saltavam da bocca scintillantes, como rolhas pulando dos gargalos de garrafas de Champagne, havia contorsoes de hilaridade e os leques escondiam as boccas arreganhadas pelo riso.

Mas sentiu se no teclado do piano uma cascalhada de notas ruidosas, de um convite impulsivo á dansa em compasso de quadrilha; a sala tornara-se mais buliçosa, as senhoras passeavam pelo braço dos homens com requebros languidos, iam occupando os seus lugares, a quadrilha organisava-se. O piano cantou a Grã-Duqueza com um brio hilariante entre as vibrações de um agudo metalico do cornetim jovial; os homens partiram inteiriços, com arreganho, e interpretações caprichosas de compasso; estacavam em recuos; investiam de novo, baralhavam-se, faziam diante das senhoras reverencias largas, profundas, com uma seriedade comica, e ellas respondiam muito dobradas com uma gentileza muito mesureira.

Adelina dansava com o Sepulveda, tinha no semblante uma radiação febril e no corpo os movimentos de iima vivacidade nervosa, com quebras languidas de cintura; nos olhos um fulgor estranho, no corpo umas flexuosidades langurosas; fallava com doçuras de sorrisos muito amaveis, e exagerava as reverencias, ao terminar das marcas, com recuos muito arrastados.

Fernando era vis-à-vis, não cessava de o fitar com os seus grandes olhos negros, muito afogados no vago fluido de um enternecimento.

Elle sentia a impressão d'aquelle olhar que o perturbava, que o fazia nervoso, que lhe descia ao fundo da alma como uma corrente magnética, e lhe dava uma vibração estranha em todo o seu ser, despertando sensações deliciosas, desconhecidas, que lá estavam adormecidas.

No meio da quadrilha as suas mãos tocaram-se, aquelle contacto deu-lhe a sensação de uma pressão rapida, suave, que lhe poz nos nervos uma vibraçãosinha de muito deleite, e o olhar d'ella, avelludado, envolvia-o como uma caricia cheia de voluptuosidade.

Depois da quadrilha fallaram, a conversação deslisou sobre banalidades de salão, o rosto de Adelina animava se na radiação de uma grande vivacidade.

-- E a nossa walsa? Então já se esquecia?

Na verdade isso é muito amavel, muito lisongeiro para mim -- Adelina ria com um riso reprehensivo, o olhar fixava-se n'elle com intensidade interrogadora, profunda, e o leque tinha movimentos irrequietos, nervosos.

Fernando protestava, não, que não se tinha esquecido, estava a pensar n'isso, já tencionava reclamar o cumprimento da promessa.

Mas era tarde, a primeira walsa já não podia ser, estava compromettida com o Sepulveda.

Tambem a culpa era d'elle, porque não viera mais cedo?

-- O Sepulveda.. . sempre o asno do Sepulveda!... -- pensava.

E mau grado vinham-lhe uns impulsos hostis contra o Arthur, sentia alguma cousa de indefinivel que lhe dava uma impressão desagradavel, um desprazimento que lhe alterava o bom humor; que o irritava, que lhe dava uma sensação mordente no coração.

O ar aquecido, viciado, tinha uma apparencia pesada e grossa, nas physionomias transparecia uma excitação afogueada. Um criado veio quebrar alguns vidros na janella, que ficava atraz de Adelina, voltou-se assustada, com o riso de um estremecimento nervoso.

Fulgia um luar vivissimo, que dava ao fluido atmospherico uns tons azulados, muito luminosos, como um crystal opalisado; nas vidraças resudadas cahiam chapadas de uma brancura refulgentissima, que se coava como atravez de um vidro fosco. Pelos vidros quebrados entrou uma columna de ar, que passou pelas faces quentes de Adelina, como a suavidade de uma caricia, e, dando á sua tez, que tinha as doçuras flacidas e macias do velludo, uma sensação de frescura deleitosa, agitou com um sopro de vida os cabellos, que lhe cahiam sobre a testa na folia de um frisadinho de muita leveza. Sentia-se bem n'este ambiente fulgurante, a vida apparecia-lhe n'aquelle momento alegre, luminosa, e a alma abria-se sensualmente ás delicadezas do sentimento, aos perfumes acres e mysteriosos das sensações fortes, dos gosos intensos, como que dilatando-se em um extasi aos accentos dulcificantes de uma melodia apaixonada.

Sujeitos de pé fallavam com as senhoras curvando-se, outros passeavam de vagar com ares plenos, ou conversavam; um criado com um prato na mao espalhava stearina raspada; a corparatura de Fernando sobresahia entre a mediocridade das estaturas communs, engoiadas; Luiz, muito inteiriçado pelo habito de esticar o corpo pequenino, fallava de papo, com entono sonoro; em volta d'elle havia risos equivocos. Adelina fitava Fernando de quando em quando, insensivelmente a vista descahia para o marido, e via os risinhos quisilentos, com que eram acolhidas as suas palavras.

-- Riem-se d'elle!.. que imbecil!

Os criados, curvados, entraram com os taboleiros do serviço, e logo depois a sala parecia radiar mais luz, a animação pullulou, as dansas eram mais aviventadas de movimento, as senhoras faziam marcas mais saltitantes, havia mais electricidade no cruzamento dos raios visuaes.

Um signal de walsa soou convidativo, vibrante, de um abalo impulsivo, ruidoso. Pouco depois os braços punham-se em arco, as cinturas enlaçavam-se, e os corpos dos homens, com attitudes arrebitadas em saliencias arrevezadas, esconsas, lançavam-se no impulso do movimento rodopiante. As caudas impellidas na vertigem faziam largos leques; os vestidos adherentes, repuxados no impeto do rodopio, contornavam as linhas do corpo, como tunicas leves, fluctuantes, batidas de uma ventania, collando-se ás fórmas corporeas e accentuando-lhes a verdade dos contornos; os pesinhos appareciam no giro frenetico, roçando o soalho com a leveza da lavandisca, na elasticidade impulsora das articulações.

Fernando via walsar, Adelina passava suspensa do hombro de Arthur com uma denguice reclinada; sentia-lhe na passagem rapida o olhar, que roçava por elle como uma chamma fugaz que lhe aquecesse as faces; via por vezes os joelhos tocarem-se, e aquelle contacto communicava-se-lhe na corrente magnetica de um estremecimento; madeixas de cabello em caracoes, onde-antes, davam uma passageira emanação perfumada dos seus cabellos; á cria do vestido appareciam os lampejos fascinantes de um rosado lácteo da fina meia de seda, como uma negaça acirrante da sua nudez, a que dava realce o sapatinho de setim preto, arqueando-se no impulso frenetico, pulante, do rythmo da walsa. Pararam, Adelina estava offegante, as narinas levemente dilatadas, um brilhosinho metallico no olhar, nas faces os tons quentes de um sangue vivo. Tinha o alvoroço das respirações acceleradas, mas não o exhaurimento da fadiga; as evoluções da dansa eram apenas um estimulo que lhe aguihoava as opulencias inexhauriveis do temperamento; o sangue inflammado ateava novas energias, e ella sentia um desejo ardente, indomavel, de se lançar delirantemente nos ardimentos d'aquelle movimento excitante. E era com um redobramento de ardor que recomeçava o giro inebriante.

Fernando tinha uma pallidez no rosto, e as veias em fogo davam-lhe um arfar accelerado ao coração.

Pararam perto d'elle, os seus olhares encontraram-se, e de repente Adelina entrou de explicar ao Sepulveda que tinha promettido a Fernando a primeira walsa, tinha faltado ao seu compromisso, custava-lhe, poderia ainda dar duas voltas com elle, ficava assim tudo remediado.

Da licença, sim?.. -- E com um sorriso muito assucarado foi largando o braço de Arthur.

E Adelina cahiu nos braços de Fernando.

Foram girando, girando, e elle via o seu peito arfar em ondulações brancas, macias; o pó de arroz que pousava sobre a sua pelle, como um pollen sobre azas assetinadas dc uma borboleta, exhalava um aroma rápido, suave, a violeta; sentia a ondulaçao do seu corpo, que denunciava a flexibilidade macia de uma nutrição tenra, malleavel, sem as abundancias das carnações fortes, que alteram a harmonia das linhas e a graça dos contornos; as luzes faziam-lhe de redor um circulo luminoso, fascinante; o soalho rodopiava como um disco de madeira; o contacto das mãos communicava calor na doçura de uma pressão fremente. Adelina sentia-se penetrada de uma languidez palpitante, e parou com um desfallecimento no corpo e uma tonturasinha na vista, recuando na vacillação de uns passos saltitantes, amparada no braço de Fernando.

A walsa terminava. Elle reconduziu Adelina ao seu lugar, agora pareciam receiosos de se olhar, iam calados. E Fernando sentia um atordoamento, as fontes latejavam lhe, tinha nos ouvidos um zumbido, a atmosphera calida da sala suffocava-o, sentia escapar-se-lhe a consciencia de si mesmo, uvna força impulsora, imperiosa, arrastava-o inconscientemente para uma vertigem.

Sahiu da saia, precisava de ar, veio para a rua. A lua, como um globo de gelo, espalhava na tonalidade geral de uma noute luminosa e azulejada uma d'estas frescuras penetrantes que se sentem á beira-mar até nas noutes mais encalmadas, em pleno verão, e refregirava-lhe o sangue acceso; aquella pallidez fulgurosa dava ao gaz dos candieiros, no Passeio Alegre, os tons desbotados de uma cor alaranjada e fria; as arvores com a folhagem precocemente rareada, c crestada da aragem salgada, alongavam desmedidamente umas sombras tristes sobre a brancura lavada do mac dam; havia um largo silencio, só o mar sussurrava com uma modorra somnolenta; faiscas de luar cahiam em alguma claraboia, na areia da rua, no mar amplo, ao longe, como um grande cetáceo morto, sobrenadando á superfície das ondas, coberto de animalculos phosphorescentes que o devorassem. Havia n'esta immensa placidez fria e melancholica um refrigerio calmante, mas Fernando tinha o cerebro em lava.

-- O que se passava de extraordinario dentro de si! Que estranhas sensações, que elle nunca suspeitara, cuja influencia perturbadora nunca experimentara, se levantavam, escravisadoras, do fundo do seu ser, como uma maré descommunal que sobe!

Passeou por muito tempo agitado, com a frescura da noute arripiou-se de frio, e a cabeça estava sempre escandecida. As scintillaçoes do sarau brilhavam, além, nas vidraças resudadas, as vibrações da musica chegavam até elle com uns pruridos alliciadores, uma fascinação atrahia-o.

Agora espalhava-se na atmosphera uma névoa muito transparente, como um veo diaphano, luminoso, que se corresse pelo firmamento, e désse ao luar intenso uma meiguice mais macia e esfumada, e á noute faiscante uma gelidez mais triste e scismadora.

Voltou á casa da assembléa, o ambiente quente envolveu-o como um banho tepido e perfumado, que enerva de torpor sensual. Adelina fitou-o com um olhar interrogador, ancioso. Mas a sala já estava mais vasia, olhou para sua mulher com um olhar de distracçao tonta, e ella descuidosa, com a sua dignidade serena, relanceava para tudo um olhar de mansidáo, límpido, crystallino. Viu Fernando, fez-lhe signal, com um sorriso.

-- Vamos, sim ?. . Sahiste tanto tempo da sala, estavas aborrecido? Também eu. . .

E levantou-se, sahiu pelo braço d'elle. Iam a pé, moravam perto.

-- Que esplendida noute! mas fresquinha.

Onde estiveste todo este tempo ? Já estava anciosa que viesses. . .

E aconchegava-se na capa branca com um arripio.

-- Tinha uma dor de cabeça, não se respirava lá dentro, vim tomar ar.

-- Então porque não disseste logo?

-- Não foi nada, estou melhor, já passou. E podias estar bem, a soirée estava animada. . .

-- Estar bem, quando tu o não estás! Muito obrigada pela amabilidade...--Interrompeu com um tom de ironia reprehensiva.

-- Se fosse cousa de maior... Mas é umabagatella.. . Nem vale a pena fallar n'isso.

Ainda assim, é uma tolice quando se está indisposto. E em casa não se estava melhor?

Nem que eu morresse por isto... Mas está mesmo frio -- E com um arripio chegava-se para o marido apertando-lhe o braço.

A casa! Mas pela primeira vez em sua vida, a vista descahia-lhe com um amortecimento inerte sobre as perspectivas do conforto alegre e caseiro!

Concentrava-se n'este pensamento, e viu com espanto que esta tecla não vibrava no seu coração, como uma nota falha que não dá o som sollicitado, ainda que muito a firam.

Sentia-se envolvido de um ambiente gelado, e percorria os aspectos do seu passado com um olhar morno e estupido.

Não podia dormir, as impressões da noute dardejavam sobre elle os reflexos faiscantes de uma insomnia escaldante, a cama espicaçava-o, revolvia-se no esbrazeamento de uma febre, virava-se, revirava-se de vagar, com muita precaução para não acordar Margarida; a pelle borbulhavalhe um humedecimento quente, tinha os pés gelados, a cabeça em braza, os cabellos, em desalinho, empastavam-se na testa com o suor. Sentouse na cama, circumvagou um olhar idiota, e com o cotovelo apoiado á almofada, a mão na testa, engolphou-se nos seus pensamentos.

Um movel estalou na soturnidade dormente da noute, teve um sobresalto, aquelle estalido sêcco echoou-lhe no cerebro com um fragor troante.

Ergueu a cabeça, relanceou o olhar vagamente dilatado, embaciado, permanecia tudo na immobilidade de uma penumbra. O Christo de marfim continuava a pender da cruz, livido, macerado, e sobre a toilette uma bailarina de biscuit requebrava-se em passo de dansa, com um sorriso maganão para o amado, que de fronte a namoriscava com ura requebro de cintura e uma pombinha na mão.

A vista descahiu-lhe sobre o rosto de Margarida adormecida; dormia muito socegada com uma respiração suave, quasi imperceptivel, tinha uma brancura pallida de cera, as compridas pestanas faziam um lequesinho, como que feito de pequeninas pennas negras e sedosas, uma das mãos cahia inerte, cora o torpor do somno, sobre o peito, confundindo-se com as alvuras finas do linho, os lábios descorados, como um nacar muito desbotado, entreabertos pareciam sorrir; dir-sehia morta! Morta!.. E sentiu um arrepio pungente, de muita desconsolação. ..

A lamparina mortiça alargava umas grandes sombras na prostração calada do quarto, só o relogio dava o som fino e febril do seu tic-tac apressado, e um rato roia no forro com um rangido de serra persistente e irritante.

Olhava para Margarida com um olhar apavorado, os lábios entreabriam-se mais, tinha o sorriso da morte de uma santa, resignadamente serena, que exhalou o ultimo suspiro na contemplação das bemaventuranças celestes; sentiu nos olhos um ardor amargo, uma lagrima rolou calida pelas faces, e cahiu na almofada fazendo uma nodoa larga.

Irresistivelmente, como impellido por uma força occulta, approximou o rosto de Margarida, e de vagar, muito de levè, beijou-a com um roçar da bocca muito suave, respeitoso.

Uma doçura calmante descia sobre elle, penetrava-o; sentiu um entorpecimento invadil-o. A lamparina bruxuleou, e apagou-se nas convulsões de umas tremuras frouxamente relampagueadas, a escuridão suffocou-o, como se os longos crepes de uma igreja, preparada para um enterro, cahissem sobre elle abafando-o. Mas um cansaço somnolento prostrou-o em um somno agitado.

Teve sonhos febricitantes. Uma claridade muito viva brilhava, offuscava-o, Adelina walsava com Arthur, madeixas de cabello roçavam-lhe pelo rosto, deixando um rasto de perfume, a cauda do vestido redemoinhava, levantava-se acima dos pés pequeninos, doudejantes; no rodopio frenetico apparecia um começo de perna bem torneada; as saias arrepanhavam-se ao corpo, adelgaçavam-se como gazes, faziam revelações de uma mudez fascinante. Aquellas saias transparentes approximavam-se, roçavam por elle, affastavam-se e no meio d'aquelle turbilhão, que deixava atraz de si uma emanação d'aquella nudez semi-velada, os olhos de Adelina fitavam-no com um olhar cheio de amoravel voluptuosidade. Quiz arrancal-a dos braços de Arthur, não pôde mover-se, uma mão de ferro, invisível, segurava-o. E elles walsavam sempre no meio de um fluido luminoso, dourado; distanciavam-se, Adelina sorria-lhe de longe; fez um esforço immenso, alcançou-os; com um murro vigoroso estalelou Arthur no chão, e Adelina cahiu-lhe nos braços com um desfallecimento. Ouviu um murmurio de reprovação, e um grito lacerante, seguido do baque de um corpo que eahe, mas sem olharem para traz foram fugindo no frenesi vertiginoso de uma walsa phantastica; eram perseguidos, fugiam, fugiam sempre, muito enlaçados, e no impeto d'aquelle volteio, a um tempo, deliciante e doloroso, sentiram-se voar, cortaram o ar, affagados de uma aragem tépida, embalsamada, e cahiram no seio macio de uma nuvem purpureada, aquecida, como um ninho, por um raio do sol poente. E rolaram na immensidão em volúpias de um deleite infinito, muito doce como o azul em que se engolphavam. Iam levados para alguma deliciosa ilha do mar Egeo, onde a primavera é eterna, um paiz de amor, onde a natureza esplendida se abre em urnas de aromas, onde, debaixo dos laranjaes em flor, á luz morna dos luares tépidos, brancuras de braços se entrelaçam, ouvindo-se suspirar flebilmente os soluços suffocados da paixão.

E elle via Adelina vestida com uma tunica de gaze assetinada, os cabellos soltos, entretecidos de pampanos, o luar filtrava-se-lhe pela transparencia da tunica, idealisava lhe as formas primorosas; bebiam vinho de Lesbos em taças douradas; o collar de uns braços roliços envolvia-o, cahindo-lhe sobre os hombros com um peso cheio de desfallecimentos.

Mas de repente um vulto esbranquiçado, banhado de uma luz espectral, baixou do alto, immovel, hirto, sobre rolos de nuvens, que se desdobravam e cahiam sobre elles, como um lençol de neve que os enregelava; desceu do pedestal de nuvens, caminhou para elle com uma subtilidade de sombra, coberta de um comprido véo, levando na mão um coração gotejando sangue. O véo cahiu, e Fernando largou um grito de terror.

Acordou de sobresalto, sentou-se na cama espavorido.

-- O que é... que tens? -- Interrogou Margarida, acordando alvoroçada, fitando-o com olhares espantados.

-- Nada.. não é nada... um sonho. .. um pezadelo... que disparate! -- E passando pelos olhos o reverso da mão, queria apparentar um aspecto de serenidade e indifferença, e sahia-lhe da physionomia um ar de constrangimento aparvalhado.

XVI Passados alguns dias o Palacio de Crystal ostentava um aspecto prazenteiro e ruidoso.

Tocava-se no fim de Agosto, o ar encalmado tinha uma apparencia metallisada, uma immobilidade escandecente, secca, que suffocava.

Havia uma exposição hortícola. Plantas, arbustos, flores, grupavam-se decorativamente na emulação presumpçosa das suas folhagens e flores flamejantes, como caudas de pavão que se desdobram vaidosamente; a nave central marchetava-se nos esmaltes de um jardim feerico; plantas exoticas acantonavam se em grupos ornamentaes; canteiros estrellados contornavam-se nos matizes de flores variegadas; havia no recinto um movimento colorido, vivificador, de toilettes vistosas, de mistura com os reflexos iriados, brilhantes, das flores e das folhagens; vinham do alto uns lampejos phantasiosos dos vidros de côres, como reflexos das vidraças de uma cathedral gothica; a multidão enxameava na vasta galeria; um susurro forte casava-se com o som murmuroso e cantante da agua do chafariz central, repuxando e cahindo depois gotejante, sonora, na larga taça, onde dous cysnes pretos aprumavam impertuvavelmente a sua flexuosidade desdenhosa.

Começava-se a sahir do edificio. Margarida, Fernando, Adelina, D. Guiomar tinham-se juntado á sahida.

Do lado do nascente apparecera um ponto negro, crescia, fazia uma nodoa larga no ethcreo azul, que para este lado ia cahindo na uniformidade da tonalidade esbranquiçada, que vem ao declinar do dia, ia subindo no horisonte, tomava proporções collossaes, como vampiro enorme e phantastico, que fosse avançando e cobrindo o firmamento com as immensas azas negras. A nuvem ia rolando, desdobrava-se desmedidamente, avassallando por fim o céu com uma celeridade galopante; o sol descia no horisonte opposto. Com uma rapidez inesperada, fulminante, viu-se a abobada celeste bipartida em dous hemispherios, de um lado uma espessura tenebrosa, do outro uma crystallinidade luminosa e azul. Um ribombo longinquo bramio; a sinuosidade de uma phosphoroscencia viva cortou, com um deslumbramento, a grossa opacidade; gotas de chuva, rareadas, cahiram como pezados grãos de chumbo. A tempestade colhia de improviso os passeantes, instantaneamente nuvens enovelladas, muito carregadas de electricidade, rolando precipitosamente, barraram de negro a grande cupula do céu, e estes negrumes túmidos pareciam ceder ao peso do proprio bojo, esmagando a terra.

Os primeiros aguaceiros preludiavam a borrasca, um estampido mais forte estalou retumbrante, arrastando-se temerosamente no echo prolongado de um regougamento colerico; os passeantes desarvoraram espavoridos em demanda de refugio. Adelina correu na direcção do chalet, Fernando seguiu-a instinctivamente, os outros largaram desordenadamente na direcção do Palacio.

Os dous acharam-se sós debaixo da varanda alpendrada da casinha filagranada; permaneceram silenciosos, enleados. A tempestade desencadeava-se medonhamente, lufadas uivaram, as arvores contorceram-se nas convulsões raivosas de um desespero lacoontico, no desgrenhamento de uma dansa macabra. A chuva, na violencia de um impulso sibilante, fustigava-os de frente; refugiaramse do lado opposto, ao poente.

Clarões faiscantes, de uma luz espectral, relampaguearam fugazmente; trovões rolaram, atropellaram-se com fracasso medonho, como titans nas alturas aos trambolhões em escadaria collossal; sulcos luminosos, offuscantes rachavam tortuosamente, como gumes diamantinos em fogo, a espressura negra.

Adelina estava pallida, amedrontada, como uma avesinha tolhida de susto, Fernando impressionado com a imponência do espectaculo d'esta grandiosa desordem, dominado de um forte sobresalto, vendo-se só com Adelina, sentia um abalo vibrante em todo o seu ser e uma excitação nos nervos.

Um deslumbramento illuminou o ar negro e logo uma descarga electrica explosiu, como o estrondo de um cataclismo; um abalo fulminante despedaçou a atmosphera, sacudindo-a de um estremeção estupificante, irresistivel, como se do alto viesse um desabamento cyclopico de monstruosos edifícios. Um estremecimento de pavor sacudiu violentamente o corpo de Adelina, e, com um grito de terror, livida, machinalmente aconchegou-se de Fernando. Elle insensivelmente com um movimento protector, inconsciente, apertava-a carinhosamente nos braços, como se afaga uma pomba tremula de susto.

Pela vista de Adelina passou um esvahimento, levou a mão aos olhos, uma frouxidão entorpecia-lhe o corpo, que descahiu amollentado no enervamento de uma voluptuosidade, Fernando sentia o contacto morno do seu corpo, a atmosphera saturada de electricidade penetrava-o, todo elle vibrava com estes contactos perturbadores.

Adelina recobrava-se do susto, lentamente tirava as mãos dos olhos, ergueu a cabeça com um movimento muito quebrado, e uma languidez humida na vista, os seus olhares encontraram-se, envolveram-se longamente nos efluvios de uma attracção irresistivel, que dá vertigens, e, no impeto de um tacito accordo, os labios collaram-se doidamente no extasi apaixonado de um beijo profundo, inebriante, de uma doçura infinita. . .

A tempestade declinava, o céu começava a aclarar pelo lado do poente. As nuvens opacas, coma uma fumarada grossa de chaminé de fabrica, adelgaçavam-se, desfaziam-se, corriam ao longo do horisonte, como pinceladas gigantescas, compridas fachas de uma ardência fulva de ouro; havia um mixto de luz e negruras, esparzindo ura colorido estranho, que se esbatia melancholicamente pela paisagem; o rio, sorvendo a côr plumbea do céu e recebendo os reflexos do poente, radiados em laivos de ouro e luz, semelhava uma grande lamina de cobre ennegrecido.

A atmosphera serenava, Adelina e Fernando sahiam do chalet. Margarida e D. Gruiomar vinham ao mesmo tempo do Palacio, procuravam-se, encontraram-se e as perguntas, os commentarios esfusiaram com aquella precepitação cheia de vivacidade nervosa, incutida pelo alivio de uma oppressão que nos suffocou, e pela excitabilidade de uma commoçao.

-- Onde tinham estado? Porque não tinham vindo para o Palacio? Que cuidado lhes deram!

-- Tinham-se refugiado no chalet, era o que estava mais proximo d'elles, n'aquelle momento de confusão, com a atrapalhação nem viram para onde iam os outros, nao reflectiram, foi o primeiro impulso.

--Ai! que horror! Mas passou, deixal-a ir, que alivio! -- E Adelina ria com uma jovialidade estouvada, tinha nas maçãs do rosto os tons quentes de um colorido vivo, e nos olhos a radiação de um pontinho luminoso.

No rosto de Fernando apparecia uma vaga pallidez e a expressão de uma abstração estranha, preoccupada.

D. Gruiomar relanceava os olhos de um para outro, com uma perscrutação aguda, atravez da luneta assestada com um ar desaforado; a bocca enrugava-se-lhe com uma satisfação maligna, ironica; o olfato farejador arrugava-lhe o nariz arrebitado; havia em toda a sua physionomia uma expressão de curiosidades irritadas, que denunciavam uma lucta comica de pudores e desejos revoltados.

Margarida recordava peripecias humoristicas d'aquella debandada geral, e sorria com a limpida serenidade dos seus sorrisos francos e meigos; sobre os tons lácteos da sua pelle mimosa espalhavam-se ainda uns vestígios de pallidez assustada, como os restos de nuvens na declinação do céo borrascoso; o seu rosto apparecia atravez da gaze de seda do véo, como os brancos luares macios e plácidos por traz de uma nevoa muito vaporosa e diaphana, o brilho dos seus bellos olhos garços sahia luminosa e leal atravez das suavidades da seda transparente, dando-lhe ao semblante uma expressão de desafogo, e contentamento desopprfmido, ao ouvir a tempestade regougar as suas coleras ao longe, como uma fera que na sua retirada forçada ainda arreganha os dentes raivosa, voltando-se para traz.

O poente coloria-se cada vez mais, desapparecera o calor abafadiço, que antes da trovoada opprimia e paralysava a atmosphera; respirava-se uma frescura suave, leve; uma nebrina ligeira espalhava-se para o lado do rio, esfumava a paisagem com muita diaphaneidade; o disco solar encoberto ia rasgando o cortinado de nuvens franjadas de ouro e carmezim; sobre o horisonte largamente purpureado projectavam-se uns clarões, como reflexos de um grande incendio, e a nevoa tingida de uma côr rosada dava ao panorama um aspecto phantastico.

-- Como está lindo o poente! Que formoso panorama! Vejam que bei lo effeito! -- E Margarida parando mergulhava com enlevo a vista, suavemente azul, na perspectiva mimosa e colorida da paisagem.

-- Um encanto! -- respondeu D. Guiomar -- mas deve ser mais bonita acolá. . . onde se esconderam os nossos fugitivos... E se nós fossemos admiraras bellezas d'este poente... d'alli. -- A maldadesinha de um sorriso franzia-lhe a bocca, e deixava cahir lentamente estas palavras com um fio de voz adocicadamente zombeteira e esganiçada.

Fernando empallideceu, teve vontade de estrangular aquella pequena mulher esgalgada, a extravasar de fél.

Dias depois Margarida passarinhava em casa, alegre como um serzinho. Trajava um vestido de fustão branco com laços azues, tinha nos olhos um brilho desusado, e o rosto, a cuja brancura assetinada davam realce as alvuras do vestido, animava-se de uns tons levemente rosados, traduzindo o alvoroço de uma intima alegria; as veiasinhas nas fontes e nas extremas das faces transpareciam na pelle fina com um azul mais vivo, como um mármore a latejar de vida; sorria sósinha de vez em quando, fazendo duas covinhas aos cantos da bocca, como se estivesse a responder a um pensamento intimo, alegre, que a acariciava muito fagueiramente.

Foi á sala de jantar. A mesa estava posta, havia mais flores do que era costume, em uma garrafa de crystal brilhava, como um enorme topázio liquescido em uma fusão de ouro, um Porto muito velho, reservado por Fernando, especialmente para os casos solemnes; sentia-se um aroma a baunilha que se misturava com as suavidades fragrantes dos pecegos corados em plena maturação; atravez das gelosias descidas, que davam á sala urna luz macia e um calor temperado, penetrava de quando em quando o hálito fresco e salgado do mar.

Respirava-se alli um ar de saude, d'envolta com as frescuras salinas, com todos os efluvios suaves do bem-estar caseiro.

Havia só dous talheres, mas a mesa estava posta como para um dia extraordinario de festa.

Margarida passava uma ultima revista ao arranjo da mesa, ageitou as flores com os seus bellos dedos brancos e afilados; toda cheia de uma agilidade vivaz foi ao lugar de Fernando, pousou uma flor sobre o guardanapo, que se erguia pomposamente em dobras complicadas, como um pão de assucar candi phantasioso; deu as ultimas ordens ao escudeiro, sahiu contente da sala, e foi esperar Fernando, tranquillamente sentada com um livro na mão, junto á janella.

O céu arredondava a sua immensa abobada na profundeza infinita da sua serenidade toda penetrada de sol; o mar desdobrava-se largo e calmo, mirando-se voluptuosamente murmuroso no anil das alturas; uma brisa tranquilla do norte arripiava as vagas em brandas ondulações, faiscantes aos raios do calido sol, como se aquellas palpitações ciciantes, luminosas, fossem os potentes latejos da sua vida exuberante, ou os suspiros amorosos d'aquelle titanico gigante, cahido na protração de uma voluptuosidade muito apaixonada. Os arripios fervidos da maré, que se espreguiça na areia quente e macia, chegavam aos ouvidos de Margarida na suavidade de um sussurro amavel; a aragem, impregnada dos aromas dos sargaços, agitavam-lhe na cabeça os cabellinhos rebeldes; uma gaivota cortava o ar em largos voos, descia fulminantemente, roçava o peito soffrego pela superficie faiscante com impaciencias gulosas de milhafre, subia outra vez e rebolava-se deleitosamente na doçura do azul quente do céu; na crystallinidade d'aquelle dia glorioso o ar parecia ter uma vibração cantante, que dava uma percussão mais forte a todos os sons, o marulho das ondas tinha uma sonoridade mais alegre; as verduras nas collinas sobranceiras ao rio accentuavam-se com vigor mais escuro na nitidez diaphana e profunda da atmosphera; os barcos de pesca, que velejavam ao largo tinham brancuras reluzentes. Margarida fitava a grande amplidão serena e cheia de luz, e a sua alma dilatava-se aos bafejos de um pensamento que a transportava de alegria, comprazendo-se em banhar-se no céu azul da sua ventura, tranquillo e formoso, como aquelle espaço por onde agora a sua vista voava, e que parecia muito repousado na doçura luminosa de uma voluptuosa felicidade pantheista.

Um vapor fazia-se ao largo, deixando uma fumarada espessa, subindo em rolos que. se desfaziam no espaço livre, e o pensamento de Margarida como que se enroscava nas espiraes d'aquelle fumo e vagueava na transparencia etherea.

A campainha retiniu. Margarida accordou do seu enlevo, estremeceu sorrindo.

Fernando entrou, trazia nos modos os geitos de um arremesso desusado, e na physionomia um ar, uma expressão estranha, indefinível. Margarida foi-lhe ao encontro com uma alegria acariciante.

-- Venho esbofado de calor -- dizia -- mas trago um apetite... se nós fossemos jantar? -- E beijou Margarida na testa rapidamente, como quem tem pressa, descalçando as luvas com precipitação, um tanto atarantado.

-- Vieste hoje mais tardinho -- E passando-lhe os braços em volta do pescoço, firmava-os sobre os hombros, deixando-se cahir em uma attitude quebrada, e sorrindo fitava n'elle um olhar demorado de uma scintillação magnetica e feliz.

-- O correio demorou-me hoje mais no escriptorio -- E sentia-se constrangido sob o imperio d'aquelle olhar, fazia um esforço brando para se libertar do abraço amoravel.

-- Repara bem para mim, hão me achas nada de novo? -- E Margarida fixava os seus olhos, cheios de sorrisos, inclinando um pouco a cabeça para traz.

-- Nada, não vejo nada!.. -- E uma fisgadasinha dolorida mordeu lhe o coração.

-- Não me vês mais alegre?

-- Effectivamente... é verdade!..

-- E respirou.

-- Não adivinhas?.. Não te palpita?.. -- E sorria muito, com os olhos dilatados em uma expressão de supremo contentamento, radiantes de alvoroços alviçareiros.

-- Não... não sei... o que possa ser...

-- Dou-te uma... duas... tres... Nada?

-- Nada... -- E no olhar de Fernando havia uma paralysação estupida.

Margarida, erguendo-se na pontinha dos pés, toda rosada de pejo, segredou-lhe ao ouvido umas palavras.

-- Ah!... -- E a sombra de uma leve pallidez e seriedade passou pelo rosto de Fernando.

-- Então assim recebes com essa cara séria a minha grande novidade! E não ficas doudo de alegria?! Até parece que ficaste triste!.. Oh! Fernando, ter um filho! Toda eu estremeço de alegria...-- E apertava o marido com uma pressão nervosa dos seus braços, afogando o rosto no seio d'elle.

-- Qual!.. Estou alegre. .. alegrissimo... É que não esperava... a surpreza... finalmente estão realisados os teus... os nossos sonhos... Ter um filho, hein! que fortuna! Tu verás como vou andar contente, como umas paschoas... -- E sorria com um sorriso constrangido, desbotado -- Mas se fossemos jantar? ..

Um criado bateu levemente á porta, annunciou que o jantar estava na meza. Passaram á sala da meza.

Fernando olhou para o aspecto festivo da meza, «pegou na flor de cima do guardanapo, metteu-a na casa do fraque; fitaram-se, Margarida sorria com uma expressão franca de um desafogo feliz; elle affectava um ar prazenteiro, mas desviou logo os olhos do rosto alegre de sua mulher com disfarce, apanhou o guardanapo que lhe cahira, e fez uma diversão com phrases banaes, embrulhadas, arrefecendo a sopa com a colher; exaggerava-lhe a temperatura, escaldava-se, impacientava-se.

Mas logo que o criado sahiu levando a terrina, Margarida disse precipitando as palavras com a vivacidade de uma alegria infantil.

-- É um dia de festa entre nós ambos, sim senhor, para nós ambos muito sósinhos, o unico convidado que hoje se tolera é a imagem do nosso filho. É o dia mais feliz da minha vida, depois do nosso casamento, está entendido, não se assuste o snr. meu marido. Por isso tive a ousadia de abrir uma das garrafas destinadas aos grandes dias. Poderá. . . não te zangues se me atrevi a tocar no precioso thesouro.

Fernando fazia um esforço penoso para apparentar um semblante prazenteiro, mas infimamente sentia uma irritação dolorosa, azeda, como se lhe tivessem espremido no coração um liquido acre e amargo; fallou muito durante o jantar, com uma volubilidade frenetica, forcejando por se esquecer, atordoar-se; bebeu mais vinho do que costumava, quizera embriagar-se no fel dos proprios pensamentos, que o atormentavam, e estava ancioso que terminasse o jantar, como quem deseja libertar-se de uma oppressão.

Mas á sobremesa, logo que ficaram sós, Margarida disse:

-- E hoje és só meu, havemos de passar a noute sósinhos, apensar no nosso filho, a fazer projectos, muitos castellos no ar, sim?

-- Isso é que não pode ser, preciso hoje de sahir infallivelraente -- Atalhou Fernando levantando-se com vivacidade.

-- Tens sahido todas estas noutes. . . não saihas hoje, já contava com isso, e agora ficava triste, ficas, sim?. .. E Margarida com as suas mãos mimosas, de uma carnação tenra de criança, apertava uma das mãos fortes do marido.

E depois com um amuo infantil, accrescentou, entre séria e jovial:

-- Se me deixas hoje sósinha, ficamos de mal... muito de mal.

-- Hoje não é possivel. Preciso de ir ao Porto, prometti a meu pai e ao teu que iria sem falta, querem-me lá. Ha uma transacção importante com o governo, nós entramos também na cousa com outros de Lisboa, está-se em correspondencia activa pelo telegrapho. E depois veio um empregado do ministério da fazenda, o negocio ha-de ficar resolvido esta noute. Bem vês, não é possivel... tem paciencia. -- E as palavras sahiam-lhe da bocca ás guinadas, com modos sacudidos, nervosos, e ares de enfado.

A pureza do olhar de Margarida humedeceu-se, as palpebras bateram apressadas, excitadas pela ardencia das lagrimas, e a nevoa d'aquelle pranto, que lhe embaciou a vista, foi a primeira nuvemsinha que lhe mareou o brilho do céu azul da sua felicidade conjugal. Só tivera um grande desgosto desde que casara -- o fallecimento da mamã -- então sim, soffreu muito, mortificou-se com a doença, desvelou muitas noutes á cabeceira da cama d'ella, emmagreceu, teve uma angustia muito lancinante; mas depois nunca o mais leve desgosto veio annuviar-lhe o pensamento.

-- Então fica para ámanhã, sim?... -- Articulou Margarida com ar triste, mas promptamente resignado, e nas palavras uma entoação de uma meiguice dolorida.

-- Pois sim... ámanhã. -- E na voz de Fernando havia o tremor de uma commoção.

XVII Adelina desde que estava na Foz apetecia cada vez mais um trem. Quando andava no Passeio Alegre via passar as equipagens luxuosas, puxadas ao trote largo das egoas inglezas, e aquelle rodar, que fazia tremer o mac-dam repercutia-se dentro de si em um estremecimento cubiçoso. Achava de mau gosto andar todos os dias a palmilhar o Passeio Alegre na monotonia de um motu continuo, fatigante, em quanto outras passavam em um deslumbramento, balouçadas aristocraticamente nas brandas molas dos seus trens de luxo. Ao fim da tarde sentia um derreamento lasso nas pernas, e aquillo, verdade, verdade, não era precisamente um ideal de bom tom; sobre tudo ao domingo, que aborrecimento roçarse alli aos contactos burguezes de uma turba vulgar! O ar enevoava-se de uma poeira fina, que lhe fazia ardencia nos seus lindos olhos, e enxovalhava os vestidos; irritavam-na os choques grosseiros e plebeus d'aquella agglomeração para ella anonyma. Burguezas ridiculas estadeavam toilettes mirabolantes, arreliosas, muito empinadas, dentro dos seus vestidos refegados, na saliencia retesada de grandes abdomens, estalando as costuras dilatadas na expansão das roscas adiposas; gente desconhecida, adomingada, cheia de uma importancia relles, passava e repassava, olhando com curiosidades pasmadas e descortezes; sujeitos com ares pândegos e risos bregeiros, bambaleando-se com modos pedantes fitavam as senhoras com olhares farçolas; aquelle arrastar de pés, o rapar das botas no mac-dam, um sussurro grosso de vozes, e o ruido areado, rangente, de tantos passos davam-lhe aos nervos uma irritabilidade muito aspera.

E em quanto aquelle tropel de gente ia e vinha, em correntes oppostas, acotovelando-se, amarfanhando-se, outros sentados em filas de cadeiras olhavam vagamente com uma pasmaceira imbecil na sua immobilidade prostrada. A musica, em improvisado coreto de arraial, pintado a cores de barraca de feira, ensurdecia com grande estridor de metaes; nao era possivel conversar, os bons dictos, as amabilidades não podiam scintillar. Tudo aquillo não passava de um brouhaha de feira, que lhe causava tédio, uma repugnancia enjoada de se marrotar n'aquelles contactos burguezes.

Apresentar-se elegantemente, reclinada nas almofadas de um landó fidalgo, fazendo d'aquella altura comprimentos adocicados para os conhecidos que iam a pé, era agora a sua preoccupação, o seu pensamento fixo, faltava este esplendorsinho á sua vaidade para ser completamente feliz; satisfeita uma ambição, brotava logo no seu coração insaciavel outro desejo ardente, instante; agora era este apetite que a devorava, irritavam na as superioridades das outras, queria tambem viver na aurea esphera das grandezas armoriadas, escaldava-a uma aspiração infrene de goso.

Suggeriu o projecto vaidoso ao marido, Luiz atterrou-se, a cousa era boa, se era! mas impossivel, onde havia de arranjar o dinheiro ?

Deviam parte da mobilia, havia outras contas, a despeza crescia, sabe Deus como se arranjavam! Como havia de ser? «Fazer choradeira ao sogro?.. Mas esse já estava enfadado, respondera com desabrimento ás ultimas exigencias, recriminara-os muito asperamente, advertira-os muito seriamente, que era preciso tomar tento e pôr cobro a tanta despeza. Cuidado com a boia-- dizia -- do contrario não aguento com a carga.» Mas Adelina encolhia os hombros com desdem dominador.

-- Ora adeus, não é por falta de dinheiro, lá isso é que não, mas são todos assim, uns agarradinhos. Não havia outros meios de arranjar dinheiro? Não havia quem emprestasse? Depois pagariam. Não tinha ella de herdar uma boa fortuna? Então que tinha ir gastando por conta da herança ?

Luiz tergiversava, acobardava-se, punha obstaculos, mas Adelina zangava-se, impunha-se, communicava-lhe a sua febre de gosos, convencia-o, embriagava-o, impellia-o fatalmente com a fascinação, que exerce sobre uma alma fraca a energia de um caracter imperativo e impetuoso.

A quinta da Cortegã confinava com os bens de um lavrador opulento, que já em tempo propozera a Luiz a compra das terras que confrontavam com as suas propriedades.

Montar trem era caso resolvido, o que restava era decidir, se era pelo dinheiro a juros, ou pela proposta do lavrador, que se devia optar.

Decediu-se por esta.

Evitavam-se os juros e os inconvenientes da accumulação; agora que viviam no Porto para que precisavam d'aquillo? Depois lá estava a fortuna do Antunes.

Luiz escreveu ao abastado proprietario, trocaram-se cartas, era facil virem a um accordo, á vista regulariam definitivainente o negocio, desfariam algumas duvidas, e Luiz partiu.

Na noute que Fernando recusou a sua mulher com o pretexto de uma operação financeira com o governo, caminhava elle cm direcção á morada de Adelina. Desde que Luiz se ausentara, era-lhe facil ir a casa d'ella clandestinamente.

Caminhava cabisbaixo, lentamente, a sua physionomia, até então, franca e despreocupadamente aberta ao sol da vida, desanuviada de cuidados, aquelle rosto que tivera sempre a carnação firme de uma mocidade sadia, não parecia o mesmo; agora tinha uma contracção pungente, um confrangimento azedo, a testa franzida em dous vincos denunciava um cuidado que o ralava.

Ia absorvido no exame intuspectivo da sua alma, a consciência espicaçava-o, relanceava um olhar retrospectivo para o passado, e via ficar-lhe na esteira da vida, como um sulco luminoso, uma serenidade alegre, um bem-estar tranquillo, acalentador como um dia tepido e calmo de perfumado abril. E agora, adiante de si, via o desconhecido, ainda ha pouco podia respirar o ambiente vivificante da vida a plenos pulmões, sem receios sobresaltados, o horisonte da sua mocidade apparecia-lhe tranco e desentebrecido, como uma noute estrellada sem nuvens, a alma dilatava-selhe desafogadamente n'esse espaço livre.

Mas agora illaqueara-se nas malhas de uma situação, a um tempo, pungente e voluptuosa, mettera por uns caminhos invios, aventurosos, que não sabia onde iriam parar. Ha dias ainda a sua alma podia ser exposta a toda a luz das curiosidades, atravez do crystal de uma consciência illibada, tinha n'aquelle momento uma sensação saudosa d'esse estado moral, que então não apreciara, e vinha-lhe um calafrio apprehensivo, interrogando-se onde o levariam os atalhos aventurosos em que se internara.

A imagem de Margarida representava-se-lhe primeiro illuminada aos clarões jubilosos da maternidade, depois de repente aquella alegria evolava-se, corno uma pomba branca que bate as azas espavorida, no rosto bom de sua mulher transparecia uma tristeza meiga, uma melancholia magoada, e o coração de Fernando doia-se, doia-se de uma angustia muito desconsolada.

Se ella soubesse? Um estremecimento percorria-lhe as veias. E o seu filho, o filho que havia de ter?

Esta ideia absorvia-o profundamente, representava-se-lhe a sua missão paternal de uma responsabilidade grave, e mortificava-se, apavoravase. Se tivesse sabido antes, seria forte, dominaria todos os impetos da carne, todas as fascinações magneticas, que aquella mulh'er exercia sobre elle. E odiava-se, tinha horror de si mesmo!

Ia-se internando nas ruas tortuosas da Foz, de saliencias pedregosas; as casas pareciam entalal-o na sua estreiteza suffocante; os candieiros alumiados a petroleo, de uma grandeza mazorra, negros, davam uma luz mortiça, somnolenta, com uns tons amarellados, que punham nas ruas grandes sombras soturnas; em uma loja de mercearia, alumiada de uma luz baça e dormente de candieiro enfumarado, remoiam-se uns sons aflautados de harmoni-flute rouco e tristonho; alguma taberna, com aspecto de esfregão nojento, trescalava o cheiro nauseabundo de fritada gordurosa, que lhe dava ao estomago contracções enjoadas; um cavaquinho gemia um fado de uma lassidão acanalhada de bordel.

Sentia a alma ennegrecer-se-lhe ao contacto doestas sensações oppressoras, e tinha tentações de retroceder, de entrar em casa, abraçar Margarida com effusâo, engolphar-se avidamente na serenidade consoladora e calmante da sua vida passada.

Mas tinha chegado á casa de Adelina, em uma das janéllas agitou-se a cortina em rapida ondulação. Era ella que o esperava, já não podia recuar, e de repente cahiu-lhe um véu espesso sobre as impressões que o trouxeram agitado até áquella porta; um abysmo, em um momento, separou o homem de hoje do homem de hontera.

Passaram-lhe pelo pensamento, em um relance, todas as sensualidades picantes d'aquella mulher, que se lhe abandonava com toda a vehemencia de uma paixão impetuosa, que o abrazava, e lhe excitava todas as febres do sangue.

Instantaneamente sentiu se envolvido em um ambiente enervante de volúpia e paixão; os encantos revelados de Adelina, os quaes já tinham perturbado voluptuosamente todo o seu ser, todas as curiosidades, todos os instinctos febris da paixão, velados na vaga indecisão dos prazeres passados, que se desejam renovar, passaram á sua vista em um turbilhão fascinante; o sangue escaldava-lhe as veias, as fontes latejavam tumescentes, uma vertigem estonteadora subiu-lhe á cabeça, como os vapores de uma embriaguez forte.

Relanceou um olhar brilhante, metallico; havia um silencio de redor e uma immobilidade abafada de noute encalmada; a pequena distancia a luz amarellenta do lampeão municipal derramava uma luz frouxa e mysteriosa. Ninguem passava e Fernando entrou em casa de Adelina.

Luiz voltara, passados poucos dias, tendo realisado a venda da quinta da Cortegã. Adelina andava toda em alvoroços, muito preoccupada com a ideia de montar trem e com os seus amores com Fernando, os quaes davam á sua vida um colorido romanesco que a estonteava e um ar de mysterio, que lhe suggeria um interesse muito picante. A vaidadesinha enthusiastica de apparecer recostada fidalgamente no seu landó, cercada de uma grande consideração, trazia-a toda preoccupada, deliciosamente absorvida.

Fernando tinha alugado, em lugar retirado, uma casinha de apparencia mesquinha, mas por dentro era um boudoir, que elle disposera com certa elegancia; era alli que agora iam aninhar os seus amores clandestinos, cortados de sobresaltos, de commoçoes; chamaram-lhe pomposamente o seu pequeno -- Trianon -- e o mysterio da casinha era ruais um interesse excitante na vida, de Adelina, inais um sainete picante, romanesco, que lhe seduzia a imaginação sedenta de impressões.

Fernando identiíicara-se com o seu novo viver, a paixão enroscara-se-lhe no coração, philtrara-se nas veias como um veneno subtil, vivia immerso na onda estagnadora de um sensualismo enervante, habituara-se a uma morbidez voluptuosa, que lhe adormentava a razão e irritava os sentidos, como um turco que se habitua aos narcoticos excitantes do opio.

Mas no meio d'este estonteamento, de quando em quando, um pensamento pungente dava-lhe fisgadas dolorosas.

Margarida passava os dias toda embevecida em uma boa alegria infantil, toda occupada nos preparativos do pequeno enxoval, lia tractados de hygiene e de educação de creanças, e o seu coração amoravel e bom desentranhava-se em fontes vivas e uberrimas de affectos agradecidos ao pai de seu filho.

Fernando affectava um contentamente hypocrita; mas pezava-lhe esta vida de dissimulação, tinha nojo de si mesmo, no fundo da sua alma revoltavam-se instinctos bons; energias do bem estagnadas, mas não extinctas, insurgiam-se indignadas, e subiam-lhe ao coração em ondas de fel, que lhe azedavam a alma e envenenavam a existência.

Outras vezes os seus pensamentos voltavamse de novo para Adelina, como bandos de pardaes afugentados que voltam gulosos a uma ceara, e a sua alma debatia-se em correntes oppostas, como um barco que se despedaça no embate de ondas encapelladas.

Não era a sua vida de uma insipidez monotona, fastidiosa?

E sentia a necessidade de alguma cousa vehemente, que lhe excitasse a estagnação insulsa da sua existencia, estonteava:o a avidez nostalgica dos sentimentos fortes, das paixões intensas.

Margarida era bôa, serena como um lago tranquillo em que o azul se mira, limpida e suave como um céo crystalino, mas não era ella que, com os seus ares de candido lyrio, podia acalmar-lhe aquella sêde em que ardia, e satisfazer as curiosidades acirrantes que o abrazavam, as exigencias irresistiveis que agora se ateavam no seu temperamento, e a que a sua mocidade pacata nunca déra desafogo. Já não o satisfaziam as doçuras de aspectos e sensações serenas, queria sentir dentro de si a maresia das grandes commoções.

E deleitava-se na contemplação da imagem de Adelina com toda a voluptuosidade dos gosos intensos. Ella era a paixão, e sentia-se arrastado fatal e brutalmente na corrente allucinadora das sensações acres, cheias de promessas e revelações perturbadoras.

Porque não era sua mulher uma creatura vulgar, insignificante, detestavel até?.. . Então a sua culpa não seria tão odiosa, a consciencia absolvel-o-hia.

Mas não, Margarida era boa, adorava-o, era uma esposa exemplar, vivia só para elle, alimentava-se da felicidade d'elle, toda occupada em alegrar-lhe a vida, tornar-lhe aprazivel, sorridente o lar domestico, toda entregue á felicidade de se fazer amada. Não, decididamente não a merecia, devia adoral-a de joelhos, era indigno d'ella.

E fazia-se escarlate, do fundo revoltado da sua natureza conturbada, mas nao corrompida, levantavam-se ondas de sangue a fustigar-lhe as faces, como uma vergastada ignominiosa e insultante.

Ao menos que não o soubesse, e estremecia só de pensar na possibilidade de uma revelação, torturava se, apavorava-se, com essa perspectiva.

Mas seria horrivel! N'aquelle estado, com a sua organisação debil, impressionavel, com a sua saude melindrosa, com a sua sensibilidade delicada, seria uma dôr fulminante!... E uma vaga ideia funeraria, como um hálito de morte, pairava sinistramente sobre o seu pensamento, parecia-lhe entrever em um horisonte soturno umas sombras lugubres avançarem para elle, envolverem-no em crepes negros.

Mas procurava serenar, e, com um esforço energico da vontade, sacudir de si todas estas funebres visões. Margarida nada poderia saber, tomaria todas as precauções; surgia-lhe, porém, aos olhos da imaginação sobreexcitada uma imagem sarcastica; a figura esgaçada de D. Guiomar apparecia-lhe; via o seu olhar perfurante, vasculhador, e aquelle risinho amarejlado, sardonico, com que o fitara no Palacio de Crystal. Tremia d'esta mulher, e novas angustias, outros sobresaltos vinham aterral-o.

E n'este embate de cominoções, de sensações penosas, o seu caracter franco e jovial azedavase, tornava-se desigual, nevoento, soturno, sentia dentro de si um mal-estar de muita desconsolação, curvava-se ao peso de uma oppressão intima, amargurante, que o esmagava miseravelmente.

Sentia uma irritação nervosa, por vezes fervia-lhe no peito uma excitação irada, tinha vontade de se encolerisar, devoravam no impaciencias attrabiliarias, bramia-lhe no peito uma ancia instante de expansões colericas, tinha para elle tentações de um prazer amargo o desejo de que alguem o provocasse, para desafogar os azedumes que lhe fervilhavam no sangue.

A mais pequena contrariedade o exasperava, as comidas desí'g adavam-lhe, a mais leve falta dos criados irritava o, sentia umas fermentações amargas a cachoarem dentro de si, a impulsal-o ás fáceis exaltações, e até contra sua mulher tinha momentos de um enfado comprimido, que nunca chegava a revelar-se.

Com Margarida apparentava serenidade, e ella, toda inebriada na sua felicidade, não penetrava, atravez d'aquelle véo fallaz, as perturbações, que tantos estragos iam fazendo no caracter de seu marido.

Uma vez, porém, fez reparo na gravidade taciturna de Fernando. Esquecera-se de si, e cofiando o bigode, bambaleando a perna, com o olhar de uma vaga abstracçao, deixara-se levar no encalço de pensamentos tristes; com a testa enrugada transparacia-lhe na physionomia gelada, severa, uma melancolia muito profunda.

-- Que cara tão séria! Estás solemne como um doutor da Igreja -- disse Margarida com expressão galhofeira.

Fernando acordou com um sobresalto.

-- Em que pensavas tu para estar assim com essa cara tão comprida?...

-- Effectivamente... é que pensava em cousas sérias... Como vou ser papá... é preciso ir pensando em certos deveres. ..

-- Ih! que padre-mestre! Deus me livre de pensar que para ter filhos é preciso a gente fazerse caturra. Eu por mim até me preparo para ainda ser mais creança, vou, mas é recordar-me do tempo das minhas bonecas para saber brincar com o meu pequenino. Ora veja, senhor doutor... olhe... E Margarida, com um sorriso travesso, agitava diante dos olhos do marido uma pequenina saia com uma rendinha na orla...

Fernando affectava um sorriso de muito bom humor; mas no rosto despontava uma pallidez imperceptivel, e sentia na palma das suas mãos um suorsinho.

XVIII A familia real passaria no Porto, um baile projectado no Club occupava os espiritos na grande roda.

Como Adelina ficou toda no ar! Até então só tivera as soirées da assemblêa da Foz, algumas pequenas reuniões de familias, mas um baile, e um baile real!... Era o primeiro que tinha em perspectiva, e o peito arfava-lhe com suave deleite, as narinas dilatavam-se-lhe na aspiração dos perfumesinhos da vaidade; quando estava só pulavamlhe sorrisos nos beicinhos carnudos, e aos olhos vinham-lhe clarões instantâneos de alegria; sentia no intimo do seu peito um prurido muito titilante, que a excitava a irreprimiveis desejos de rir, de cantar, de expandir uns gorgeios que lhe fervilhavam no coração, como chilreadas de passarada nas arvores do quintal ao pôr do sol.

Aquelle baile, com os seus aspectos novos, desconhecidos para ella, aguçava-lhe curiosidades insondáveis, e, comi uma grande excitação nos nervos, a imaginação exaltava-se-lhe na contemplação d'esta perpesctiva, que a inundava de luz, como as crianças que fitam impacientes pela primeira vez um panno de theatro, que vai revelarlhes maravilhas.

E phantasiava toilettes, discutia de si para si cores de vestidos, de guarnições, architectava conbinações phantasiosas de velludos, failles, rendas de Bruxellas, de Chantilly, flores, joias; delineava penteados imaginosos, consultava figurinos, revolvia jornaes de modas, levantava-se-lhe na cabeça uma poeirada vertiginosa de cousas scintillantes.

Não tinha adereço de brilhautes, estava desprovida de tanta cousa! E então uma elegante. . .

na sua posição.. . Ai, não havia tempo a perder, precisava de se preparar sem demora. E o coração pulsava-lhe na aspiração fatua de ostentar uma toilette que désse na vista; a chronica, os jornaes fallariam dos vestidos mais sumptuosos e elegantes, e pela cabeça passava-lhe vagamente, como o deslumbramento de um ideal, um vago pensamento de disputar a realeza do baile.

-- E este Luiz logo hoje que tarda tanto, ficou-se por ahi pasmado, o caranguejo! ou a quebrar a cabeça a algum papalvo como elle... com uma das suas estopadas... Um massador, capaz de seccar uma figueira.

E logo que elle chegou:

-- Ora já era tempo! Então já sabes do baile do Club ? E eu que não tenho nada! É preciso tractar de toilette, rendas, brilhantes...

-- Mas então... vamos ao baile, hein? -- Balbuciou Luiz com um leve tremor na voz e uma ligeira pallidez no rosto.

-- Se vamos ao baile! Ora não está mau o disparate ! Está claro que vamos. Estou a achar graça á pergunta! -- E sorria com um sarcasmo desdenhoso.

-- Mas... ainda não está decedido, creio que ainda não é certo... o baile... -- E accrescentou com decisão -- E depois é um dinheirão, não chega para tudo. Pagou-se o que se devia, e as sobras de montar trem são para o sustentar por algum tempo, teu pai está furioso, d'ahi é perder as esperanças, e o que me parece é que nos mettemos em camisa de onze varas -- E passeava agitado, cora uma excitação desusada, vasculhando nos abysmos da sua molleza organica uma faisca de energia; cofiava o grande bigode de marechal, aprumava a estatura liliputiana com ares importantes.

-- Até me causas dó!.. -- Replicou Adelina e meneou a cabeça com um ar de mofa e superioridade zombeteira -- Tinha que ver... eu... não ir ao baile !.. Não que era mesmo uma cousa engraçadissima... Com que cara havia de apparecer no dia seguinte? Anda, dize-me lá... Parece que endoudeceste! Não é para estar mettida em casa que eu vim para o Porto, então era melhor ter ficado a rezar o terço na freguezia, ou metter-me a freira... Não está mau o destempero!..

-- Mas...

-- Mas nem gastemos tempo com despropósitos, não sejas tolo, e ficas desde já sabendo que ao baile é que não deixo de ir. E não me fiques toda a vida mesmo um atadinho, dinheiro... sabes muito bem como se arranja. Se o não tenho já, hei-de tel-o, gasto o que é meu, só te peço o favor de ser meu procurador para o arranjar emprestado.

No dia seguinte Adelina rodava em um trem de aluguel pelas ruas da cidade com uma despreoccupação feliz, andava em um rodopio do ourives para a modista, e da modista para as lojas de modas e confecçoes.

Só tinha um pezar -- não ter ainda o seu landau. Mas Luiz era uma tarantado, andava cheio de hesitações quanto á compra dos animaes, receava ser logrado, e não atava nem desatava.

Declinavam os últimos dias de verão, havia já na atmosphera uma frescura outonal.

Adelina voltou ao Porto para tractar melhor dos seus preparativos de toilette. Que lhe importava a ella agora a Foz? Outras senhoras faziam o mesmo. E a vida deslisava-lhe, como um sonho bom de verão.

Luiz esse vogava á mercê do seu carácter fraco, da sua indolência egoista. Logo depois do baile assignava uma lettra com usura exorbitante, Fernando continuava a debater-se nas convulsões do profundo mal-estar da sua alma, fluctuava dilacerado entre sentimentos oppostos. A consciência pungia-o, mas não achava nas energias adormecidas do seu caracter a força precisa para aniquilar a febre da paixão, que o invadia como uma nevrose que lhe perturbava todo o organismo.

Margarida sorria sempre ao futuro, embalada na felecidade illusoria do contentamento honesto e bom do lar tranquillo.

Mas chegara o dia do baile.

Diziam-se maravilhas dos primores de luxo e elegancia na ornamentação da casa, e Adelina sentia todo o seu ser alvoraçado de um jubilo doido no ante-gosto d aquella sensação nova. Aspirar uma emanação palaciana, receber uma radiação da realeza!.. E depois se dansasse na mesma quadrilha com a familia real! Como seria bom!... O Luiz era nobre, recebia ainda um reflexo da posição e dos feitos que illustraram o pai, tinha ao menos esse préstimo. Para alguma cousa havia de servir...

E á noute, quando começara a toilette, tinha impaciências, frenesis, irascibilidades. A modista tardava com o vestido, o cabelleireiro não vinha!

Que raiva, se não assistia á entrada da familia real! E toda ella era uma vibração nervosa, estava de uma impressionabilidade de sensitiva.

No seu quarto havia uma grande fulguração que a inundava em torrentes luminosas, e o roupão cor de cereja, com bandas de velludo preto, dava-lhe á pelle uns tons ardentes.

Respirava-se uma atmosphera quente, condensada em delicadezas de aromas, como em uma estufa sem ar renovado; o tapete estava, em frente do espelho grande, todo polvilhado de pó de arroz; o ambiente, levemente velado de uma nevoa subtil, embaciava as luzes; um adereço de brilhantes e pulseiras com pedras finas scintillavam sobre a commoda, ao lado das compridas luvas gris perle de sete botões com folhinho; era cima da cama os sapatinhos de setim cor de rosa, arqueavam-se sobre o seu tacão dourado na flexuosidade de uma curva muito elegante junto das folhagens e flores artificiaes.

Nove horas bateram com um som roufenho e apressado em ura relogio da casa. Aquellas toadas frenéticas, de uma rouquidão metallica, deram-lhe aos nervos a recrudescência de excitação.

-- Nove horas, e nem cabelleireira, nem vestido, isto é insupportavel!... --E batendo o pé com impaciência, mordia o labio inferior com uma raivasinha, e tinha vontade de chorar -- Também que demora a d'este Antonio!... O criado foi logo que lhe deu o recado?... E recommendou-lhe que fosse depressa?...

-- Foi, sim, minha senhora, disse-lhe que fosse num pulo, e aquillo para correr parece um galgo!... Mas também ainda não ha dez minutos que elle foi, e a senhora não se afflija, já uma vez em uma casa onde estive o vestido chegou por que horas, era perto da meia noute...

-- Cale-se, mulher, você é insupportavel! Que disparate!... o vestido á meia noute!... E você não acaba de aprender, não sei em que casas tem servido, sempre a senhora para aqui, a senhora para acolá... Já lhe tenho dito que isso não é tratamento que se dê... Olhe, vá accender mais duas velas, com esta luz a cabelleireira nem vê para me pentear.

Duas pancadinhas soaram á porta. Adelina voltou-se com um sobresalto, cheio de esperanças. Seria a cabelleireira?... Luiz metteu a cabeça pela abertura dos batentes.

-- Dás licença... Se podesses dispensar a Joanna por um instante para me pregar um botão na camisa?

-- Ora viva.. . não me faltava mais nada... Olha, estou sem cabelleireira e sem vestido. Agora só me faltava que tu tambem viesses seccar-me.

-- Mas ainda não é tarde, até á meia noute entra-se nos bailes... A Joanna é só um instante... Para baile não tenho outra camisa decente, é só um instante...

-- Fazes favor de me deixar em paz. Que tenho eu com os botões das tuas camisas?... Isso é com a costureira, não me apoquentes, para cousa boa não vinhas tu cá, para isso ninguem te vê... Se tu fosses, por exemplo, á modista! Mas isso sina, este senhor lembra-se lá de ter prestimo para alguma cousa!...

A campainha da porta da entrada retiniu com força, a cabelleireira entrou, e pouco depois Joanna desdobrava sobre a cama um vestido de setim côr de rosa.

Uma hora depois a carruagem rolava com Adelina e Luiz pelas calçadas; as claridades dos candieiros de gaz, as scintillaçoes das lojas, o balanço trémulo do trem, de um ruido abafado, redobravam-lhe a excitação anciosa. Ia muito direita, sem se encostar, para não se amarrotar; Luiz?

para não causar damno á toilette de sua mulher, encolhia-se ao canto da carruagem, afogado em ondas assetinadas.

A carruagem tinha um cheiro a bafio, a surro nauseante de traste velho, encodeado, e Adelina tinha enjoos, sentia desprezos pelas almofadas rapadas, sebentas, que serviam a toda a gente, e pensava no seu coupé elegante, confortavel, acolchoado, como um boudoir macio, de um estofo assetinado, cor de pérola. Só isto lhe faltava -- sentir-se rolar em um d'esses ninhos moventes, que convidam o corpo a reclinar-se languidamente, e o pensamento a devanear caprichosamente, embalado mollemente ao som fidalgo do rodar sereno e largo.

A carruagem parou; um tapete desenrolavase até á extremidade do passeio; o porteiro flamejava pomposamente no espalhafato garrido da sua libré agaloada; o gaz espraiava-se na abundancia de claridades offuscantes; sonoridades metallicas de uma banda marcial, estrondeando no atrio, punham no ar ondulações alegres e nos nervos uma impressionabilidade jubilosa.

Arbustos e flores alinhavam-se decorativamente pelos degraus da escada tapetada; plantas exoticas, ornamentaes, agrupavam-se artificiosamente; encostados á balaustrada envernizada, ou em grupos, sujeitos, com os largos peitos das camisas a ferir lustro, fitavam Adelina avidamente; ao signal de um toque vibrante de sineta um director destacava-se do grupo, dava-lhe o braço, descendo o primeiro lanço da escada, e ella viase reflectida nos espelhos; a cauda pompeava roçagante, arrastando-se aristocraticamente pelos degraus, scintiliando reflexos assetinados, e á medida que subia affigurava-se-lhe que ascendia em consideração, sentia se engrandecer.

Depois passava atravez dos grupos, seguida de olhares admirativos, e cortejava os conhecidos com a doçura refinada de uns sorrisos, em que a alvura dos dentes, miudinhos e unidos, faiscava rapidamente. Sentia como que os vapores de uma embriaguez, cheia de essencias aromaticas. Como era bom vestir-se de setim e rendas! Como dá realce á belleza um vestido de baile! Era assim que desejaria vestir-se muitas e muitas vezes, e a sua alma levantava-se a um mundo superior, fluctuando em uma atmosphera de prazeres e grandezas.

Houve uma agitação no salão, a orchestra vibrou um hymno, a familia real entrava, os olhares alongaram-se com soffreguidão curiosa, havia contemplações estaticas.

O hymno cessara, a circulação, paralysada pela admiração monarchica, restabeleceu-se, o salão resplandecia de luz e colorido; bordados a ouro em fardas de azul ferrete, esmaltes de condecorações, alguma farda espalhafatona, vermelha, de moço fidalgo, uniformes militares agaloados, sobresahiam entre a massa negra, ondulante, das casacas e a brancura dos peitilhos lustrosos, e cortavam-lhes a monotonia insulsa.

Adelina estava radiosa n'este ambiente todo rescendente a emanações palacianas; a sua pessoa attrahia as attenções, a toilette era notada, e tinha deslumbramentos, respirava a largos haustos, inebriada, esta atmosphera intensamente trespassada de luz; impregnava-se voluptuosamente d'estes efluvios acres, como do elemento proprio e vivificador do seu organismo. Ondas de musselinas, de rendas, de setins espraiavam-se pelo pavimento em uma exuberancia fidalga; o soalho, escorregadio de stearina, espelhava-se maciamente, convidando á voluptuosidade doudejante da walsa; lampejavam por toda a parte as fascinações do nú; a luz mordente do gaz, accendendo scintillações iriadas nos crystaes e nas joias, desatava-se em torrentes luminosas, que escorregavam acariciadoras sobre as brancuras dos hombros e braços nús, penujados de fino pó de arroz perfumado.

Ia começar a primeira quadrilha, e o coração de Adelina pulsou mais apressado.

Luiz conversava com o visconde Odivellos, conhecia-o de Lisboa, vinha na comitiva real.

Era alto, trigueiro, de uma physionomia arabe, insinuante, o seu uniforme vistoso, de capitão de lanceiros, dava realce ao seu porte esbelto, e destacava com uma distincção superior na turba inexpressiva e vasiamente enfatuada, que o cercava. Relanceava a vista inquiridora pela sala com a repousada confiança de quem se sente á vontade, e o seu olhar, plácido e firme, percorria com uma insistência apreciadora as fórmas de Adelina, desde a leveza ondulosa do penteado, que se erguia vaporosamente, como uma coroa, cercado de um aro de ouro, até á pontinha dos sapatos de setim. Demorava-se n'esta analyse com uma tranquillidade preguiçosa, como se a-vista se deleitasse em uma sensualidade muito repousada, espreguiçando-se pela molleza assetinada do vestido cor de rosa, com avental de rendas de Bruxellas e cauda roçagante de velludo, e Adelina estremecia toda palpitante sob a influencia magnetica d'aquelle olhar insistente. O visconde pediu a Luiz que o apresentasse, e sollicitou a primeira quadrilha.

Ella estremeceu de jubilo, dansaria na quadrilha real, e com um elegante, da côrte! Sorria intimamente a esta aspiraçãosinha satisfeita, e os olhos, a que as claridades cruas do gaz davam um brilho mais negro, ora doudejavam na travessura de uma scintillação alegre, ora avelludavam-se, velando-se no languor de um brilho humedecido, como brilharia uma chamma em mar phosphorescente, na escuridão de uma noute sem estrellas.

Fernando entrou no salão, foi comprimentando em roda, trocando phrases amaveis, até chegar perto de Adelina, que estava em conversação, de uma animação garrida, com o visconde.

Luiz apresentou os dous, Adelina dispensava a Fernando uma attenção medíocre, voltava-se toda para o visconde com movimentos do corpo, e do pescoço, de uma flexuosidade muito amavel, tendo no olhar uma excitação sorridente.

Fernando sentia-se ferido no seu orgulho revoltado. A orchestra preludiou a quadrilha. Adelina ergueu-se, ao convite arqueado do visconde, passeou no salão pelo braço d'elle, arrastando a cauda, quebrando a cintura na flexão de uma suave languidez.

O visconde curvava-se para ella cora elegancia palaciana, mergulhava olhares entendedores na carnação branca do collo, de uma firmeza tenra, que se abria largamente, como um rosto bello que ri sem pejo. Adelina fitava n'elle os seu grandes olhos, de um castanho escuro, com meneios de uma garridice provocante; as longas pestanas negras, e as sobrancelhas espessas, de um arqueado correcto, accentuavam a expressão insondável do seu olhar, como a pintura de um rosto formoso que destaca no fundo escuro de uma tela.

Absorvia-se toda no seu galanteio com o visconde, nem se lembrava de Fernando, dir-se-hia que nunca existira para ella.

Depois dansou uma walsa com o visconde.

As caudas dos vestidos, como grandes borboletas multicolores que voluteassem desatinadamente debaixo de uma monstruosa campanula de crystal, muito penetrada de luz, doidejavam em circulos vertiginosos, fazendo sussurros, como fremitos de azas que passam; de quando em quando duas caudas encontravam-se, chocavam-se como pássaros encarcerados que se esbarrassem no choque de um voo allucinado; os laços de fita tremiam agitados como folhas bafejadas;de uma aragem; os cachos de cabello encaracollado roçavam, saltitando de contentes, pela nudez das espaduas; uma flor desprendia-se de uns cabellos, desfolhava-se e as folhas agitavam-se no redemoinho, como um enxame de insectos alados, volitantes; as casacas redopiavam, bipartindo-se em grandes bicos negros que se abrem e fecham; os homens, arqueando-se, retesando-se na ponta dos pés, no esforço bailante para se fazerem imponderaveis?

subtis, armavam o corpo em attitudes de uma plastica emmaranhada; as senhoras dando ás cabecinhas inclinações langurosas, a bocca entreaberta, pallidas ou afogueadas, deixavam-se levar, como que no impulso doce e adormentador de um balanço, que excita subtilidades titillantes no systema nervoso.

Fernando seguia-os com um olhar lento, profundo, devorador; experimentava uma sensação nova, incomraoda; fazia-se-lhe na alma uma revelação dolorosa, sentia no coração como que uma ferroada subtil, mas muito acerada, uma amargura de uma desconsolação muito profunda, a ujn tempo, acre como um veneno azedo, e fervida como uma cólera, que rugia surdamente nos abysmos do seu ser, e ascendia lentamente a suffocal-o, como uma bola escandescente que subisse e se lhe atravessasse na garganta.

Ainda momentos antes de entrar no baile, descendo ao fundo da sua consciência, arripiavase todo com um sentimento de asco de si mesmo; exhalava-se do intimo da sua alma uma aspiração boa, apetecia com vehemencia volver ao passado, aos dias limpidos da sua mocidade alegre, tranquilla e honesta, e, acalentado n'estas influencias boas, sentia-se impellido para Margarida com todas as energias de um coração irritado pela dôr, pensava em romper com Adelina, cogitava um pretexto. Esse pretexto apparecia-lhe, e, agora que o tinha, evolavam-se-lhe todas as suas intenções honestas, reacendiam-se-lhe nas veias todas as labaredas sensuaes, todas as febres calcinantes da paixão. Allucinava-o uma vertigem de paixão e ciume.

Adelina continuava a volutear com uma despreoccupação inebriante por sobre todas as excitações do baile; borboleteava por todas as flores doeste jardim, atordoando-se nas fragrancias do calido ambiente. Atrahia as attenções, faziam-lhe roda, cercava-a uma nuvem de incenso cortejador, que lhe lisongeava a vaidade, os galanteadores zuniam em volta d'ella, flamejavam-lhe, de redor olhares avidos, como zumbem, pairam, e ondulam moscas varejas em volta de um bello cadaver, que começa a exhalar um leve cheiro de podridão.

O visconde continuava a occupar-se d'ella, julgava-se cercada de uma atmosphera de grande consideração, e acariciava a ideia fagueira de ser a rainha do baile.

Só uma apprehensão por vezes a beliscava.

O vulto de Margarida, de uma serenidade meiga e séria, passava como uma sombra no céu fulgurante das suas phantasias.

Margarida trajava um vestido de setim côr de perola, bordado a largas rendas de Bruxellas.

Faiscava-lhe nos cabellos escuros, ondulados e luminosos na intensidade das refulgencias do baile, a aureola de um pequeno diadema de perolas e brilhantes; as perolas, cahidas em collar sobre o collo, escurentavam-se levemente em confronto com a transparencia lactea da pelle; uma grinalda de rosas-chá e a cor do vestido combinavam-se em suave harmonia com as brancuras de lyrio, que lhe adoçavam a tez macia.

Esta toilette de uma elegancia, a um tempo simples e esplendida, preoccupava Adelina. Exceptuando a da rainha, era esta a unica que lhe inspirava receios de concorrência.

E depois Margarida era objecto de geraes attenções; não a galanteavam, não a cercava um cortejo de adoradores, não a envolviam olhares de uma adulação atrevida; mas rodeavam-na respeitos e sympathias, e, o que mais a mortificava, era que Margarida dançara uma vez com o ministro ! Mas consolava-se logo. Antonio de Azevedo era uma influencia monetaria, aquillo fora para lisongear o pai. Quem o ignorava? Margarida tinha a influencia do dinheiro, mas ella tinha o prestigio da belleza; tranquillisava-se com esta ideia consoladora, e engolphava-se com ardor nas harmonias do baile, que palpitava de animaçao.

O Sepulveda era dos mais pertinazes galanteadores de Adelina, parava repetidas vezes diante d'ella, todo dobrado em arqueamentos aduladores, tregeitando muito para ser visto, e affectando sorrisos expressivos, equivocos, de uma significação--nós cá nos entendemos--que atrahisse attenções e invejas. Tinha marcado no seu cartãosinho uma quadrilha e uma walsa com Adelina, e, logo que lhe tocou vez, apresentou-se na sala com muita antecipação, passeando, e conversando com intimidade suspeitosa, inclinando-se de lado com ares significativos de homem feliz.

Mas Adelina ouvia-o com distracção, não tirava os olhos do visconde; depois de começar a quadrilha, como elle por acaso não dançasse ficando atraz d'ella, voltava-se a cada instante, toda risos e garridice, e durante toda a quadrilha quasi só fallou com o brilhante capitão de Lanceiros.

O Sepulveda ficou furioso, tinha sido um vexame, uma desconsideração. Não estava má, hein!

tinha feito uma bonita figura! Mas deixa estar, minha doidivanas, que não as perdes, eu te ensinarei que commigo não se brinca.

Protestava não fallar na toilette d'ella no folhetim, para o qual -- confidenciou com jubilo irreprimivel a um amigo -- já tinha um cabeçalho esplendido, e cheio de despeitos e rancores planisava outras vinganças.

Fernando dançou uma quadrilha com Adefina, em cuja physionomia transluzia uma distracção frivola, um esgazeamento de leviandade, e elle tinha vontade de invectival-a, de expremer em phrases pungentes todo o veneno que ella lhe instillava no coração. Mas não podia, os pares acotovellavam-se, estavam perto de uma porta, sugeitos perfilavam-se por traz na attitude avida dos mirones; coruscavam olhares curiosos, farejadores.

D. Guiomar com a luneta assestada, o olhar buliçoso, devorado de curiosidades, seguia todos os movimentos de Adelina e Fernando. Trajava um vestido branco de musselina, guarnecido a pequeninas rosas de tocar; aquella frescura branca e primaveral fazia sobresahir os tons biliosos do semblante e a sua plastica mirrada. Aproveitavase da sua qualidade de solteira--dizia--para usar um vestido barato, sem dispendios de seda ou setim; era a unica toilette despretenciosa que ficava bem a uma menina. Ficara quasi sempre sentada, sem dançar, toda ralada lá por dentro de uma fermentação azeda.

Em quanto se dançava uma quadrilha, ficara uma vez muito só no meio das cadeiras vasias de um lado e outro; levantou-se e foi sentar-se, mais adiante, ao lado da viuva de um general reformado, também muito isolada entre cadeiras devolutas. O defunto general fora socio do Club e a matrona, na qualidade de viuva, era convidada, convite que ella acceitava com avidez. Era muito gorda e trigueira, e o calor e as luzes do baile punham-lhe na epiderme de um moreno retinto uns tons oleosos; a pescoçeira fazia no cachaço um refêgo humedeciclo de transpiração; a carnação abundante do braço rechonchudo tinha um aspecto, tostado e atochado, de carne ensacada; a exuberancia monstruosa do collo adiposo dava enjôos, e na cabeça pousava, com uma abundancia galhofeira, um açafate de flôres de lilaz, de onde emergia a saliencia de um largo pente, que parecia a aza do dito açafate. Tirava uma vaidade ciosa e uma arrogancia burgueza e boçal da posição social do seu defunto homem, trazendo em constante rebellião contra as superioridades, que a cercavam e assoberbavam, todas as fezes e azedumes da sua indole plebeia.

-- E já reparou na mulher do Luiz de Albuquerque, snr.a D. Eugenia, olhe que aquillo está interessante, não se póde perder. -- E D. Guiomar ageitando a luneta sorria biliosamente.

-- É que não tenho tirado de lá os olhos, menina, se aquillo está mesmo a metter-se pelos olhos de um cégo. Pois não é que eu seja das mais reparadeiras, mas quando são tão calvas, aquillo tambem é de mais... E dizem que vão pôr trem!

Diz que são muito ricos?. . .

-- Isso é o que se ha-de ver. Por ora vai de vento em pôpa. De sua casa já o Luiz não tem nada, ao lavar das cestas... Mas veja... veja, que disparate!...

-- Uma cousa assim... Derrete-se toda com o visconde... Olhem para aquillo... que modos desengonçados!... A mulhersinha endoudeceu!... Que desproposito de gatimanhos!... Sabe que mais, aquillo até nem sei o que me parece... -- E accentuava esta reticencia pudica e expressiva, rebolindo-se pesadamente na cadeira com indignação, e, abanando-se com valentia, dava ao rosto uma expressão de pudor revoltado.

-- E já reparou no Fernando?... É exquisito... não tira os olhos de Adelina, e está com uma cara de tyranno, que nunca lhe vi. Aquillo até faz suspeitar... Quem sabe se haverá alguma cousa?...

-- Se ha!... Pois a menina não sabe!... -- E, empinando-se com esforço para traz, fitava um olhar interrogador, cheio de uma anciedade jovial e coruscante.

-- Não, eu não sei nada... -- Respondeu D. Guiomar com voz adocicada e uma vaga ingenuidade no olhar.

E D. Eugenia, com ar triumphante, relanceando de redor olhares cuidadosos, e, abaixando depois com difficuldade o busto entalado em espartilhos, cochichou umas palavras ao ouvido da sua interlocutora.

-- Que me diz!... Será possivel?... E então já lá vamos?... -- E os olhos pestanejavam-lhe accesos, com um tic nervoso.

-- Houve quem os visse, snr.a D. Guiomar, houve quem os visse!.. . É como lhe digo--um desaforo!.. . -- E com o leque bateu uma pancadinha secca na perna magra de D. Guiomar.

-- Ora quem havia de dizer... o Fernando... parecia que não quebrava um prato!... eu bem o dizia.. .

-- São todos o mesmo... Quem se fia em homens! Uma cambada!... -- E abaixando a voz -- Eu no seu caso, sendo amiga de Margarida, prevenia-a, lá isso prevenia-a, não que aquillo brada mesmo ao céu.. .

E D. Guiomar confirmava que era muito intima de Margarida, ella estava sempre a chamal-a, a fazer-lhe obsequios, e que apparecesse, que apparecesse, e carro para aqui, theatro para acolá, parece que não pode passar um dia sem mim, ás vezes até é uma sécca.

-- Mas pensaria no caso, era melindroso, e a Margarida ás vezes é exquisita, em certas cousas é mesmo um manto de seda... Que eu não quero dizer que não seja muito boa rapariga; mas tem exquisitices... celebreiras, e ás vezes é mesmo um vidrinho... tenha-se lá, nã me toque...

Eu tambem acho... tambem tenho achado...

Tem assim uns ares todos cheios de -- não presta -- E, dando á physionomia boçal e papuda uma contracção enjoada, tinha um aspecto repellente, que dava voltas ao estomago.

As duas senhoras dispunham-se a continuar n'este tom o amigavel colloquio, mas a quadrilha, terminando, fez uma diversão ao curso das suas ideias.

A sala da ceia abria-se, as senhoras iam pelo braço dos homens. No trajecto Fernando pôde trocar com Adelina algumas palavras furtivas, e segredou-lhe baixinho, precipitadamente...

-- É indigno o teu procedimento. Tens-me dado uma noute infernal... -- E a voz assumialhe em tom cavernoso e tremulo.

-- Que voz de papão! Não percebo -- Respondeu Adelina, com muita leviandade, entre enfadada e zombeteira.

-- Ainda por cima a zombaria! Foi para isto que lhe sacrifiquei todo o meu passado feliz! Foi para uma aventura leviana que me aviltei!.. -- E com um movimento nervoso comprimiu o braço de Adelina.

-- Veja que me magôa, se está costumado a tractar assim sua mulher, ella que o ature -- Replicou com uma vibração colerica na voz.

Fernando ficou livido, suffocado de indignação. Atraiçoara Margarida em um momento de vertiginosa fascinação, atolara-se em ondas de volupia, mas no intimo da sua alma tinha uma veneração, um culto respeitoso por sua mulher, o qual era tanto mais acendrado, quanto eram grandes as suas culpas para com ella, e sentia que a parte immaterial do seu ser só para ella voava, como uma columna de incenso purificador. Por isso as phrases indelicadas de Adelina assumiram a seus olhos o caracter de uma profanação, que o indignava.

A vista oífuscou-se-lhe em lampejos de colera, teve vontade, n'aquelle momento, de tractar como o ultimo dos entes aquella bella mulher, que levava pelo braço.

Mas tinham chegado á sala da ceia, estavam rodeados de uma multidão agglomerada; Adelina, toda nervosa, largou o braço com arremesso e tomou lugar á meza.

Estava pallida com uma preoccupação irritada, mas distrahiu-se logo diante dos aspectos brilhantes da meza, e da animação atordoante da ceia.

Pouco depois já nem se lembrava d'aquelle incidente, o estalido das garrafas de champagne que se abriam dava-lhe aos nervos a titillação de uma vibração jovial, e figurava-se-lhe que a alegria irrompia vivaz e exuberante de envolta com a espuma, que fervia nos copos.

Á medida que as senhoras sahiam, a meza era invadida soffregamente pelos homens.

Havia n'esta sala uma scintillação ardente, reflectida dos espelhos, que pouco depois, com as respirações de tanta gente agglomerada, dava ao ambiente uma espessura pezada, quente e condensada de aromas saborosos.

Serpentinas de prata e plateaux primorosamente cinzelados fulgiam em cima da meza; o do centro suprepujava-se a todos, como um monumento coroado de flores; os crystaes e os vinhos dourados faiscavam; as flores flamejavam por toda a meza, colorindo-a, iriando-a; as charlottes-russes à la Chantilly e os gelados com fructas brilhavam com reflexos gomosos, coloridos, tremeluzentes; era uma orgia de luz e cor. Respirava-se uma atmosphera de comezaina fina; os aromas da baunilha, da nosgada, o perfume dos vinhos, as emanações appetentes da pastellaria, dos requintes culinários, os vapores dos estornagos a rebentar de viandas, condensavam-se em um um mixto indefinível de aromas.

Os convivas apertavam-se muito occupados em ingerir abundantemente; outros, de fora da meza, estendiam mãos rapaces por cima dos hombros, e invadiam os bufetes dando pabulo provisorio ás impaciências do estomago; alguns menos denodados esperavam com uma desconsolação faminta no rosto; criados circulavam com difficuldade, mudando pratos, abrindo garrafas; sentia-se um sussurro forte de conversas entre masticações, tinidos batalhadores dos talheres sobre os pratos, e o ruido alegre da animalidade contente que se expande em risos; soava um estalar jovial de rolhas, os grânulos dourados do champagne levantavam-se em espumas que davam alegria e scintillavam á luz dos candelabros, e os risos borbulhavam nos beiços quentes da comida, como o champagne espumejando em borbotões das garrafas; havia nas faces um esplendor pantagruelico; nas physionomias dilatadas e luzidias imprimiam-se uns tons quentes, regalados, de rega-bofe; os olhos brilhavam na chamma alcoolica, afogados no fluido sensual, que dá o goso das iguarias delicadas.

O snr. Fabião da Rocha lá estava no seu posto, assistindo inabalavel a uma successao de convivas, como um soldado valente, que a morte respeita, vendo impavido cahir os camaradas, dizimados pelo fogo mortifero do inimigo, e a sua physionomia hilariante parecia bradar, em uma apostrophe eloquente, as palavras de Falstaff -- Que me enforquem, se é um crime gostar do vinho de Hespanha.

Os accordes festivos do baile, os sons convidativos da orchestra chegavam amortecidos, e casavam-se sensualmente com as harmonias da ceia.

Fernando assomou á porta, tinha no rosto um ar de allucinação livida, respirou com deleite aquella atmosphera excitante.

N'este momento a meza tinha o aspecto de um esplendor orgiaco e descomposto, como uma bella mulher em desalinho, desbotada e murcha, depois de uma noitada lasciva. As galantines esmoucadas, os foie-gras esbeiçados, os gelados esbandalhados, as viandas retalhadas, as aves com as carcassas descarnadas, davam á meza um aspecto de opulencia desmanchada; pratos gordorosos apresentavam amalgamas indigestas de restos de comida; os talheres besuntados, os calices em desordem com restos de vinho, todo o desalinho da meza dava a ideia de um enfartamento enjoativo de estomagos repletos.

As fulgurações da sala deram a Fernando a impressão de um atordoamento. Uma lucta de violentas sensações despedaçava-o, sentia um malestar indizivel que o esmagava; um desgosto de si, irado, cheio de tédios e rancores, revoltava-o contra o estado miseravel da sua alma. E procurou esquecer-se de si, atordoando-se nos vinhos fortes com um deleite amargo, com um desespero voluptuoso.

As salas estavam mais vasias, o baile expirava, a pallidez dos primeiros alvores espreitava nos vidros com um descóramento deslavado, como uma cara estremunhada em madrugada forçada.

Aquella livida claridade coava-se pelas vidraças, desmaiava as fulgurações dos lustres e espalhava uma luz esbranquiçada, que dava aos objectos e ás physionomias fatigadas um aspecto desconsolado, desbotado como um espelho que perde o aço.

Os pallôres que entravam fundiam-se com o brilho do gaz em uma claridade amarellenta e desilludente, que dava a tudo o vago das tintas dubias. Havia uma fadiga nos corpos, um quebranto no andar, uma lassidão langurosa de tecidos relaxados na expressão dos semblantes amortecidos, com a frescura apagada em uma flacidez morbida, ou com uma excitação febril doentia; os olhos tinham uma frouxidão pisada, abatida; com as ultimas notas de orchestra parecia fluctuar no ambiente, ainda palpitante das febres do baile, uma molleza enervante, que succede aos fastios da saciedade; os vestidos leves de musselina voluteavam estafadamente, com aspecto escorrido e amarrotado, no ultimo giro cançado de walsa, como borboletas que escapassem á perseguição do rapazio, arrastando um vôo rasteiro e penoso, com azas esfarrapadas.

Com as ultimas vibrações da musica expiravam os derradeiros giros offegantes da walsa, como fremitos de paixão que se extinguem no desfallecimento de um suspiro flebil, e cá fóra despertavam as notas trinadas da passarada nos arvoredos dos quintaes; desmaiavam as fulgurações dos lustres e raiavam os esplendores da aurora; cahiam os ultimos echos de uma festa e preludiavam-se os canticos harmoniosos de outra; o baile expirava ao halito morbido das fadigas, e a natureza desabrochava cheia de vida e saude no pipilar das aves, no zumbido dos insectos, nos rumores da criação, na canção do trabalho; a febre do prazer esvahia-se nos entorpecimentos que desgastam corrosivamente os organismos, e ao mesmo tempo erguia-se vivificante o trabalho, que retempera a energia do caracter e tonifica o sangue.

Fóra alinhavam-se as ultimas carruagens em uma espectativa somnolenta; as azemolas soturnas dos trens de aluguer, debaixo das mantas surradas, deixavam pender os pescoços adormentados; echoavam no silencio matutino as vozes roucas dos cocheiros; as portinholas dos trens batiam com uma prolongaçao de som melancolico; de quando em quando um estralejar de tamancos cortava a immobilidade calada do ar, ferindo o lageado com um som echoante e secco; ruidos vagos iam despertando; o gaz amarellecia nos candieiros; caras de uma pallidez fatigada, dentro das carruagens, cruzaram-se com os semblantes rudes dos obreiros madrugadores e dos lampionistas pressurosos.

Adelina foi das ultimas a sahir, Luiz ia contente, com uma loquacidade titubeante e pegajosa, e um brilho nos olhos velados de um humedecimento alcoolico, como um espelho embaciado de um bafo quente.

Adelina não o ouvia, o pensamento borboleteava lhe pelas sensações da noute, um sorriso adejava-lhe na physionoraia, e tinha um olhar vago de quem não vê as cousas.

Luiz invadiu a cama apressado e succumbiu logo a um somno plúmbeo.

Adelina despia-se com vagar, desfazia e soltava as tranças lentamente, com gestos languidos, sentia-se invadir de um torpor suave, estendia os braços carnudinhos, penujados, com muita preguiça. Approximou-se do leito de vagar, ageitou as almofadas, correu a mão pelos lençoes, alisando-os com doçura; não tinha somno, sentia um enervamento na carne e uma excitação no cerebro, passava em revista as impressões da noute, todas as sensações que lhe davam uma titilação na vaidade, com requintes de um goso que se deseja prolongar em refinado sybaritismo. Diante dos seus olhos cruzavam-se as magnificencias do baile, a musica cantava-lhe aiada dentro de si, vibravalhe ao ouvido no murmurio de um echo expirante, uma sensação de ineffavel doçura penetrava-a, e ella como que sorria vagamente a uma visão que a encantava.

Luiz resonava com estrepito na prostração dos estomagos repletos; claridades penetravam pelas janellas, e Adelina, cedendo ao peso de um profundo cançasso adormeceu embalada ao bafejo acariciante das suas phantasias. A figura airosa do visconde apparecia-lhe, cercado de um luzido cortejo, cingindo-lhe a fronte com uma coroa de estrellas, symbolo da realeza do baile.

E sorria á vida, que lhe apparecia luminosa e leve como um enlevo dulcissimo, illimitado, sem as durezas de um despertar desilludente.

XIX Fernando teve mais uma noute cortada de excitações febris e sonhos maus.

Adelina apparecia-lhe primeiro confusamente esboçada na vaga sombra de um pezadello, zunia-lhe nos ouvidos um echo de orchestra; mulheres de hombros nús revoluteavam no rodopio de uma bachanal phantastica- e lúbrica. Adelina surgia em um turbilhão de gazes, de luzes e de flores; erguia graciosamente os braços brancos, como que torneados em um torno encantado, e estendiam-se sensualmente para um vulto que se perdia na multidão, e ella sorria-lhe com um riso impudico, escarninho. Quiz precipitar-se, mas um braço, branco de neve, paralysou-o, aquelle contacto marmoreo gelou-o, como a mão fria de um espetro.

Acordou banhado em suor frio, sentia no corpo ura quebrantamento penoso, uma fadiga desconsoladora, e, olhando para dentro de si, via um obscurecimento cada vez mais intenso, que o desolava e fazia desgraçado. Era um despertar horrível, como quem se levanta de um tumulo para um mundo sem brilho de céu azul, sem calor, sem doçuras de noutes estrelladas.

Tinha a lingoa grossa, saburrenta, e um sabor amargo na bocca, com uma sede devoradora.

As ideias, a principio confusas sob o peso da insomnia febricitante, acclaravam-se gradualmente, os acontecimentos iam deslisando em toda a sua lucidez, e a vida amedrontava-o.

Adelina apparecia-lhe sob um aspecto novo e odiento. Não era a mulher infeliz, acorrentada pela fatalidade a um marido imbecil, que cedia aos irapetos incoercíveis da paixão; não era a mulher fragil peccando e cahindo, e ao mesmo tempo remontando-se ás poéticas idealisaçoes do amor irresistível, era simplesmente uma creatura leviana, que escorrega no pendor da sua natureza libertina, e cede ás exigencias vehementes do temperamento.

E era por esta mulher que elle soffria, que levara a desordem e a perturbação á sua vida!

O seu primeiro impulso foi expungir com o esquecimento do livro da sua vida esta pagina deploravel. Mas lembrava-se da entonação zombeteira das suas palavras, que podiam significar um rompimento, e o seu amor proprio irritava-se.

Vendo-a esquivar-se ao seu dominio para se abandonar a outro homem, sentia um desejo ardente, imperioso, como uma vertigem que atrahe e fascina, de a captivar, de a submetter de novo á sua influencia; figurava-se-lhe vel-a estremecer, palpitante de desejos, no ardor das caricias devoradoras de outro homem, via-a abandonar-se ebria de paixão, desnudar-se impudicamente a outras curiosidades.

O sangue agitava-se-lhe em impetos ao contacto d'estas imagens, que lhe appareciam como tentações diabólicas; reaccendiam-se-lhe nas veias todos os delirios febris da paixão, que o conturbava convulsamente até ás profundidades do seu ser, sentia-se enleado pelas serpentes da voluptuosidade, e debatia-se nas suas espiraes de fogo.

Mas depois d'aquellas phrases bruscas e grosseiras não se atrevia a dar o primeiro passo para a reconciliação. Se ella o repulsava talvez com mais rudeza ainda?. . Seria uma grande humilhação; não, já se tinha aviltado muito, não queria degradar-se mais. Havia de perder ainda mais o respeito e a estima d e si mesmo ?.. Mas realmente seria possível que ella estivesse decidida a romper com elle sem mais explicações ?..

E dilacerava-se n'esta lucta de ideias encontradas como ventos oppostos que levantam rodopios de folhas, debatia-se arquejante nas lúbricas contorsões d'esta paixão, que mau grado o enleava ainda como um látego de fogo.

Torturou-se todo o dia, impaciente, nervoso; este estado imcomportavel não podia continuar, e á noute tomou a resolução de passar por casa de Adelina. Talvez ella o esperasse?.. Devia esperal-o, se é que não estava de todo em todo decidida a um rompimento.

A noute, tarde, sahiu, hesitante, envergonhado, encaminhou-se para casa d'ella, parava, davam-lhe venetas de retroceder; mas vinham outras tentações e avançava sempre, lentamente, vexado, timido, empuxado por duas forças oppostas.

Adelina esperava-o espreitando occulta pelos cortinados, a janella abriu-se, observou que não passava ninguem, um bilhete cahiu.

Fernando leu á luz de um candieiro, devorado de um sobresalto ancioso.

«Teriamos hontem enlouquecido? Sonhei por ventura ou realmente passou a primeira nuvem pelo céu do nosso amor? Serás tu que has-de dizel-o ámanhã á hora costumada, sim ?.. Eu só desejo provar-te que foste injusto, e que vivo só para te amar».

Fernando teve um arripio. Era terror, orgulho ou amor, o que a alma lhe segredava n'aquelle estremecimento ?

E ficou-se absorvido dolorosamente n'esta interrogação.

Adelina tinha acordado, depois do baile, com a sensação deliciante de um prazer passado, mas calma e suave, sem a intensidade irritante do momento em que o gosou; os efluvios acres do baile vaporavam-se na doçura calmante de uma reminiscencia agradavel, como se desvanecem os fumos de uma embriaguez que declina. Os aspectos d'aquella noute de prazer appareciam-lhe agora atravez da placida lucidez do espirito; já não actuava sobre ella o ambiente excitante que então a envolvia.

-- Por fim o Fernando tem razão, pensei tão pouco n'elle durante toda a noute ! E o visconde?.. Aquillo foi uma loucura... uma telhasinha.. .

E sentia um arrependimento, reconhecia que obedecera a um atordoamento, uma vertigem, e agora vinha-lhe ura receio de perder o homem a quem se abandonara, mortificava-a a ideia de ter decahido no seu conceito.

-- Fiz mal... muito mal. O visconde... vai para Lisboa e acabou-se, foi uma tolice... uma grande tolice... Que se ao menos elle ficasse ou eu estivesse em Lisboa?... E agora o Fernando ha-de estar furioso! Veremos o que faz, virá esta noute? É capaz de não vir, é caprichoso, offendi-o... Ora adeus, sempre havemos de ver isso... E, com um risinho vaidoso, sentou-se á secretária, e escreveu o bilhetinho que Fernando lêra á luz do candieiro.

O piano de Margarida cantava ainda mais do que era costume, o enxoval do pequenino crescia a olhos vistos, ella mirava e remirava todas as pequeninas cousas de seu baby, e, com o rosado sorriso das almas boas, ensaiava no seu delicado punho, similhando uma bola de alabastro que tivesse perdido a consistência, uma toucasinha entrelaçada de fitas côr de rosa.

Sentara-se depois ao piano, e os seus dedinhos afilados feriam levemente no teclado as notas maviosas da -- Canção da primavera -- de Mendelssohn, quando o escudeiro introduziu na sala D. Guiomar.

-- Dás licença?... Muito bem, muito bem... mas eu não quero interromper. Passei por aqui, ante-hontem mal nos vimos no baile e entrei para conversar um bocadinho. Mas o que estavas a tocar? ... Continua, continua. Ai! eu então por musica... e do que tu tocas!..

Margarida viera ao encontro de D. Guiomar, beijocaram-se, levou-a para uma poltrona junto da meza grande do centro, e sentando-se muito juntas, pegou-lhe na mão dizendo:

-- Não, antes quero conversar, rir, tagarellar um bocado, estou hoje muito alegre.

E a sua alma limpida, trasbordando na abundancia das alegrias boas, sentia uma necessidade de expansão; tinha dentro de si uns frémitos amoraveis, dulcificantes, que lhe davam um pendor impulsivo, espontaneo, para os sentimentos francamente affectuosos, sympathias fáceis, aspirações nobres, desejos generosos de ver a todos felizes.

E n'aquelle momento, apesar de uma leve repugnância que lhe causavam certos defeitos que começava a perceber no caracter de D. Guiomar, sentia para ella uma inclinação sympathica, estimava-a.

D. Guiomar fallou do baile, se tinha gostado, a que horas viera?

Margarida tinha ido -- dizia -- por comprazer com Fernando, bem lhe importavam a ella agora os bailes; até se seccára muito, quem lhe dera que nem lhe apparecessem. No seu estado não eram nada convenientes, e agora tractava muito da saudinha, como uma velha muito egoista; mas o Fernando insistira tanto, e condescendera.

E ria com um ruborsinho calido no rosto.

-- Isto é que é uma menina ajuizada. Não que assim também não as ha, ainda hontem o dizia -- E apertando uma mão de Margarida na sua, com a outra dava-lhe na palma assetinada umas pancadinhas amigaveis, e depois fazendo uma transição para um ar grave. -- Mas fazes tu muito bem, todas as cautelas são poucas, olha o que succedeu á Menezes... de Lisboa... pobre rapariga!... Até se me arrepiam as carnes...

-- O que lhe succedeu?...

-- Pois não sabes!... -- e com uma voz lamentosa -- Coitada, deu uma queda, escorregou nas escadas, teve um desarranjo, e está com Deus... Foi ha quatro dias!. ..

-- Não sabia!... -- E ficou muito séria, triste, com uma expressão de dôr, uma pallidez leve no rosto, os beiços descórados. -- E accrescentou com um arripio nos nervos:

-- E eu tenho tanto medo de cahir, mas ando sempre com muito cuidado, seguro-me muito ao corrimão, quando desço... -- E estremeceu outra vez, e os olhos muito abertos exprimiam terror.

-- E dizem que teve uma morte de santa, que morte! Aquillo é que foi saber morrer, se aquella não está no céu!. . . Imagina. . . foi a prima viscondessa de Refojos que me escreveu, e diz que foi muito commovente. Depois de se confessar e commungar chamou toda a familia, despediu-se, pediu perdão a todos com muita serenidade; depois disse que sahissem, que não voltassem mais, não quiz vêr mais ninguem, ficou só com a criada, e recolheu-se com Deus! Ainda viveu assim muitos dias, ainda quizeram ir vêl-a outra vez, mas ella não consentiu. Que não, que não, estava com Deus, o mundo para ella acabara. Que morte, que morte tão edificante!. .. -- E revirava os olhos ao céu com muita compuncção.

A expressão alegre tinha cahido do rosto de Margarida, como um passarinho, que saltita pipilante no ramo de uma arvore, e cahe ferido de repente; agora tinha um ar dorido e uma vontade de chorar.

Houve um silencio. Pela janella entrava um ar quente, suffocante, havia na atmosphera a immobilidade de uma electricidade, como uma ave sinistra que paira.

Ouviu-se o badalar plangente de um sino.

Retiniu o toque de uma campainha, o sagrado Viatico andava na rua, o tilintar esmoreceu, vozes entoando o -- Bemdito -- perdiam-se ao longe.

Tinham-se levantado, ajoelharam com religioso recolhimento, e, como o -- Santissimo--não se approximava, levantaram-se, tomaram outra vez os seus lugares; D. Guiomar folheava distrahidamente um album.

-- Mas deixemo-nos de cousas tristes -- E vendo um retrato de Adelina accrescentou -- A proposito, que te pareceu a toilette da tua amiga? Que luxo, hein?

-- Minha amiga!... Isso é que não, até não convivemos mesmo nada.

-- Ah! cuidei... É que como teu marido se desfaz em tantas attenções.. .

-- Fernando?!.... -- Contestou Margarida com vivacidade surprehendida -- Ora essa!.. . Elle até não sympathisa nada com Adelina...

-- Ah!... Não sabia... Como não é isso o que por ahi se diz... e até se tem reparado, ainda ante-hontem no baile... Mas tambem, louvado Deus! em tudo se repara, de tudo se faz um espanto ... E quem faz caso de dictos?... -- E virando as folhas do album com movimentos lentos, relanceava furtivamente olhares disfarçados.

Margarida ficou muito attonita, com uma pallidez aterrada no semblante. Ia para fallar, inquirir, protestar, mas reflectiu, reprimiu-se, fez um esforço para vencer a sua emoção.

Houve um rapido silencio gelado.

-- E o enxoval do baby como vai?. .. Deve ser um primor -- E D. Guiomar, remexendo em um cestinho pousado sobre a mesa, desdobrava um pequenino chambre bordado em abertos -- E feito por ti?.. .

-- Tenho feito quasi tudo--Tinha uma preoccupação que. diligenciava disfarçar, e desenrolava outras peças do enxoval com as mãos levemente trémulas.

-- É uma distracção, mas não deves abusar, és fraca, precisas de muito regimen, hygiene, bom ar... Por isso fazes muito bem em passear tanto para o campo...

-- Para o campo não tenho ido, vou sempre para a Foz.

-- Cuidei que era para o campo.. . Tinham-me dito que viram teu marido comtigo muitas vezes, não sei para onde... E diziam, aquella é que faz bem, é o que todas deviam fazer n'aquelle estado... Mas então enganaram-se!...

Margarida empalledecia mortalmente, sentia dentro de si uma tremura friorenta, como o começo de uma sezão, mas contrahiu toda a sua força de vontade na energia de um esforço violento, e sorrindo affectou um ar indifferente.

-- Ai, é verdade, já nem me lembrava, mas lá para se dizer muitas vezes... muitas vezes... isso não, vou mais para a Foz -- E com movimentos atarantados, as mãos nervosas ageitava no cesto as pequenas peças do enxoval para se dar uns ares de naturalidade e desconstrangimento.

D. Guiomar continuou ainda durante uns segundos a florear por sobre umas banalidades, e depois levantando-se:

-- E eu que me ficava aqui esquecida!... É sempre assim, quando me ponho a palrar com esta menina. Ainda quero ir a casa da Tavares, imagina, devo-lhe uma visita ha um mez!... Adeus, sim? Muitas lembranças a teu marido.

E esticou-se para chegar á altura do rosto de Margarida. Ella fez um esforço, mas vencendo a sua repugnancia offereceu pacientemente a face ao beijo de D. Guiomar.

Já não podia dominar-se por mais tempo.

Logo que D. Guiomar sahiu correu ao seu quarto convulsa, arquejante, fechou-se por dentro.

Suffocava, cahiu debruços, soluçando, despedaçada, sobre o leito.

Levantou-se atordoada, sentia na cabeça como que um circulo de fogo, as ideias atropellavam-se confusas, como que via dentro da cabeça rapidos lampejos, offuscantes, no meio de um obscurecimento intellectual, como o relampaguear de muitas trovoadas no negrume de um horisonte longiquo. Levou as mãos á cabeça, tinha medo de desmaiar, de endoudecer.

Uma ideia sinistra pairoti-lhe no pensamento.

Parecia-lhe que uma longa aza negra, membranosa, como a aza asquerosa de um morcego monstruoso, lhe roçava pelo cerebro, e lhe apagava a luz do espirito, como um noitibó apagando uma lampada era um perpassar estrepitoso de azas.

Uma ideia de morte bafejou-a, como um halito pestilento, cerrou os olhos instinctivamente, para se furtar a uma visão pavorosa, e cahiu sobre uma cadeira com um desfallecimento no corpo, faltava-lhe o ar, sentia uma vertigem estonteal-a, parecia-lhe que a vida queria fugir-lhe em um arranco.

Foi rápido este esvahimento, fez um esforço, abriu os olhos á luz com afflicção, relanceou-os em volta de si com pavor, aspirava á vida, ao ar vivificante, com desespêro soffrego; mas sentia que dentro de si se abria um vacuo fundo, muito fundo, impreenchivel, desolador.

Ainda ha pouco estava alegre, tão alegre, que não podia acreditar em tristezas; uma confiança descuidosa no presente, uma aspiração, cheia de esperanças, para o futuro, davam-lhe a plenitude da felicidade; vivia embalada ao bafo tepido de uma grande serenidade dulcificante; a alma abria-se-lhe, á similhança de um adoravel sorriso de creança aos afagos maternos, na expansão de uma salutar alegria, a um futuro ridente de seducçoes, e de repente sobre essas perspectivas cahia, como um crepe funebre, com fracasso um panno negro, e este véu funerario que lhe escondia o futuro descia-lhe sobre a vida, como um velludo preto que abafa um caixão mortuario.

Passava a mão pela testa, concentrava-se fazendo um esforço para coordenar as ideias. Sonharia?.. Teria realmente ouvido todas aquellas palavras horriveis, que ainda lhe faziam o effeito de lhe cahirem nos ouvidos, como pingos candentes de chumbo derretido? E não seria tudo mentira, uma illusão, uma intriga d'ella?

E de repente, endireitando-se com energia, como uma mola de aço que se desprende, caminhou direita ao quarto de Fernando, acariciando uma ideia fixa, com a firmeza de uma resolução.

Revolveu o quarto, remexeu as gavetas, que estavam abertas, nervosa, convulsa, exasperou-se diante das que achou fechadas, vasculhou os bolsos dos casacos, esquadrinhou tudo, sem encontrar nada de suspeito.

Ia a sahir descoroçoada, estava já perto da porta, mas retrocedeu de repente, com uma ideia, abriu a gaveta onde estavam dobradas as calças em rimas: Estendia-se por cima uma calça muito escura, que Fernando costumava usar, quando precisava de passar, de noute, pela porta de Adelina, metteu a mão no bolso, tirou um pequeno papel, tinha um perfume muito suave a violeta. O coração pulsava-lhe no peito arquejante com uma violencia desabalada, que lhe dava uma sensação muito dolorida, abriu-o precipitadamente, toda trémula.

Era o bilhetinho que na vespera Adelina deixára cahir da janella.

Uma vertigem estonteou-a, encostou-se á commoda, pondo uma mão nos olhos, estava lívida, desfeita, offegante, como uma pomba sob o pezo de uma mão rude. Sahiu, caminhava cambaieante, entrou na alcova do seu quarto, cahiu de joelhos diante de um crucifixo de marfim, esmagada ao pezo de uma dor aniquilladora, as lagrimas saltavam-lhe dos olhos, suffocada em soluços, absorveu-se no fervor de uma prece.

Ergueu-se mais tranquilla. Fez-lhe bem chorar, rezar. Teve como que uma inspiração, luziulhe ainda uma esperança, abraçou-a com a instinctiva soffreguidão do naufrago, aferrava-se á vida, á sua felicidade, com desespero, sentia um alivio refrigerante percorrer-lhe todo o corpo como os balsamos de um liquido doce, que lhe calmasse nas veias a escandecencia febril, irritante, que a queimava.

Fernando ainda não estava perdido para ella, não podia ser, não era possível que amasse aquella mulher; desputar lh'o-hia, era uma lucta, ia tental-a, ella.. . e o filho que lhe palpitava nas entranhas, ambos juntos haviam de vencer.

E um clarão febril illuminava-lhe o rosto.

Teria sido porventura um desvio, um desvairamento, mais nada de certo; ainda assim era doloroso, triste, triste! Era uma mancha na pureza do limpido céu da sua felicidade! Mas não era a desesperação, o inferno na vida, não era o total aniquillamento da sua existencia. Seria por ventura possivel que Fernando tivesse esquecido todos os jubilos, todas as felicidades do passado?!.. Ainda podiam voltar dias felizes.

E depois -- quem sabe! -- talvez ella tivesse alguma culpa, teria ella feito tudo o que devia para lhe tornar boa, alegre e feliz a vida de familia?. . E penitenciava-se com estas duvidas, com estas incertezas injustas de um espirito enfermo.

Mas, com a alma retemperada pela esperança, tentaria recuperar o amor de seu marido, e muito excitada com este esforço supremo da vontade estimulava toda a fortaleza, que podia tirar da sua branda organisação para fortelecer a alma na firmeza d'esta resolução; parecia-lhe que para esta obra saberia extrahir da sua fraqueza energias verdadeiramente extraordinárias, superiores a si mesmo.

Foi ao espelho para estudar com aquelle confidente mudo e leal a serenidade que pretendia apparentar; precisava compor as feições transtornadas para se apresentar a seu marido apparentemente tranquilla, e o seu rosto, que estava sempre costumada a ver alli reproduzido com a placida doçura, que dá a alegria descuidosa e feliz, apparecia-lhe agora transfigurado na imagem da dôr? sulcado repentinamente pelos primeiros estragos das realidades pungentes da vida.

Com os olhos fitos pertinazmente no espelho como que lhe inquiria, ainda duvidosa, se aquella physionomia devastada pelo soffrimento era realmente a sua imagem, e, em contraste com aquella dor alli estenographada n'aquelle vidro, deslisava toda a sua vida passada, em um redemoinho de pensamentos, como um ramalhar de arvores que gemem de afflicção na convulsão de uma lufada tempestuosa.

A sua infancia feliz, tepidamente acalentada ao bafo dos mimos paternaes; os folguedos infantis com Fernando; o desgosto d'elle quando desmanchou o braço da grande boneca, de grandes olhos vidrados e azues; a sua dor quando a viu chorar; a inclinação sympathica que desde pequenina a impellira para elle; a sua imagem a apparecer-lhe confusamente por enfre as scenas da vida de collegio, como um luar bruxoleando entre nuvens e promettendo espraiar-se no esplendor de uma noute crystallina; as primeiras revelações d'aquelle amor nascente, como uma emanação olorosa que se exhalava do botão da sua puberdade, desabrochando na branca rosa, radiante, da sua adolescencia; as sensações novas da sua vida de mulher, da sua existencia cheia de felicidade imperturbavel e interminável, como um rio que corre perpetuamente entre margens ridentes e pittorescas; todos os seus devaneios coloridos, todos os sonhos rosados da sua mocidade, batendo as azas, como brancas pombas em manhã serena, de perfumado abril, esvoaçando no espaço luminoso e azul, que convida á alegria, ao amor e á vida, tudo agora alli passava no aspero relevo de uma realidade atroz, que a pungia cruelmente, e lhe enchia a alma de um travôr, como ella nunca podera suspeitar houvesse em dores humanas.

Transportava-se a esses tempos de innocencia tranquilla, via-se confundida entre a turba das collegiaes; as vestes monachaes das mestras, os seus ares seraphicos e discretos espalhavam de redor uma frieza claustral, que lhe punha na alma uma sensação deleitosa; sentia-se estremecer no confessionario, toda sobresaltada e timida sob o mysticismo doce das phrases unctuosas do padre, ou palpitava, em dia de festa, entre os efluvios dos aromas das flores e do perfume do incenso em espiraes azuladas. E aspirava á paz claustral, abraçada á cruz, sonhava reclinar a fronte no seio do Senhor!

Depois insensivelmente das perspectivas douradas pelo sol da primavera da sua vida, banhadas na luz das suas crenças ingénuas, dos impulsos amoraveis e cândidos do seu coração, colori- dos ainda atravez do prisma da sua dor, fazia uma transição para o futuro.

Fôra ainda ha instantes, e a felicidade já lhe parecia profundamente recuada na escuridão do tempo; o seu penar era de momentos, e, com a prolongação de perspectiva que dão as remeniscencias das cousas boas e affastadas, parecialhe já perpetuado em uma longa diuturnidade. E a firmeza do seu animo quebrantava-se, a resolução ha pouco tomada abalava-se, sentia-se esmorecer ao sopro calcinante da desgraça, como uma flor, exhausta de seiva, que murcha devorada pelos beijos calidos do sol, de uma lubricidade cruel; a sua energia cahia em uma frouxidão, como uma corda tensa que perde a elasticidade, e estava quasi a succumbir de novo ao desalento e á allucinação da dôr.

Mas a porta da rua bateu com força, e ouviu um ruido forte de tacões e um ranger de botas, com um desafogo de dono de casa.

Margarida palpitou ao ruido d'aquelles passos, que ella não confundia com quaesquer outros.

Sentiu-se de subito galvanisada, toda ella estremeceu em uma vibração dos seus nervos, ergueu-se muita direita, com muita energia.

Quando desceu á sala do piano, onde costumava encontrar-se com o marido, tinha os beiços descorados, com uma seccura aspera, a brancura sadia das faces tinha desmaiado em uma morbidez pallida; mas nas maçãs do rosto havia um rubor leve, os olhos tinham um brilho de diamante. Caminhou para Fernando com uma vivacidade desusada, electrica, que não podia reprimir, enlcou-lhe os braços no pescoço, chegou-lhe á bocca os labios tremulos, ressequidos, bailavalhe na physionomia um sorriso que dava vontade de chorar.

-- Estás incommodada?... -- Inquiriu Fernando com o rosto enfiado.

-- Não é nada... uma leve indisposição, uma dor de cabeça -- E tinha na voz um tremor.

Foram jantar. Fernando ia preoccupado?

sentia que o coração se lhe apertava. O jantar correu triste, a principio calado, Margarida sentia lagrimas a segregarem-se-lhe do coração, e a quererem trepar aos olhos, como bolhas de arem uma agua que ferve em cachão; mas com um grande esforço sorvia-as, tragava-as, recalcava-as no intimo do peito, e depois começava a fallar com muita exaltação. Os olhos tinham um brilho febril, metallico, as rosetas das faces avivavam-se.

Fernando estava inquieto, observava sua mulher com uma sollicitude dolorosa. A ideia de uma doença, de uma doença grave dava-lhe um desalento muito pungente e lancinantes terrores que o gelavam, sentia a vaga oppressão instinctiva de um perigo que se pressente.

Terminado o jantar tomaram o café na sala do piano. Margarida recostou-se em uma poltrona, a excitação que a amparava cahia, quebrava-selhe o corpo.

-- Não tocas um bocadinho?

E ella encaminhou-se para o piano; costumava quasi sempre tocar depois de jantar. Dedilhou no teclado, preludiou uma melodia de Schubert, mas lembrava-se do abysmo que separava aquelle dia do passado, vinham-lhe as impressões da illusoria felicidade da vespera, em confronto com o desengano do presente, e sentiu um desfallecimento maior, teve um arripio, queixou-se de frio, doia-lhe mais a cabeça.

Fernando approximou-se, segurou-lhe as mãos com carinho, poz-lhe a palma da mão na testa, que queimava, tomou-lhe o pulso.

-- Tu estás muito doente, Margarida, tens febre!. ..--E empallidecia,com uma vividez apavorada no olhar.

Margarida já não podia reprimir-se, sentia um nó que a suffocava na garganta, rompeu em lagrimas que subiam em borbotões, como uma taça que trasborda.

-- Que tens, Margarida, dize-me o que tens? Assustas-me...

E tinha vontade de a apertar com terna effusão contra o seu peito anciado, de cobril-a de afagos, e não se atrevia, Margarida apparecia-lhe como um arminho que elle receava manchar.

Mas ella enxugou as lagrimas, e depois d'aquelle desafogo atirou-se aos braços de Fernando, e o seu rosto sorria com um sorriso de uma ineffavel doçura dolorida.

-- Isto não é nada, uma criancice. .. É um dos meus dias pardos, e depois, como estou adoentada, veem-me umas ideias tristes... tristes!... Mas tu és muito meu amigo, não és?... E havemos de ser muito felizes... sempre... com o nosso filhinho... todos muito unidos. .. -- E encostando o rosto ao pescoço branco e forte de Fernando chegava-se muito a elle, com uma sensação de frio e susto, e a voz desmaiava em um suspiro flebil e tremulo, como um frémito de amor, sobresaltado de presagos terrores.

Fernando estava aniquillado. Que era isto?

Que significava esta perturbação que agitava aquelle pobre corpo, abatido, franzino, doente, que lhe estremecia nos braços, todo palpitante de affectos bons e convulso de dor?... E aquelle contacto, cheio de delicadas suavidades, escaldava-o como um ferro em braza, e tinha tentações de se lhe rojar aos pés, confessar tudo... tudo, pedir-lhe perdão de joelhos, purificar-se no arrependimento, viver só para ella... fazel-a feliz... muito feliz, e caminharem na vida, unidos, fortes, alegres, encarando o futuro desassombrado.

Mas a campainha da porta vibrou um som agudo, e pouco depois o criado, batendo á porta discretamente, introduziu na sala Antonio Barreiros.

O dr. Barreiros apparecia poucas vezes em casa de Fernando, estudava muito, e a sua clinica, que já começava a ser importante, occupava-lhe uma parte do dia; mas desde que Margarida andava de esperanças vinha mais a miudo, interessava-se muito pelo estado d'ella, queria seguir a marcha da gestação, guiar, aconselhar, e o seu interesse não era só pela amisade que consagrava a Fernando, era tambem por ella mesmo, conhecia-a bem, admirava-a.

Logo que elle entrou, Fernando gritou-lhe:

-- Nunca vieste tanto a proposito, Margarida está incommodada.

O medico examinou a doente com uma penetração no olhar, tomou o pulso, inquiriu, teria comido alguma cousa que fizesse mal, tivera algum abalo?.. .

Mas Margarida explicava que naturalmente fora o baile que a fatigara.

-- Foi isso, de certo foi isso. O baile, hein! Que tolice! -- E encolhia os hombros reprimindo um movimento de zanga. -- V. exc.a vai já para a cama, repouso completo, muito socego, por em quanto mais nada, depois veremos... Mas isto não é nada... Nada de cuidados.

Fernando tocou uma campainha, frenetico, sobresaltado, um criado appareceu.

-- Que venha a Ignez, que venha já.

E depois que Margarida sahiu perguntou ancioso:

-- O que tem? E cousa de cuidado?

-- Não, creio que não... espero que não será... Mas na verdade que ideia a do baile!...

-- E ella que não queria ir... Fui eu que insisti -- E mordia a ponta do bigode.

-- Ora tu que has-de ser sempre creança! És um doudo, e eu aqui a pregar no deserto! Não sabes como tua mulher é debil!. .. Todos os cuidados, todas as cautelas são precisas. Foi uma imprudência, foi uma imprudencia, pelo que vejo preciso de vir aqui todos os dias... -- E continuando a increpar o amigo, passeava na sala agitado, confrangendo a physionomia com ar descontente.

XX Tres dias depois Margarida levantava-se convalescente. A borrasca, que cahira tão imprevistamente sobre a serenidade da sua vida, produzira um grande abalo na sua organisaçao delicada, nervosa, mas a natureza reagia, as excitações do sangue acalmavam-se.

Fernando tivera por ella uma solicitude carinhosa, muito sobresaltada; não sahira durante aquelles tres dias, entrava no quarto de vagarinho, na ponta dos pés, Conchegava-lhe a roupa, fazia-lhe perguntas de muito interesse,' acariciadoras; inquiria se havia luz de mais no quarto, se tinha roupa bastante na cama, envolvia-a em uma nuvem macia de afagos e cuidados.

Margarida sentia-se rejuvenescer aos contactos d'estas branduras meigas, a esperança avivava-se-lhe na alma, como um sol entre nuvens cheio de promessas de bom tempo. Não, decididamente Fernando não podia trocal-a pela outra, fôra um desvario, uma febre dos sentidos que o envolvera como uma tunica de Nessus, que o penetrara como um ambiente carregado de electricidade, mas a alma pertencia-lhe ainda, pairava na atmosphera superior que domina as regiões das tempestades, passada a tormenta, purificado o ar, baixaria ás camadas inferiores; com a saciedade viria o tedio, e com as realidades brutaes, que rasgam as roupagens que encobrem as podridões do vicio, viriam as desillusões, os rebates pressurosos da consciencia nas almas de boa tempera, que conservam sempre um fundo de honestidade, que se não corrompe ao hálito deleterio das impurezas.

Uma vez Fernando entrou no quarto, abafando os passos, a criada que velava tinha sahido; uma somnolencia pezava sobre as pálpebras de Margarida, continuou a dormitar na immobilidade d'este somno apparente. Fernando quedouse a íital-a ioagamente, com os olhos afogados em um fluido de muito enternecimento, o espirito abysmado em um scismar profundo; curvou-se para o leito, recuou hesitante, mas como que attrahido de uma fascinação dobrou-se mais, reprimindo a respiração, e beijou-lhe fagueiramente a testa, roçando muito de leve os labios, com uma timidez respeitosa, como se beijam as cousas santas.

Margaria teve vontade de se erguer no impeto de uma expansão jubilosa e feliz, abrir-lhe os braços, enlaçarem-se, arrancal-o á fascinação d aquella mulher, e lançarem-se doidamente alegies nos espaços livres e luminosos de um futuro desanuviado. Mas não; conteve-se, seria mais tarde, agora era um grande abalo, uma commoção muito forte e o dr. Barreiros dizia -- Isto vai muito bera, mas socego, muito socego, que não venha qualquer complicação, isso é que é preciso evitar.

Pensava no seu filho, esta ideia retrahia-a, e deixava-se ficar calada, muito ennovellada no seu ninho de roupas finas, e a esperança que lhe descia á alma, como um raio de sol que se escoa em um subterraneo sombrio, escorrendo de humidade, inundava-a de uma doçura consoladora, de um conforto vitalisador, ao mesmo tempo que a saude vivificava o corpo abatido.

Ao quarto dia teve licença para se levantar, sahiu da cama com grande alvoroço, a modorra quente dos lençoes afiligia-a, aquella estagnação morbida nas mollezas do leito repugnava-lhe; mergulhada em um ambiente mal renovado que se viciava sentia um mal-estar, que lhe amollentava o corpo; n'aquelle momento a ideia da doença dava-lhe arripios repulsivos, como se um reptil nojento se lhe arrastasse pelos membros com a sua molleza humida. Queria sorver a saude na larga respiração do ar puro, que lhe vivificasse a sua dupla existência de mãe. E depois o halito mau da doença crestar-lhe-hia a frescura do rosto, e ella queria agradar a Fernando.

Antes de sahir da cama imaginava-se forte, tinha impaciências, fazia projectos alegres de lidar muito, tocar piano, passear no jardim; mas depois de se levantar teve o desconsolo de uma desillusão, as pernas tinham entorpecimentos vacillantes e a cabeça um leve esvahimento. Ficou triste, desconsolada. Foi vêr-se ao espelho, estava mais magra, tinha a tez muito branca, os tecidos flacidos, os olhos levemente pisados com um olhar mortiço.

E deixou-se cahir com desalento em uma poltrona, pensamentos tristes esvoaçavam-lhe no espirito, como passaros que levantam vôo acommettidos de um panico. Se sobrevinha alguma complicação, se ia adoecer outra vez, se este estado de abatimento se prolongava muito e o seu filho ia tambem soffrer?!. .

E lembrava-lhe o caso contado por D. Guiomar. Mas não, o dr. Barreiros dizia -- Isto não prestou para nada, e agora em havendo cuidado e muita hygiene, a saude volta depressa--E ha- via de voltar, não tão depressa como ella desejaria, mas paciencia. . .

A convalescença caminhava lentamente, ficou ainda abatida por muito tempo, sentia umas fadigas que a quebrantavani muito, faltava-lhe a vitalidade que a vivificava antes da doença, deixava-se cahir por vezes prostrada em uma poltrona, e ficava por largo tempo esmagada em um entorpecimento preguiçoso; uma inelancholia descia-lhe sobre o espirito como uma nevoa humida; os olhos meio apagados flucluavam na indecisão de um vago esquecimento.

E a cada instante uma ideia triste perpassava na penumbra melancholica do seu scismar; a imagem de Adelina apparecia-lhe, avivava-lhe os seus terrores. Então fazia projectos de se abrir com Fernando, arrancar-lhe a promessa de abandonar aquella mulher; em quanto durasse esta incerteza a tranquillidade era impossivel.

Mas hesitava sempre, faltava-lhe a decisão, não se sentia ainda boa, arreceava-se das commoções, e adiava sempre. E se elle realmente a amava, a ella?!. . Mas, aterrada, repellia logo esta ideia, não podia ser, e promettia solemnemente de si para si, que, tão de pressa se sentisse mais forte, tomaria positivamente uma decisão energica.

E entretanto ia-se revolvendo inquieta no seu mal-estar, como um doente que se agita no leito sem encontrar lenitivo em nenhuma posição.

Com a progressiva convalescença de Margarida o espirito de Fernando serenava. A ideia de que a vida d'ella podia perigar dera-lhe rebate, por momentos, a todas as energias boas do seu caracter, acordara de uma lethargica apathia todos os seus impulsos honestos. Mas Margarida recobrava a saude, e o seu espirito ia-se desanuviando de terrores; ella apparecia-lhe todos os dias ridente, descuidosa na apparencia, ignorava tudo, e Fernando deixava-se arrastar na corrente voluptuosa da sua convivencia com Adelina, era um habito que se lhe entranhava na natureza, como uma embriaguez para quem se habitua á excitação das bebidas fortes.

A natureza sensual de Adelina desentranhava-se em todos os requintes da lubricidade, como em um combustão espontanea; da sua bella pessoa exha!avam-se, em uma facil abundancia sob o influxo das exaltações apaixonadas, todos os aromas penetrantes da voluptuosidade, como se vapora a intensidade olorosa de uma flôr ao contacto das caricias ardentes do sol tropical. E este ambiente enervante, estonteador envolvia-o como uma nuvem acremente perfumada, estagnava-o na inercia de uma sensualidade amarga e depravada. . .

Familiarisara-se com a torpeza em que se engolphara, como um caminhante que se afunda no lodo fétido de um pantano que lhe apparece de improviso; procurava tranquillisar a consciência com exemplos; como um criminoso, buscava n'elles uma cumplicidade attenuadora. Comtanto que Margarida, seu pai ou o sogro o não soubessem !.. E, como uma podridão que alastra, era assim que o sentimento moral se ia contaminando aos contactos gangrenosos da sua existencia adultera; corrompia-se como um corpo com vida se esphacela ao contacto de um cadaver.

De quando em quando a consciência luctava para sobrenadar á onda lodosa em que a alma se lhe submergia; diante de Margarida estava constrangido, o seu olhar franco d'ella, o seu sorriso suavemente melancholico, a doçura triste do seu rosto leal pungiam-no acerbamente, uma sombra cahia-lhe sobre a alma, roida de acerado remorso, como um nevoeiro espesso que abafa a claridade alegre de um dia de sol.

E andava sombrio, o seu caracter mudava de aspectos; vinha de fóra ainda quente das caricias do adultério, ainda palpitante, electrico, dos estremecimentos da paixão, e a consciencia do seu abatimento moral, em contacto com a pureza do lar honesto; exasperava-o, dava-lhe a ideia de uma macula asquerosa que se não lava, sentia um descontentamento immenso, um enjoo muito repulsivo de si. Ficava azedado, nervoso, agitado de um mal-estar que o punha em rebellião comsigo mesmo, sentia uma necessidade de explosir a irritação que o espicaçava, e fallava de tudo com acrimonia, muito excitado; as mais pequenas contrariedades da vida serviam-lhe de pretexto para se exaltar, espremendo do coração todo o travôr que lhe azedava a vida.

Margarida amedrontava-se com esta irascibilidade, é que Fernando talvez se enfadasse com ella, illudia-se na interpretação que dava áquellas incongruencias de caracter, esta desconfiança aniquillava-a, os seus propositos de se abrir com elle arrefeciam, as suas expansões affectuosas retrahiam-se geladas diante da frieza e das maneiras insolitas do marido, e as apprehensões sinistras voltavam a perseguil-a, esvoaçando como morcegos, que vagueiam em voos desatinados á hora triste do crespusculo.

Decedidamente o amor de Fernando escapava-se-lhe, a presença d'ella era-lhe penosa, elle ficava insensivel, inerte, aos seus afagos, ás suas tentativas de cordeaes desafogos. E um morbido desalento cahia-lhe na alma, como se lhe emborcassem no peito a frialdade de uma fusão de gelo.

Tinham passado quinze dias desde que adoecera e a convalescença parecia paralysada.

Este estado preoccnpava o dr. Barreiros, Margarida definhava-se, as faces tinham uma leve depressão, a suavidade da linha oval descahia em uma desgraciosidade oblonga, os olhos tinham-se cavado mais na saliencia de urnas olheiras permanentes, como pinceladas de tinta violacea muito diluida. Algumas vezes o rosto desmaiava em um descoramento doentio, ou então eram as faces que tinham um colorido quente e febril.

O dr. Barreiros observava, com um descontentamento apprehensivo, estes prodromos pouco tranquillisadores.

Na impossibilidade de atinar com a causa pathologica do estado morbido que Margarida accusava, foi levado a pensar na possibilidade de alguma causa moral, que podesse explicar aquelle depauperamento organico. Haveria porventura algum desgosto?.. Evidentemente havia uma tristeza n'aquelle semblante decomposto, seria só motivada pela doença? Na sua voz ás vezes parecia haver lagrimas! E na physionomia de Fernando tambem havia um ar desusado, estranhava-o desde certo tempo, andava mais grave, taciturno, elle nunca foi assim, reparava n'isso agora, e comtudo havia mais um motivo para andarem contentes.. . Sempre tinham desejado um filho!..

Apparecera alguma nuvem no horisonte limpido d'aquella felicidade conjugal?.. Que é o que lhes faltava para serem felizes?. . Provavelmente n isto andava alguma criancice. N'esse caso precisava de intervir, atalhar, prevenir em quanto era tempo. Das pequenas nuvens formam-se as grandes tempestades. Observaria, vigiaria.

Ia caminhando ao som d'estas cogitações, quando reparou no trem de Fernando parado á porta de uma Igreja. Entrou. Margarida estava ajoelhada junto da grade da teia, orava com recolhimento; no altar-mor tremeluziam os cirios com reflexos rubros em um throno de luz, punham uma claridade triste, impressionadora, na immobilidade silenciosa e adocicada do templo; vultos soturnos, paralysados no entorpecimento devoto, ciciavam orações, que davam um leve susurro beato ao silencio grave do templo; havia uma taciturnidade gelada, como que impregnada da frialdade do pavimento lageado, sentiara-se ainda no ar uns restos subtis de incenso, misturado com o cheiro mystico da cera que arde; o sol batendo nas vidraças de côres, cobertas de panno vermelho, davam uma luz tibia e afogueada, de uma melancolia morna; por uma fenda coava-se um raio de luz, e o pó fino, impalpável, que andava no ar, visto atravez d'aquelle reflexo luminoso, como atravez de um prisma, dourava-se, iriavase, como uma columna de luz sobrenatural, e esta radiação, incidindo sobre um dos altares, ia aureolar o semblante de uma Madona.

Margarida tinha a cabeça e o busto curvado em uma attitude de concentração supplicante e fervorosa; de quando em quando levantava o rosto com os olhos marejados de lagrimas, fitava o throno luminoso que tinha diante de si, na retina humedecida aquellas luzes baralhavam-se, confundindo-se no intenso fulgor de um nimbo radioso e dourado, e sua alma atravessava aqueile fulgentissimo clarão, evolando-se para as alturas.

Lembrava-se dos extasis celestiaes com que fora embalada no collegio, interrogava a Deus se nao teria sido melhor para ella ter ficado alli, na ignorancia da vida, adormentada na doçura de uma pacatez beata.

Depois com uma afflicção imprecativa, volvia os olhos para o semblante doloroso da Virgem, era um olhar longo e desolado; a cabeça cahia de novo inerte, esmagada ao peso de uma oppressao que a devastava, o peito dilatava-se-lhe na suavidade de uma respiração larga, como se a alma se abrisse, linitivada ao sopro brando de uma consolação que descesse sobre ella.

Quando se ergueu o dr. Barreirosjulgou surprehender-lhe nos olhos, ardidos de uma vermelhidão, vestigios de lagrimas. Elle occultou se para a deixar passar, Margarida descia o véo sobre o rosto.

Quando sahia da Igreja para entrar no coupé, Adelina passava em um landau espectaculoso, Margarida encobriu o rosto com o guardasolinho de seda preta, Adelina cravou n'ella um olhar ardente.

O dr. Barreiros affastou-se pensativo.

XXI Entretanto o outomno adiantava-se, as arvores alinhadas pelas ruas com solemnidade pedantesca, desempenhando constrangidamente, como grotescos parvenus, a sua missão ornamental de comicos boulevards, desfolhavam-se melancolicamente, apresentavam as suas folhagens anemicas, como que atacadas de chloroses no ar pouco oxygenado da cidade, e, mostrando tristemente os braços descarnados, como giganteos doentes dyspepticos, preparavam-se para entrarem nas grandes catacumbas do inverno; as folhas, que iam cahindo como grandes lagrimas saudosas de melhores tempos, alastravam o chão de redor, faziam pequenas danças macabras rodopiadas pelo vento, e com os seus rangidos seccos davam a ideia de ruidos de esqueletos que se roçassem segredando queixumes.

No Palacio de Crystal os occasos esplendidos, espreguiçando-se pelas amenidades da paisagem, na divagação de uma suave melancolia, tinham clarões elegiacos, scismadores, presagos das estrophes lacrimosas das chuvas, dos arquejos soluçantes da ventania que entoam o grande Dies irae do inverno.

Luiz continuava a viver ralado de cuidados, no meio de apoquentações de dinheiro, apertado pelos credores e pelas contas das lojas. A despeza tinha crescido espantosamente com o trem montado, o dinheiro da venda da quinta estava esgotado, já tinha reformado a primeira letra e assignado outra, os juros accumulavam-se. Tinha jogado e perdia mais do que ganhava, e um dia, desorientado, depois de ter pago uma conta, que o deixava em penosa situação, dizia a sua mulher:

-- Isto decididamente assim é que não pode continuar. Não vejo outro remedio, é apear o trem...

-- Não, isso é que não... Então é melhor sahirmos do Porto. Tambem tu... sempre o mesmo, com qualquer cousa perdes a cabeça!...

-- Sim, eu queria-te ver no meu lugar... Mas faze favor de me dizer como hei-de arranjar dinheiro, sim... fazes-me n'isso muito favor... Só os juros é uma ladroeira... e accumulados... sabes lá o que isto é... por ahi além um sorvedouro! Teu pai está robusto, proraette viver muito, onde irá isto parar á espera de sapatos de defuncto?... Se viver muito, quando chegarmos a receber a herança, já ella está nas unhas dos credores.

-- Lá apear o trem, isso é que não -- E Adelina, repimpada em uma poltrona, com os braços traçados no peito e o queixinho apoiado á mão direita, meditava com uma grande seriedade no semblante -- Olha lá, e teu tio Felisberto?... -- E o rosto illuminava-se-lhe de uma ideia subita.

-- Que tem o tio Felisberto? Ir-lhe pedir dinheiro?

-- Nao. Não me disseste que elle tem alguma fortuna? Está velho, muito doente. Se tu herdasses? .. .

-- Lá rico não é, tem alguns contos de réis de economias, e a casa, cheia como um ovo, ainda dá alguma cousa bem apuradinha em leilão.

É muito meu amigo, isso é. . . e eu sou o único sobrinho que tem á mão. . . Herdar! Elle não era má pechincha, não!. . . Mas nós fazemos tão pouco caso d'elle. Tu nunca lá vais. . . Ainda o outro dia se queixou.. . e não é com vinagre que se caçam moscas. . . Que aquillo está mal, isso está. . . Ainda o outro dia o achei mais acabado, com o nariz cada vez mais para a cova.

-- Mas então ahi está, é pôr-lhe os meios, eu estou prompta. . . é um sacrifício, é, coitado! tenho pena d'elle, mas verdade, verdade, faz nojo.

Paciencia. . . Está dito, estou prompta. E então é tratar d'isso e entretanto vai-te arranjando como poderes.

Felisberto de Mello era o tio materno de Luiz, a cujos cuidados estivera entregue, quando veio para o collegio do Porto. Filho segundo formarase em Direito para ter um modo de vida, era solteiro e estivera como juiz em Coimbra, viera depois para a Relação do Porto; velho e doente, pedira a sua aposentação de desembargador.

Era raagrinho, muito engoiado de compleição, apaparicava-se muito, precisava de cuidados com a saudinha, graças a elles é que ia quasi arrastando os seus setenta.

Mas o peior de tudo era o sangue -- dizia -- o peito e o estomago não eram mausitos, mas o sangue é que era o diacho, tinha vicio que se manifestava em uma molestia de pelle, que o mortificava. Comtudo nunca quizera tomar grandes remedios, tinha medo de mixordias, podia recolher a molestia, conhecia casos, isso era sério, nada de drogas, antes deitar para fóra.

Era de indole pacatinha, muito severo no seu viver habitual, nunca se irritava, nem era para pressas, uma pessoa doente o que precisa é tratar de si, frenesis não dão saude, e andava muito de vagar pelas ruas, nas subidas parava de vez em quando, com o pretexto de olhar para qualquer cousa. Era muito methodico em todas as suas cousas e actos, tinha os papeis eramassados com muita ordem, com todas as rainuciosidades de datas, mezes e annos, e além d'isso numerosos livrinhos de lembranças, onde apontava datas memoraveis, e o que tinha a fazer em certos dias.

Excellente pessoa, muito cortez, de umas civilidades do tempo da gavota e do minuete; ao cumprimentar tirava a luva, e punha-se logo em passo de dança, com um sorriso engatilhado; vestia sempre de preto, muito escovadinho, pontualissimo em visitas e cumprimentos, e nunca fallava alto.

Tomava rapé, mas ninguém lhe via um atomo no peito da camisa ou no casaco, sorvida a pitada sacudia-se todo com piparotes.

Não podéra casar, era feio e a irrupção cutanca, dando lhe ao rosto um aspecto repellente, com uns purpureamentos encodeados e tabidos, fôra tambem um grande obstaculo ás suas tendencias matrirnoniaes; tivera desgosto com isso, doente como era precisava de um arranjinho caseiro.

Felizmente que se lhe deparara na vareda da sua vida solteirona a snr.a Angelica, uma preciosidade, uma providencia.

Conhecera-a quando esteve em Coimbra, era a sua engomadeira. Tinha sido criada de servir, casara depois com um sapateiro da cidade baixa, e em tão má hora que foi a sua cruz, o homem deu-lhe muito má vida, passou trabalhos, era um valdevinos que se embriagava, que lhe dava maus tractos, e foi por fim parar á costa de Africa.

Ficou desamparada, mas foi um alivio para ella, felizmente tinha aprendido a brunir, veio para o bairro alto e deitou-se a engomar para estudantes, lentes, gente fina. Como era uma boa moça, a freguezia não lhe faltaria. E depois, com o corpo escorreito e o palmito de cara que Deus lhe deu, quem sabe o que seria?. . E era bom ir pensando no futuro, um descanço para a velhice.

Já no tempo em que ainda era moça de recados quando ia á agua do rio, saracuteando-se com umas quebras de cintura nos meneios equilibradores do cantaro que levava á cabeça, todos os olhares se voltavam. No caes então era uma esturdia com os estudantes; debruçados sobre a grade de ferro, não tiravam os olhos da carnação branca da sua plastica correcta, e os madrigaes bregeiros esfusiavam.

Veio a ser engomadeira de Felisberto e em tão boa hora que lá lhe ficou em casa. Foi um arranginho para elle, ninguem até então o tractara com tanto mimo, ninguem como ella sabia preparar um caldinho restaurador, confortativo, tinha emfim achado o que precisava, e até parecia que a carne se lhe dilatara no bem-estar de uma melhor saude.

Desde então a casinha tornara-se para elie um paraizo, um confortosinho; a Angelica era muito arranjada, os trastes andavam lustrosos como um espelho, a casa aceada como um palmito, a roupa branca muito concertada, ponteada, com um cheiro doce a alfazema, havia um bem-estar muito pacato, um silencio salutar só cortado de quando em quando pela cantiga catharrosa da velha cosinheira, ou pela voz muito timbrada da snr.a Angelica, que tirava sua vaidade da frescura do seu orgão vocal. A casa era velha, tinha ás vezes um cheiro sediço a bafio, relentado, mas ella tinha o cuidado de a defumar, de quando em quando, com assucar e alecrim queimado, o que lhe dava um cheiro de tranquillidade adocicada e enjoativa.

A snr.a Angelina pelo seu lado dava louvores á sua boa fortuna..

-- Não que também já era tempo de arranjar um descançosinho na vida, os annos iam passando, e o corpo não é de ferro. Quando se lembrava do passado até tinha tonturas; com o pelintra do homem levara vida de negra, depois esfalfou-se com o ferro ás voltas, uma trabalheira, moirejar toda a vida e sempre na cêpa torta, não que até era uma dôr de consciência, e já começava a ter queixa de peito. Mas agora, louvado Deus !. . havia tempo de estender a perna. . .

Elle é verdade que na sua vida nova havia cousas niquentas, mas também não podia ser tudo ao pintar, e em comparação dos trabalhos que passou, ai. . . isso nem fallemos, era mesmo um maná, um céu aberto, nem queria lembrar-se, e então toca a gosar, é tirar a desforra. Que o diacho do homem, Senhor me perdôe, é mesmo um monstrengo, mas. . .

E com esta reticencia discreta a snr.a Angelica cahia no abysmo dos seus mais intimos pensamentos, pondo termo aos monologos, que costumava fazer em voz alta, quando se punha a malucar na sua vida.

Já dobrara o cabo dos quarenta, mas estava ainda frescalhona; com a melhoria operada na sua vida, como succede principalmente ás naturezas fortes que passam das privações para os regalos da carne folgada, a sua organisação robusta dilatara-se na plenitude de uma nutrição sadia, que lhe dava uma apparencia ainda de apetite.

Se não que o dissesse o visinho, official de marceneiro, que trabalhava na loja fronteira, um rapazola bem talhado, de olhar finorio, o qual tinha uma intima relação com as reticencias pudibundas, com que a snr.a Angelica costumava rematar alguns dos seus soliloquios.

É verdade que o Antonio Padim lá tinha outras razões para cultivar aquella convivência amorosa, continuando a lisongear com o incenso adulador de um coração rendido as fraquezas chochas e piegas da quarentona.

E depois convinha pensar que o ginja do velho era um solteirão, sem filhos, podia-lhe até deixar tudo. . . uma pechincha!

Foi n'estas circumstancias que as visitas de Luiz e Adelina começaram a ameudar-se a casa do tio Felisberto.

-- Decididamente temos mouro na costa, Antonio, os melros não largam a porta, hoje cá estiveram ambos, outra vez. Temos tramoia, puzme a escutar, não imaginas, que candunguices!.

Uma patifaria!, i E então ella!. . aquella delambida, sempre toda enjoada, como agora desceu das tamancas toda derretida!.. a desavergonhada, ah! bom arrocho. E a snr.a Angelica imitava os modos de Adelina dando ás feições uma expressão alambicada de tedio, e á cintura nedea meneios rotatorios, abaixando e levantando um pouco o corpo nas pernas curvadas, e completava a diatribe com um arremesso expressivo, fechando o punho.

Passava-se esta scena em um quarto ao rez do chão, destinado por ella para engomar e tractar da roupa da casa, e onde costumava introduzir de noute, clandestinamente, o Antonio Padim.

-- E elle a respeito de testamento, nada?. .

-- É que agora mesmo nada, d antes ainda fallava n'isso, e que tal sim senhor, que me havia de deixar pão para a velhice, que eu seria a sua principal herdeira, e muitas ahzunices, mas agora parece mesmo pelo mafarrico, desde que os meliantes se lhe metteram em casa. .. moita.

Um desaforo! temol-a travada, Antonio, temol-a travada, é o que te digo. Ora o forreta, estou a vêr que m'a prega mesmo na menina do olho, não que é mesmo para isto que estou a atural-o... o diabo do murcão... -- E a snr.a Angelica, sentada defronte do Padim, os olhos colericos, arregalados, bateu sobre os joelhos roliços duas fortes palmadas com a indignação de quem sente a injusta espoliação de uma cousa que lhe pertence de direito.

No dia seguinte a snr.a Angelica enchia a casa com ais, andava com modos arrastados, fazia as cousas com má vontade, esquecia-se de outras. Felisberto chamava-a, ella não vinha, ou vinha só depois de o fazer esperar, entrava suspirosa, toda queixosa, com ares fatigados, muito despegados, aborrecidos.

Felisberto estava aterrado, que teria a Angelica? Andaria doente?.. E via-se deslocado nas suas commodidades, sentia um mal-estar, um transtorno nos seus hábitos perturbador da sau, de, e o moral affeetava-se-lhe, o espirito cahia-lhe em um terror, em uma prostração desalentadora.

E para mais no seu estado de saude cada vez mais melindroso, se elie cahia de cama... com a Angelica n'aquella disposição!.. Mas era de tremer, era de tremer, seria o mesmo que atirarem-no á cova!

E com esta ideia affigurava-se ao desgraçado ver diante de si o proprio caixão, que o havia de levar para o cemiterio, sentia toda a sua alma cahir-lhe aos pés, e todo o seu ser alluir-se em um esphacelamento de pusillanimidade e terror. Promettia de si para si ter uma explicação com a Angelica, mas faltava-lhe o animo, mais logo... á noute, e ia adiando a sua resolução, assalteado sempre de apprehensões, desalentos, terrores imaginários, que o aniquillavam, e o íaziam desgraçado.

Costumava deitar-se ás dez horas da noute com pontualidade invariável. Apezar de solteiro tinha uma larga cama de casados, de cabeceira e armação alta, coberta, como uma barraca de campanha, de um cortinado de cassa, amarellado pelo uso e pelo pó, debruado de um froco de la vermelha e branca; ao lado havia uma mezinha de cama com dous degraus, por onde elle subia para escalar o leito, muito alto para a sua estatura.

A snr.a Angelica costumava assistir sempre aos preparativos da sua toilette nocturna, e logo n'aquella noute notou, aterrado, que a Angelica o não ajudava, segundo o costume, a trepar á cama; observou igualmente que lhe faltavam outros pequeninos cuidados, e a alma vestia-se-lhe de negro.

Sentou-se na cama, e sentiu-a mais dura, o folhelho não estava remexido, afofado, como era costume, e esperou o caldinho que tomava sempre áquella hora e n'aquelia mesma posição. Tinha uma timidez assustada no olhar, de muita cobardia, os homoplatos descarnados faziam saliências agudas atravez da camisa, o corpinho esguio, derreado, e a cara rubra, escoriada, em contraste com a grandeza do nariz rombo e grelado na ponta, destacavam comicamente debaixo do barrete branco, ponteagudo, enterrado até ás orelhas.

-- Ai! Angelica que o caldinho está hoje tao salgado. ..

-- Ora adeus, isso é do seu paladar. Tambem o senhor d'aqui a pouco ninguem o pode aturar... Bem faço eu em pensar. ..

-- Em pensar o que?... -- Inquiria com os olhos esbugalhados de terror.

-- Olhe... com, assim o melhor é dizel-o já, não tencionava ainda, não, mas o que tem de ser... seja, e é o meu genio, assim, pão pão, queijo queijo. -- E adoçando a voz com uma dolência muito lamentosa--Olhe, snr. Felisberto, estou deliberada a ir para o Brazil...

-- Para o Brazil!..

-- Sim, senhor, para o Brazil. Custa-me muito, é verdade, mas a gente precisa de pensar na vida, porque emfim o senhor já não é nenhuma creança, ha viver e morrer, e em quanto é tempo é que é arranjar o pão para a velhice.

Em o senhor esticando a canella, não hei-de ir roer ossos... E depois estou informada... aquillo em poucos annos, para quem não quer luxos, é arranjar o bocado para a velhice... E graças a Deus, o trabalho não me assusta, e em quanto ha saude, e com estes braços, é trabalhar, é aproveitar -- E arregaçando uma das mangas mostrava o braço roliço e branco.

-- Mas, oh, Angelica!.. por amor de Deus!..

Quem lhe metteu essas minhocas na cabeça!.. E as febres. .. e os que lá deixam os ossos, e os que voltam, em que estado véem!..

-- Acabou-se, quem não arrisca, não perdeu nem ganhou. E então já agora deu-me a veneta, estou deliberada, vou experimentar. Não, snr. Felisberto, santa paciência, lá isso arrumou. .. Não que em o senhor faltando, não hei-de ir pedir uma esmola.. .

-- Mas valha-a Deus, quem lhe disse a você que havia de precisar?.. Então eu não lhe tenho dito que havia de deixai a livre de necessidades?

-- Contestava o pobre homem com voz sumida, gagejada, cheia de terror.

-- Ora endrominas! Quem espera por sapatos de defunto!.. Ha quanto tempo anda o senhor a azoinar-me os ouvidos com essa cantiga?

E por fim tudo lérias... E depois o senhor tem parentes, o sangue sempre puxa, elles ahi andam, não largam a porta; é o que elles querem, isso logo se vê. Sim, porque lá isso custa -- E torcendo nos dedos as pontas do lenço de merino de vistosas cores, traçado no seio opulento, deixava cahir a voz em uma lamentação muito chorosa -- A gente toma affeição, cá de dentro, a um homem, anda toda a vida a apaparical-o, a trazel-o nas palrainhas, não faltam trabalhos, a gente esfalfa a saude, gasta a sua substancia... e quando Deus quer, só pagam com ingratidões. E depois lá vem um dia um parente, que se não importa com a gente, o que quer é deitar os gatasios ao dinheiro para os luxos, para andar no galarim, e depois passe lá muito bem, e a escrava que fique para ahi a gemer, que vá dar com os ossos a um hospital. Não, snr. Felisberto, tenha paciência, lá uns, que nao fazem nada, comerem a carne, e os ossos para os que trabalham, temos conversado.. . Custa-me muito, custa, porque emfim quando se cria affeição a um homem, cá de dentro. . . -- E com ura enternecimento na voz levava aos olhos a ponta do avental.

Dias depois d'este colloquio a snr.a Angélica dizia ao Padirn, com grande alvoroço.

-- Está tudo arranjado, agora podem ventar a porta os taes passaros bisnaus. Ora tomai lá, meus pombinhos, que desteis com as ventas em um sedeiro, ha-de estalar-vos a castanha na bocca, não que até o diabo se ha-de rir. Ora não ha!..

-- E agora a carcassa do velhote pode rebentar á vontade, e, se estourar de pressa, não se perde nada. E ir-lhe apimentando a comida, eh, eh, eh... -- E o Padim com uma expansão jubilosa abraçava as espaduas anafadas da snr.a Angelica.

-- Ai! meu Antonio que se me vejo livre do trambolho!.. Até me ha-de parecer um sonho!..

casada comtigo, tu a mandar os officiaes na tua loja de marceneiro, e eu na lida do governo da casa!.. -- E o olhar afogava-se-lhe ternamente na perspectiva de felicidades apetitosas e abundancias futuras.

XXII No dia seguinte áquelle, em que Margarida orou na igreja, estava ella sentada á janella do seu quarto, em uma attitude prostrada. Com uma das mãos descabidas com desalento segurava o -- Vigario de Vakfield -- de Golsmith, a cabeça inclinada para traz pousava com abandono desconsolado no espaldar da poltrona, seguia com a vista uma nuvemsinha que se esfiava e perdia na limpidez garça e desmaiada do céu; um vento fresco, do norte, varria o céu de nuvens; cisco e folhas sêccas rodopiavam na rua com um sussurro melancholico; a nortada dava á atmosphera umas ondulações frias que prenunciavam o inverno; uma penna escapando-se do redemoinho dos ciscos da rua voluteava, subindo em vôos caprichosos, e Margarida dirigia olhares vagos da nuvemsinha que se esvahia para a penna que doudejava. Depois olhava para a torre dos Clerigos que se erguia sombriamente com a sua cor de granito tisnada pelo tempo, envolvia-a o fumo de uma chaminé proxima, os clarões do poente illuminavam a fumarada, e a torre parecia phantastica.

mente devorada de um incêndio; as vidraças da casaria fronteira ao sol poente refrangiam as radiações do sol cadente, reflectindo-se em aureas scintillações, semelhando phantasiosamente fulgidos palacios dourados.

Na loja fronteira um funileiro batia a folha de Flandres com uma regularidade monotona, que sacudia o ar na vibração de uma sonoridade triste.

Em frente da casa parou um pequeno carro de madeira, muito raso, puxado por dous cães, dentro um velho cego ennovellava o corpo magro e necessitado em uma attitude esmagada e miserável; uma creança de seis annos com a mãosita redonda e vermelha, movia a manivela de um pequeno realejo, gasto e surrado, que remoía, em notas surdas, cansadas, uma musica rouca, que deixava na atmosphera uma lamentação melancólica, como uma lamúria chorosamente cantada de pedinte.

Os olhos de Margarida descahiam para a realidade triste d'aquelle singelo episodio do complicado poema da desgraça. Pobre creança! Naturalraente não tinha mãe, estava alli toda a sua familia, o pai velho e cego, os cães que se associavam com docilidade amiga áquella indigencia, e aquelle instrumento que interpellava os transeuntes com a sua cantilena lamuriante de mendigo. Era tudo! E aquella pobre creança caminhava despreoccupada, inconsciente, pelos caminhos tortuosos da miséria! Mas ao menos não tinha consciência da desgraça, elle! Cercavam-no affectos, os cães fitavam-no com olhares de meiguice intelligente, lambiam lhe a mão pequenina, e aquelle grupo mendicante lançava-se nas escabrosidades da vida, na harmonia do mesmo esforço e da mesma dedicação, e para ella, no meio da opulencia que a cercava, fazia-se de redor um vácuo, que lhe dava uma impressão acerba de solidão, isolamento e abandono!

E tinha lagrimas nos olhos, e vinha-lhe uma sensação de uma amargura muito desconsolada que a penetrava fibra a fibra até ao mais intimo do seu ser, quando o pequeno mendigo, com o bonet na mão, começou a relancear pelas janellas um olhar de uma supplicação humilde.

Sentiu-se toda revolvida de uma piedade muito commovida, teve uma vontade compassiva de chamar aquella creança, de a abraçar, de a beijar, de lhe encher as mãos de dinheiro, muito dinheiro... Mas uma voz disse á porta do quarto:

-- Está na sala o snr. dr. Barreiros.

Ficou muito embaraçada, tinha os olhos vermelhos do choro, foi ao lavatorio, applicou-lhes uma toalha molhada, forcejou por recobrar-se, e julgando-se mais serena desceu á sala.

-- Então como vai a doentinha?... É preciso enrijar, isto assim não vai bem -- E affectava um ar prazenteiro.

-- Que ia melhor, havia de melhorar. Então não tinha ella a tratal-a um medico tão bom que havia de dar-lhe saude?

E tinha na voz um tremulo choroso, uma entoação de resignação dolorida.

-- Mas é que a saude não depende só do medico, é preciso que o doente também ajude -- E tomava-lhe o pulso, cravando n'ella um olhar mais agudo que um bisturi.

-- Saude!... que é o que eu mais desejo!

Então eu não faço pela saude? Que mais hei-de fazer?

-- Não se affligir, por exemplo, não se mortificar, não chorar, como ainda agora...

A pallidez de Margarida afogou-se em um rubor descórado, fitou no medico os seus grandes olhos claros e espantados, mas começou a pestanejar muito, as palpebras bateram apressadas, e baixou a vista confusa diante do olhar fixo e penetrante d'elle.

-- Ah! Eu bem sabia que não me enganava, alguma cousa de extraordinário se passa n'esta casa. Mas isto assim não póde continuar! definha-se, minha senhora, está-se a matar a fogo lento, diga-me o que tem, confie em mim, tem um desgosto na sua existencia? Diga, está diante de um amigo, diga-me tudo, é preciso... e quanto antes, tudo ha-de ter remedio. ..

As lagrimas rebentaram dos olhos de Margarida em uma explosão de dor; sentia-se attrahida por aquella franqueza leal e amiga que vinha para ella em um impeto tão espontaneo de affectuoso e sincero interesse; inspirava-lhe confiança aquelle homem bom e honrado, sentia uma necessidade instante, irreprehensivel de desafogo, e as palavras sahiram-lhe dos labios freneticas, atropelladas, no impeto de uma excitação muito nervosa, contou tudo e concluia:

-- Soffro muito, tenho soffrido muito. . . muito, tenho devorado em silencio muita lagrima?

mas já não podia mais, a vida assim é irisupportavel, se Fernando está perdido para mim, é melhor morrer. Valha-me, snr. Barreiros, que remedio ha-de isto ter?. . . Pelo amor de Deus, se póde, salve-me. -- E arquejando em soluços, com o rosto descomposto, afogueado, tomava largas respirações meia suffocada, levava o lenço ensopado aos olhos, que rebentavam em borbotões de lagrimas, e apertava convulsa as mãos do medico.

O dr. Barreiros, estava attonito, afílicto, tinha-se levantado da cadeira, e, curvado para Margarida, segurando com respeitosa sympathia uma das suas mãos, procurava acalmar aquella crise nervosa.

-- Então... socegue... tranquillise-se, veja que isso lhe faz mal, tudo ha-de ter remedio, porque não m'o disse ha mais tempo?... Tambem o culpado fui eu, porque não acordei mais cedo?... Esta minha vida... esta minha vida!... Mas socegue, peço-lhe... pelo seu filho. . .

-- Eu mesma queria explicar me com Fernando, mas não me atrevia, tem andado tão frenetico!... uma seccura de modos... de arrefecer... parece que se enfada commigo, e eu tremia... Oh! se elle me recebia mal!... Parece-me que lhe cahiria aos pés fulminada... -- E Margarida apertava as mãos em uma contorsao, dirigindo uma supplicação allucinada ao dr. Barreiros, como se elle fora a sua providencia, o seu anjo da guarda.

-- Isso póde lá ser!... Era o que me faltava ver! -- E o seu semblante tinha uma expressão muito indignada -- Mas não, eu conheço bem Fernando, eu me entenderei com elle, verá como tudo vai mudar, verá como ha de cahir em si... Eu conheço-o, eu conheço-o, um tanto leviano, impressionavel, mas bom no fundo, um coração de pomba, e eu sei o que vale para elle sua mulher... Isso foi um desvario.. . mas perdoe-lhe, veja se pode esquecer... e verá que a felicidade ainda não fugiu.

-- Faça-me isso, snr. Barreiros, faça-me isso, e o passado... verei se posso esquecel-o... Heide esquecel-o, sim, hei-de esquecei o -- E os olhos de Margarida, muito inchados, raiaram de esperança.

Tinha batido a porta da rua, ouviam-se os passos de Fernando na escada.

-- Deixe-me ficar só com elle.

Margarida ia a sahir, mas voltou-se dizendo com um sorriso meigo, a doudejar de esperanças alvoroçadas:

-- Não o trate muito mal, não?

E sahiu correndo, Fernando entrava nasala, nem tinha ido primeiro ao quarto, tinham-no prevenido da visita do doutor. Este esperava-o de pé, com os braços cruzados, sombrio, colerico.

-- Que novidade por aqui a esta hora! Porque não vieste á noute?... Mas fizeste bem, jantas comnosco, já não te deixo, e Margarida, como a achaste, como está? Ainda não te appareceu?

Mas com que cara tu estás!. ..

-- Ora como ha de ella estar!... A nadarem um mar de rosas... Pois está claro! Mas tu deves saber isso melhor do que eu... -- E articulava as palavras com um azedume ironico, batendo o pé com frenezi.

Fernando estacou attonito.

-- Hein?!. . . Que diabo tens tu?

-- Eu.. . nada. Que hei-de eu ter? Que hade ter um pobre medico que passa obscuramente a sua vida chata, como as calçadas das ruas que palmilha todos os dias?. . . Eu nada posso ter que interesse, que estimule a curiosidade -- E a sua voz tinha um tom metallico, sacudido, de uma secura entre colerica e ironica -- Mas agora o meu amigo Fernando, que eu tinha por um rapaz honesto, transformado em Lovelace. . . talvez possa dizer-me alguma cousa de muito interessante das suas brilhantes aventuras!. ..

Fernando correu enfiado para elle, e relanceando olhares assustados:

-- Falla baixo!... Quem te disse? -- E afflicto agarrava-lhe o braço com uma pressão convulsa.

-- Deixemo-nos de mysterios, são inuteis precauções: Sabe tudo, e não vias, desgraçado, que estavas matando tua mulher... e teu filho!

Fernando ficou livido, deixou-se cahir aniquillado em uma cadeira; fincando os cotovellos nos joelhos, atordoado, esmagado de dor, escondeu o rosto nas mãos.

Na physionomia do dr. Barreiros fulgurou um sorriso de contentamento e triumpho, e abraçou commovido o amigo.

-- Ainda bem! Não me enganei, o homem honesto não está perdido.

Fernando ergueu-se de salto, como que impellido por uma mola, e com um impeto explosivo:

-- Deixa-me, sou um canalha, ura homem de bem não me deve tocar!... -- E logo, cahindo-lhe a exaltação, abraçou-se n'elle, suffocado -- Oh! Barreiros, como ha-de isto ser?!...

Margarida tinha entrado subtilmente, insinuou-se no grupo, e, em um relanço, Fernando estava enleado nos seus braços, com um estertor febril e amoravel.

Houve um silencio, soluçava-se, o dr. Barreiros affastou-se, olhava aquelles dous peitos que se estreitavam palpitantes, sentia uma commoção jubilosa, tremia-lhe nos olhos uma lagrima, uma d'estas lagrimas viris, que não rolam pelas faces e ficam presas entre as palpebras.

-- E agora para sempre! sim? -- E ella, enlaçada pelos braços do marido, correu a mao branca pela testa d'elle, e o rosto ainda quente das lagrimas tinha todas as fulgurações dos sorrisos bons.

O outomno tinha expirado, sentiam-se as primeiras frialdades do inverno.

Adelina andava impaciente, nervosa. Tudo se conspirava para a contrariar, Fernando tornara-se invisivel, escreveu-lhe, não recebeu resposta, estaria doente? Que significava este silencio?

E com uma zangasinha, muito irritada, tinha-se sentado com os cotovellos fincados a uma jardineira que occupava o centro do quarto, absorvendo-se nos seus pensamentos com as mãos apoiadas ás faces.

Luiz entrou no quarto, pallido, succumbido e cahindo com desalento em uma cadeira murmurou com voz sumida, arquejada:

-- Morreu o tio Felisberto!...

-- E então... o testamento? -- Interrogou Adelina com um olhar de avidez anciosa.

-- Um par de castiçaes de prata, o relogio d'algibeira... um sanctuario!... A Angelica é que ficou herdeira!. .. -- E passava a mão pela testa com gestos de afflicção.

Adelina, com um desapontamento fulminante, sentia todas as desconsolações indignadas da cupidez mallograda.

-- Não era grande a herança, não, mas n'estes apertos... vinha do céu -- Proseguia Luiz, muito succumbido, com um suspiro desalentado.

Passadas as primeiras impressões da surpreza Adelina sentiu a reacção da cólera.

-- Eu logo vi. . . Sempre tinhas um tio! oh!

que peça!.. e de uma moral, não tem duvida!..

-- E animava-se em um crescendo de irascibilidade--E por fim foi para isto que tanto o aturei, um caturra, um velho repugnante.. . e devasso. . .

Ao que eu desci! Só o que passei, quando jantava comnosco, que nojo!. . E para mais um luto!..

Bateram á porta, a voz de Adelina vibrou nervosa, impaciente.

-- Entre, que quer você?

-- É que está alli o sapateiro, diz que quer fallar por força com o snr. Albuquerque. E esta carta, do correio. -- E a voz da criada cantava com uma satisfacção ironica.

-- Mais esta ! Está ahi a conta ha que tempos, o homem tem mandado receber um ror de vezes. Imagina, ir agora aturar o sapateiro... Se podesses dar-me d'ahi algum dinheiro... do que lá tens...

-- Estás doudo!.. O disparate não está mau, estás servido... Sabes lá se me chega até ao fim do mez !..

-- Ora! podes lá gastar tudo... Era só por alguns dias, em quanto não se arranja...

-- Avem-te lá como poderes. Olha, agradece ao estafermo de teu tio -- E refastelava-se em uma poltrona, agitando o pesinho, e ao traçar a perna mostrou por baixo um pedaço de forro esgaçado no roupão, que já tinha um aspecto surrado e desmazelado.

E elle sahiu, cofiando o bigode, diligenciando dominar a sua atrapalhação debaixo de uma apparencia compenetrada de emphatica importancia, que se impozesse ao sapateiro.

Luiz passava uma vida attribulada entre afflicções de dinheiro. Vencia-se em breve uma letra, os credores apertavam-no, devia-se em todas as lojas, as contas não largavam a porta, já tinha havido vexames, por mais de uma vez ouvira em baixo, no portal, phrases desattenciosas em voz alta, insolente, os criados relaxavam-se, perdiam o respeito, davam respostadas, não paravam, e sahiam a rosnar da casa, a dar ao diabo os patrões.

E havia um grande desarranjo, um desmazelo crasso em tudo. A casa tinha o aspecto de um luxo aporcalhado, de uma sumptuosidade desconfortavel e sebenta; havia nodoas por toda a parte, o tapete da escada estava enxovalhado, encardido, os estofos tinham um aspecto surrado, os espelhos embaciados estavam pontuados pela passagem das moscas, havia nodoas pelos soalhos, dedadas suadas em algumas paredes, crustas sebosas junto das fechaduras das portas, os tapetes das salas com o fio novo tinham aspecto de velhice precoce e suja, e nos soalhos, onde nao havia tapete, sentia-se debaixo dos pés uma aspereza rangente que pedia vassoura.

Luiz passeava agitado em baixo na saleta de espera, tinha conseguido accommodar o sapateiro pagando metade da contaj mas ficara exhausto, quasi sem dinheiro, era preciso arranjal-o, mas como; Por falta de confiança, ou como pretexto para carregarem nos juros, difficultavamIhe não só novos empréstimos, mas até as reformas. Inculcando-se proximo herdeiro do tio, que estava com os pés na cova, podéra continuar a atolar-se nos lodaçaes onzeneiros, mas como seria agora sabendo-se que a Angelica é que fôra a herdeira do tio Felisberto?..

E deixou-se cahir com desalento em uma cadeira, o brilho dos olhos estava apagado, e movia-os vagamente, como a procurar uma ideia que não vinha, com a expressão de um idiotismo aterrado.

Andava magro desde certo tempo, as suas cores sadias desbotavam, a pelle que chegara a esticar-se nas faces com a radiação reluzente e corada da saude, relaxara-se, com tons biliosos de ameixa caranguegeira, que lhe davam um aspecto de pergaminho encarquilhado. E tinha saudades do socego camponez da sua freguezia, vinham-lhe reminiscencias sentimentaes d'aquella pacatez regalada, com a carne quente da meza farta, o espirito varrido de cuidados e a digestão leve e facil entre as cavaqueiras do bilhar e da botica e as libaçoesinhas descansadas dos copinhos de cognac.

Agora tudo eram ralações de dinheiro, toda a sorte de apoquentações, bebia sem goso, só para se atordoar, a comida azedava-se-lhe no estomago, jogava e perdia sempre, tinha dispendido infructuosamente um dinheirão na loteria. E diante da adversidade a sua alma incolor encolhia-se fortemente abatida em um amarfanhamento pusillanime, retrahia-se todo, como quem se paralysa e perde a acção motora dos musculos, engelhado de um frio intenso, ficava-se atolado em uma inercia sem a força de se lançar á voragem, identificando-se com a vida tumultuosa da dissipação, e tão pouco sem a energia de obrigar sua mulher e submetter-se elle mesmo ás severidades de uma vida modesta e mediana.

E n'aquelle momento, com o pensamento a trasbordar na amargura das decepções e dos desalentos, como se tivesse a alma a escorrer de fél, sentia uns desvairamentos aterrados, procurava com desespero allucinado uma taboa de salvação, e lembrava-se do Antunes. Aguilhoado pelo acicate da sua pusillanimidade aterrada, lembravase de lhe escrever, ir ter com elle, contar-lhe tudo, expôr-lhe a sua situação, explicar-lhe que não era elle o culpado, que este estado de cousas incomportável era obra de Adelina, de sua filha; que para o futuro teriam juizo, sujeitar-se-hiam a tudo o que elle quizesse; mas agora que lhe valesse, que lhe acudisse, por amor de Deus! que o tirasse d'aquelle inferno!

E com o cotovello fincado em cima de uma mesa deixou cahir a testa na mão com um desalento de uma grande desconsolação; e depois a mão cahia-lhe sobre a carta, que pouco antes a criada lhe entregara no quarto de Adelina. Já nem se lembrava d'aquillo, mas de quem seria?

Mais algurna conta?

Examinou o sobrescripto, não conhecia a lettra, revolvia-a nos dedos com o olhar fixo, estupidamente vago, receando abril-a. Não, decididamente nao a abriria n'aquella occasião, era de certo uma conta, quem poderia escrever-lhe? A sua correspondência era tão limitada, e conhecia a lettra das poucas pessoas que poderiam escreverlhe. Não queria saber, estava farto, não se podia respirar, o que precisava era socego, recobrar-se da agitação que o mortificava, pensar com serenidade na resolução que deveria tomar.

Levantou-se, ia a metter a carta no bolso, mas reparou mais no enveloppe, a lettra pareceu-lhe disfarçada, escripta de viez. Teve uma curiosidade que o mordia, que o beliscava, quem poderia escrever-lhe com lettra disfarçada e para quê?.. .

Abriu-a, foi com a vista directamente á assignatura, passou-lhe os olhos na rapidez de um relanço impaciente, fez-se livido, e releu com mais vagar, as lettras bailavam-lhe nos olhos entre faiscas:

«Repugna-me vêr um homem de bem ludibriado e o nome de uma familia respeitavel enxovalhado. Fernando de Azevedo é o amante de sua mulher; vele pela sua honra que anda abocanhada por toda a parte. Quem lhe escreve estas linhas é um homem que o estima e foi Um amigo de seu honrado pai.

Luiz ficou immovel, petrificado a olhar a carta com uma fixidez desvairada, depois levantou os olhos, circunvagou-os com abstracção idiota.

-- Não me faltava mais nada, não me faltava mais nada!.. -- E deixou-se cahir na cadeira com um abatimento miserável. Releu a carta, e de repente com um impeto:

-- Com os demonios!.. Mas isto é de mais!..

E desatou a passear com passo frenetico, amarrotando o papel, passando a mão pelo cabello, fitando olhares esbrazeados no soalho.

-- Estou farto, estou farto, tenho sido uma rodilha... o seu capacho... Mas lá isto é de mais.

Não, isto não pode ficar assim. . .

E com palavras procurava alimentar, excitar a sua cólera, todas as suas energias revoltadas de indignação, do mesmo modo que se ateia uma fogueira accumulando-lhe o combustivel.

-- Não que isto agora era preciso que eu fosse mesmo um safado. Tenho sido um asno, pau para toda acolher. .. Mas agora. .. Lá isso é que não... E que não se me faça fina, esmago-a, racho-a .. .

E galgou a escada quatro a quatro, entrou no quarto de Adelina como um tufão, atirou a porta com força, magestoso, formidavel.

Adelina escrevia na sua secretária com as costas voltadas para a porta. Ergueu-se com a pallidez da indignação, sacudida de cólera.

-- Que desproposito! Endoudeceste!

-- Talvez, leia isto, minha senhora, leia isto.

-- E com a voz cava, o gesto solemne, estendialhe a carta.

O papel teve um trémulo rapido nas mãos de Adelina, um obscurecimento instantâneo passoulhe pela vista, houve para ella um instante de fraqueza. Mas, recuperando-se logo, devolveu a carta com muita serenidade.

-- E então!... Que me diz a isto? -- E Luiz plantou-se diante de Adelina, com os braços cruzados, o gesto dominador, o olhar torvo.

Adelina encolheu os hombros com desdem.

-- Uma carta anonyma!.. Quer dizer, uma calumnia; eu sei d'onde vem o golpe, um despeitado, o tolo do Sepulveda, que obriguei a ser mais respeitoso... E tu acreditas em cartas anonymas!.. Fazes tu muito bem...

-- A mim é que já não me fazem o ninho atraz da orelha. Percebe? -- Bradou Luiz explosivamente com os olhos em braza -- Qual calumnia, nem qual diabo!... Eu agora percebo tudo, vejo claro, comprehendo certas cousas... E sabe que mais. .. Estou farto de ser um sevandija.

Mas Adelina, muito branca, o olhar coruscante, atalhou com uma rouquidão colérica na voz:

-- E quem lhe deu o direito de me insultar? Não estou para aturar mal creados, sabe? Já lhe disse que isso é falso, outro qualquer homem não se levava das primeiras impressões... e para mais uma carta anonyma! Mas do senhor já não estranho nada!... Não acredita? Está no seu direito, faz muito bem, o remedio não está em Roma, olhe, separemo-nos, é o melhor, disponha de si como quizer, eu volto para casa de meu pai, e acaba a minha cruz. E para isto... nunca eu de lá sahisse...

Um raio que cahisse aos pés de Luiz não o fulminaria de mais petrificante estupor. A separação depois de ter vendido o melhor da sua pequena casa!... E que havia elle de comer? E depois que havia de fazer, hein?... Bonita situação! ... E este raciocinio passou-lhe pelo espirito como um turbilhão, sentiu-se enleado dolorosamente nas roscas de um latego espicaçante, abraçou em um relance todas as consequencias da ideia suggerida por sua mulher, um atordoamento invadia-o, experimentava a sensação de quem sente o terreno escapar-se-lhe debaixo dos pés, os moveis oscillavam-lhe á vista em movimentos giratórios, um zumbido nos ouvidos estonteava-o, o sangue incandecia-se-lhe, dava-lhe picadas, como se na sua circulação arrastasse agulhas finíssimas.

Cedera a um impulso impensado, irresistível, de indignação, não previra o abysmo que se lhe abria de repente aos pés, e toda aquella exaltação que o inflamou de repente, que o galvanisou de insólitas energias, cahiu com igual rapidez, como um balão atravessado por uma bala, que encolhe e desce precipitadamente engelhado e inerte.

-- Mas.. . mas se não é verdade o que se diz.. . na carta, se tu... affirmas. ..

-- Acabemos com isto, não prolonguemos uma scena que me revolta, estou incommodada, preciso de estar só, pense e depois me dirá o que decide.

Luiz sahiu estonteado, as pernas cambaleavam-lhe em uma frouxidão trôpega e cobarde; ao sahir tropeçou em um capacho, que se lhe embrulhou nos pés; este contacto do capacho a enlear-se-lhe nas pernas, deu-lhe uma impressão moral pungente, humiliante, como se lhe cuspissem na cara.

XXIII Adelina continuava a esperar com impaciencia que Fernando lhe respondesse, mas os dias passaram lentamente, e cada um que rolava sem resposta vinha exacerbar a irritabilidade de todo o seu systema nervoso, e fazia-lhe o effeito exasperante de um insulto muito desdenhoso que a queimava, de um voltar de costas petulante, altivo, despresivel, como uma desfeita muito injuriosa.

Suspeitava o que se passava, estava mesmo adivinhando o que se tinha passado, descobrirase tudo lá por casa d,elle, tal qual como em sua casa, houvera scenas, Fernando cedera, Margarida recobrara a sua antiga ascendencia, exercia sobre o marido o magnetico prestigio das novas influencias, que resultam sempre das impressões nervosas de uma reconciliação, e esquecia-a, abandonava-a, a ella, rompia com tudo, assim seccamente, com aquella brusca crueza, provavelmente não fazia mais do que ceder a uma exigencia de Margarida. Ah! mas era humilhante, grosseiro, muito grosseiro!... E sentia uma irritação indignada afoguear-lhe as faces.

As contrariedades, que ultimamente lhe amarguravam a vida, tinham sacudido os seus nervos susceptiveis, com fortes ondulações vibrantes, de uma irritação muito dolorosa, mas sobretudo este silencio offensivo de Fernando levava-lhe a exaltação nervosa até ás perturbações de um estado verdadeiramente enfermiço. Fernando, elle!..

engeitava-a, como se engeitam as cousas que causam tédio depois de servidas, repellia-a com o pé, como se repulsam as mulheres que se revolvem na lama dos alcouces; sentia-se degradada, sevandijada, tratavam-na como um trapo inútil, usado, que se pisa aos pés, e vinha-lhe uma sensação de humilhação que a suffocava, que lhe ateava no sangue umas febres que a allucinavam.

Chorava de raiva, vinham-lhe ideias de vingança, tinha vontade de odiar, de fazer mal, de ver soffrer. E estas ideias subiam em um crescendo de febre que leva á exaltação delirante ou á mania de uma ideia fixa, que a envolvia, penetrava e subjugava.

Mas isto não poderia ficar assim, não, não succumbiria sem luctar, precisava de uma satisfacção ao seu amor proprio amarfanhado, sentia uma necessidade urgente, imperiosa, como uma sede que abraza, de ver Fernando subjugado ao seu prestigio, de atirar o seu triumpho á cara de Margarida.

E Adelina cercada por todos os lados de excitações que actuavam sobre a sua impressionabilidade nervosa, mergulhada no ambiente quente, electrico, das paixões intensas, como uma atmosphera fortemente perfumada que dá tonturas, sentia-se, como uma folha, apanhada nos circulos concentricos e rodopiantes de um vortice.

Á similhança de um destes contactos morbidos, impalpaveis, estranhos á nossa economia, que vao affectar qualquer parte do organismo, e provocam reacções tendentes a expulsar toda a causa de irritação interna, assim também ao toque d'estas ideias Adelina sentia uma necessidade invencivel de expellir como que por um movimento reflexo, todas as irritações que lhe enfermavam o espirito.

Ainda esperou alguns dias, mas depois Fernando recebia esta carta, que Adelina meditara muito, depois de inutilisar alguns rascunhos:

«O mal que me tem feito, não o avalia de certo. Perdi o seu amor? Será verdade, meu Deus! Mas se o seu esquecimento é horrível, o seu desprêso mata-me. Que fiz eu para ser tractada como a ultima das mulheres?.. Se o meu crime é este amor que me arrastou allucinada a sacrificar-lhe tudo o que uma mulher deve respei tar, outro qualquer poderia desprezar-me, mas tu, Fernando, tu nunca. Sim, tu... deixa-me tractar-te ainda assim, deixa-me ainda esta consolação por algum tempo, porque eu não posso resignar-me a despedaçar assim de repente todos os fios d'este amor que prendia a minha vida á tua!

Tortura-me embora com o teu abandono, mas ao menos não me desprezes, que não te mereço isso... a ti, o unico homem a quem amei e que nunca poderei esquecer, porque foi ao calor do teu coração, ao bafejo dos teus labios, que me senti vitalisada do unico raio de felicidade que me acalentou a vida. Nao é ao amante, por quem me aviltei que faço de joelhos esta supplica com o coração despedaçado, é ao homem de bem que se presa, é para a sua lealdade de cavalheiro que appello. Se perdi o teu amor, que não perca ao menos a tua estima. Bem sei que nasci sob a influencia de uma má estrella, era uma felicidade demasiado grande o teu amor! Separemo-nos ao menos como bons amigos, para que a vida não me appareça no futuro com aspecto tão horrível!... Decididamente, Fernando, nós nao nos podemos deixar assim!.. Se a mulher, que toda se te entregou, corpo e alma, te merece ainda um resto de deferencia, espera-me ámanhã, á hora costumada, para trocarmos o ultimo aperto de mão, um adeus franco e amigo.

Tua A.» Fernando leu e releu esta carta. Como Adelina sentada a secretária antes de a escrever, elle estava também com as mãos espalmadas, os cotovellos fincados, e absorvia-se em profundo cogitar. As palavras tocantes de Adelina faziam-no estremecer em todo o seu organismo até ás mais intimas fibras da sensibilidade; como um d'estes toques que poem em abalo todo o systema nervoso revolvia-lhe no fundo da alma todos os instinctos generosos; appellava-se para o seu cavalheirismo; sentia-se commovido.

E travava-se na sua alma uma lucta dilacerante. Rompera bruscamente com ella, fora uma promessa que tez ao dr. Barreiros e cumpriu-a, porque era esse o meio mais seguro de cavar um abysmo incommensuravel entre o futuro e o passado que o pungia. Mas Adelina, n'aquella carta, illuminava-se-lhe de novo aos fulgores das grandes paixões sublimadas,.e em troca d'essa obra de sacrifício e amor devia elle tractal-a como a infima das mulheres?

Não, era uma indignidade!..

E logo ouvia uma voz occulta que o arguia; a imagem de Margarida apparecia-lhe macerada, dolorida, supplieante; os contactos de Adelina affiguravam-se-lhe uma profanação infame, e ao toque d'esta ideia o cérebro inflamava-se-lhe, sacudia-se-lhe todo em estremecimentos, tinha visões perturbadoras, as duas imagens de Margarida e Adelina bailavam-lhe no prisma da imaginação, baralhando-se no cruzamento de contactos contradictorios e repugnantes; umas vezes as carne, palpitando de voluptuosidades dolorosas, rasgava-se-lhe nas engrenagens da paixão, outras vezes então sentia-se forte, como no momento era que se reconciliara com sua mulher.

Despedaçava-se n'esta lucta, e levantava-se, passeava no quarto absorto, torturado, com passos lentos, reflectidos. Era uma expiação, se era!..

Como custava recuperar o bem-estar da alma, o contentamento do coração, a serenidade da consciência, desde que tudo isso uma vez se perdeu, e se entrou em caminhos tortuosos? Estava sendo bem castigado! Mas já agora soffreria todas as consequencias do seu erro, esgotaria a triaga, mais um sacrificio. .. e depois voltaria para sempre a tranquillidade, a bonança no futuro!

Annuiria ao pedido de Adelina, e porque não? Assim ficaria mais tranquillo com a sua consciencia; parecia-lhe uma torpeza recusar este ultimo pedido a uma mulher que tudo lhe sacrificara; ella tinha razão, não merecia o desprezo offensivo com que se voltam as costas ás mulheres que se vendem; não, que ninguém podesse dizer d'elle que era um vil. Mas seria forte, e não tinha elle a imagem de Margarida a fortalecel-o? Por este lado estava tranquillo, e cumprido o que se lhe affigurava um dever inilludivel, entregar-se-hia então com todo o desafogo ás limpidas perspectivas que se lhe herisontavam aos interesses honestos que deviam para todo o sempre dirigir-lhe a vida.

Sahiu com passo resoluto.

Adelina tinha chegado primeiro, vinha offegante, um tanto pallida, o sangue já não lhe espirrava nas faces, como d'antes, com qualquer esforço, agora vinham-lhe ao rosto uns empallidecimentos doentios.

As commoções que nos ultimos dias a tinham abalado, a excitação nervosa que lhe levara uma grande perturbação a todo o seu organismo, communicavam-lhe ao olhar um brilho de metal; a nutrição carnudinha do rosto tinha cahido um pouco e amollecido; os olhos, parecendo mais rasgados, davam-lhe um ar mais interessante.

Tirou o chapéo, foi ao espelho, ageitou o cabello compoz a gravata de cambraia fina com rendas brancas delicadas, que davam maior realce á frouxidão morbida do semblante.

Sentou-se e esperou agitada, nervosa. Como deveria recebel-o? AfFectaria uma attitude dolorida, recebei-o-hia logo com expansões alvoroçadas, apaixonadas, ou com uma reserva magoado, de uma frieza digna?.. .

Relanceava a vista pelos objectos espalhados no pequeno aposento, em cada um fremia uma recordação deliciosa, uma sensação perturbadora; passavam-lhe pelo espirito, com toda a nitidez de uma realidade palpitante, recordações d'aquelle amor em que todo o seu ser se espreguiçara deleitosamente. O seu coração pulsava raais vehemente, e agora já não era só o despeito e o orgulho que a moviam, que a espicaçavam e entonteciam, excitavam-na tambem todas as febres, todas as nostalgias da paixão, que se lhe instillavam no corpo como philtros perturbadores.

Ao contacto de todas aquellas cousas, que lhe davam impressões voluptuosas, sentia se dilatar no ardor de novos desejos, como um corpo enregelado que de repente se dilatasse ao calor de um d'estes temperados dias estivos, em que toda a natureza parece latejar na expansão de uma larga e communicativa sensualidade. Sentia escaparse-lhe aquelle passado intensamente amoroso, aquella existencia toda entrajada no luxo superior de sentimentalidades fortemente atordoantes, em que se palpita a cada instante nas commoções de ineffaveis enlevos, e vinha-lhe um desejo imperioso, tyrannico de segurar, envolvendo-se n'elle, aquelle radioso manto de sensações, que lhe fugia.

Se Fernando não vinha! Já passava da hora.

Levantava-se inquieta, ia espreitar para a estrada, entreabrindo a cortina que tapava a janella, escutava os passos que soavam no mac-adam, toda vibrante, cheia de palpitações.

Se elle a abandonava positivamente?.. Mas era o requinte do desprêso, era a solidão que se fazia em volta d'ella! E relanceava pelo aposento um olhar espantado, cercava-a a immobilidade e o silencio, e a sua vida seria tambem aquillo. ..

o vacuo. .. a solidão. Quem a amava?.. O que faria sem elle? E a vida apparecia-lhe como o prolongamento de uma escuridão, que se lhe engolphasse na alma sem a luz de uma esperança a afugentar aquellas trevas. E, sob o império destas excitações, por momentos parecia-lhe a vida irnpossivel sem o amor de Fernando.

Ouviu-se o estalido de um fecho que abre, a porta rangeu, Fernando entrou, vinha muito pallido, commovido, parou olhando Adelina, com um esforço para acalmar a respiração oppressiva.

-- Cuidei que não vinhas -- E Adelina, depois de um momento de hesitação, correu para elle e apertou-lhe as mãos nervosamente.

-- Demorei-me, hesitei se viria.

-- Ah!.. . -- E fitava n'elle um olhar longo, incisivo, despeitado.

-- Mas tinha razão, Adelina, a sua carta, as suas palavras venceram-me, destruíram as minhas hesitações, não nos podíamos deixar assim, troquemos um leal aperto de mao e deixemo-nos como bons amigos.

Estas palavras exasperavam Adelina.

-- Então foi a piedade que o trouxe? Trazme a esmola da compaixão, obrigada.. . muito obrigada. .. -- E affastando-se franzia a bocca na lividez de um sorriso zombeteiro, de uma accentuaçao amarga.

-- Não esperava que me recebesse assim, não era a linguagem da sua carta. Isto não póde continuar, Adelina, sejamos rasoaveis, acabou, devia acabar, é impossível continuar. Adelina, separemo-nos serenamente, sem rancores... -- E, com intonação supplicante na voz, estendia-lhe as mãos, caminhando para ella.

-- De certo, muito bem, nadamais rasoavel, acabou tudo, hein? Nada mais sensato, que duvida! Uma cousa simplicssima! Uma pobre mulher ama, sacrifica-se, gosa-se tudo isto, em quanto nos dá prazer, depois vera a saciedade, o fastio, portanto arreda-se assim... com o pé. E adeus... fica-te para ahi, que eu cá vou para outro lado... Mas é bem feito, eu mereço tudo isto, é muito bem feito, mereço este castigo, sim, mereço... que me espesinhem, que me calquem aos pés como uma rodilha... Poderá... pois tu serves lá para outra cousa... Ah!... -- E as palavras sahiam-lhe da bocca em borbotoes com voz sacudida, spasmodica, e levou aos olhos o lenço machucado em crispações da mão convulsa.

Fernando tremia todo na vibração de uma commoção violenta.

-- Mas, Adelina... socegue... bem vê... Não é só por mim... é por ambos. Isto foi um desvario... uma allucinação... mas em quanto é tempo... -- E as phrases sahiam-lhe titubeantes, embrulhadas, fazendo lembrar uma mulher atarantada, que embaraça as pernas nos vestidos na allucinação de um caminhar precipitado.

Ah!... Pois de certo. Ha lá nada de... mais prudente juizo! apparece uma mulher que se entrega, com alguma belleza, com alguma frescura, e então tudo são protestos de amor eterno, exaltações apaixonadas, sacrifícios de tudo o que é mais caro, da vida até, se for preciso, comtanto que primeiro nos saciemos n'aquillo que nos fizera apetite. Depois é que lembra que foi tudo um desvario desculpavel, um sonho mau, mas tudo tem remedio, um bom aperto de mão.. . e disse, tudo acabou, ha nada mais simples?. .. Quem se lembra da desgraçada... Ah! isto é infame, simplesmente infame -- E soluçava enraivecida.

Fernando estava branco como a cal, aniquillado, sentia um atordoamento. E arrependia-se de ter vindo; na carta de Adelina não transparecia aquelle desespero, senão. .. não teria vindo; mas pelo contrario n'aquelle papel transpirava uma dolencia resignada que promettia outro desenlace.

Para isto é que não vinha preparado. Mas era muito bera feito, merecia isto, quem o mandara metter-se em generosidades cavalheirosas? Que má cabeça a sua!... E tinha vontade de fugir, de se vêr bem longe d'aquelle lugar, de nunca mais vêr Adelina, de a esquecer para sempre.

Não, em outra é que não cahiria.

E fazendo ura esforço, quebrando o entorpecimento que o petrificava, atirou estas palavras sacudidamente, como uma rajada:

-- Não era isto o que devia esperar depois da sua carta; trazia-lhe palavras boas, affectuosas; não as quer acceitar Nada mais tenho que fazer aqui.. . Adeus, Adelina. -- E estonteado deu alguns passos atarantados em direcção á porta.

Adelina precipitou se para elle, com um impulso automatico, enleou-se-lhe no corpo com deserpêro, enlaçou-o nervosamente.

-- Oh, Fernando, que me matas! Se soubesses como eu te amo! Não posso supportar a vida sem o teu amor, enfeitiçaste-me, que hei-de fazer sem ti?!... Tem piedade de mim!... Bem vês, estou louca!--E tremula, convulsa, estreitava-o nos braços com desvairamento, nos impetos de um delirio apaixonado, ao mesmo tempo, mordida no coração de uma avidez de triumpho, comprazia-se com acre deleite na vehemencia d'esta scena, que tinha para ella um forte sabor romanesco, e lhe excitava todas as mórbidas sensibilidades do seu temperamento. Havia para ella n'esta situação exaltada, a um tempo, a excitação de um espirito intensamente impregnado de sensualidades, e o enthusiasmo artificioso que apaixona os bons actores nos lances violentos.

E as faces de Adelina, que ainda mais se tinham avelludado na flacidez dos tecidos levemente emagrecidos, roçavam pelo rosto de Fernando, os beiços calidos murmuravam palavras supplicantes, apaixonadas, desfallecidas, o corpo pendia-lhe no enervamento da paixão, suspenso dos braços que se enroscavam no pescoço, como duas serpentes voluptuosas, nos estremecimentos de uma pressão a um tempo branda e fremente.

Fernando sentia-se perturbado até ás profundezas do seu ser, fazia um esforço supremo para não perder a consciencia de si.

-- Amar-te-hei com amor de escrava -- E o seu corpo, fazendo menção de ajoelhar, descahia languidamente, escorregava por elle com uma flexibilidade macia, langurosa.

Fernando curvou-se, passou-lhe a mão pela cintura para lhe solevantar o corpo, impedil-a de ajoelhar. Confundiram-se as suas respirações ardentes, oppressas, o peito de Adelina arfava, os seus beiços febris collaram-se na bocca de Fernando, e aquelle beijo escaldou-o, inoculou-lhe nas veias um fogo infernal que o allucinou.

O corpo de Adelina, um pouco inclinado para traz com fatigado abandono, pendia flexuosamente dos braços de Fernando. Ella fitava-o com uma flama humida no olhar.

-- Estás linda. . . linda. ..

E elle beijou-a com frenesi, com raiva voluptuosa e pungente.

Depois caminhava para casa, lentamente, acabrunhado, muito soterrado debaixo dos seus pensamentos soturnos, com uma intuspecção que o aterrava, sem comtudo lhe dar urna percepção nitida do seu estado moral.

Estava ainda fora da cidade, não passava ninguem n'aquelle momento, quando uma voz, de uma sibilaçao muito melíflua, veio arrancar-lhe o pensamento aos abysmos do seu cogitar.

-- Se v. exc.a fizesse a caridade de soccorrer com alguma cousa um desgraçado.

-- Nao póde ser, deixe-me.

Aquelle, a quem Fernando respondeu com desabrimento, era um homem magro de meia idade, de bigode grisalho, queimado dos cigarros fumados até á ultima migalha de tabaco, usava casaco rafado curto e acanhado para o seu corpo, e degenerado na uniformidade de um tom esverdinhado; as calças de côr indefinivel, esfarpadas e roídas na extremidade posterior, cahiam sobre umas botas crassas do pó e da lama das ruas, esbeiçadas, com a sola e os tacões gastos e cambados.

E acompanhando Fernando muito de perto, com um casquete coçado, encodeado, na mão, um pouco curvado em attitude de supplica mesureira, com um sorriso de uma doçura de hypocrita submissão, continuava. . .

-- Mas é que, exc.n mo snr.. . .

-- Já lhe disse que me deixasse.

-- Mas é que, snr. Fernando de Azevedo, eu sou muito necessitado. Eu podia procurar a a exc.ma snr de v. exc.a, e estava certo que se lhe contasse o que ainda hoje observei. . .

-- Seu patife!.. que o racho!.. -- Bradou Fernando fora de si, e apertou no punho a flexi vel badine de baleia, que estremeceu em elastica vibração.

Mas o homem do casaquinho esverdeado já estava a respeitosa distancia, e de longe, sempre com um sorriso de assucarada velhacaria, accrescentava com humildade refalsada e ironica:

-- Sou um desgraçado, exc.mi snr., tenho mulher e filhos, esta bocca é sagrada, incapaz de abusar, uma esmola, exc.mo snr., só pretendo uma esmola.

-- Tome... e saia-me diante da vista, e veja o que faz.

-- Obrigadissimo, exc.mo snr., obrigadissimo -- E com o olho ladino a coruscar, o pé no ar, recebia com toda a precaução das mãos de Fernando uma libra, desfazendo-se em cortezias -- E quanto ao mais esteja v. exc.a descançado, esta bocca é sagrada, aquillo foi pedra que cahiu n'um poço. Beijo as mãos de v. exc.a Um criado de v. exc.a.

E Fernando, todo vibrante de encontradas commoções, affastava-se com passo apressado, sacudido, resmoneando com um rugido colerico.

-- O patife!... Mas é bem feito. Ah ! eu mereço tudo isto, e muito mais... e muito mais...

XXIV Desde este dia a tristeza de Fernando recrudescera. Cahido o desvairamento, que n'aquelle momento de paroxysmo apaixonado o invadira em arremettidas doidas, o que lhe restava? Uma sensação de profundo desconsolo que o soterrava debaixo do pezo esmagador da consciência, olhava para dentro de si e parecia-lhe que não havia dentro do seu corpo uma fibra sã, e que todo o seu ser, intoxicado de uma podridão, cahia aos pedaços gangrenados em um total esphacellamento.

Com que desalento se revia no seu estado moral tão rebaixado! Como estava tâo differente do que era! Sentia o caracter esbandalhar-se em um amarfanhamento ignobil, era como que a impressão de quem sente despegar-se de si alguma cousa de immanente, o quer que seja de latente que d'antes lhe dava a força necessaria para trazer a cabeça alta, e esta sensação, como se estivera ferreteado com uma nodoa ignominosa, a todos patente e que se não póde apagar, dava-lhe um desprazer, um mal-estar de uma amargura insondavel!

E vinham-lhe umas saudades intensas, oppressivas, d'aquelles largos somnos tranquillos, que agora já não tinha, da sua vida passada que se desafogava ampla e luminosamente na plenitude consoladora de um ambiente salutar, como uma arvore cheia de vida e de seiva que se farta no bom ar sadio, erguendo desassombradamente a exuberancia florescente da sua alta copa; recordava-se com uma mortificação saudosa d'aquelles juilos espontaneos, d'aquellas alegrias faceis e que pullulam quasi sem motivo, como uma agua limpida que borbulha abundantemente e vai fecundar as vegetações que rebentam frescas e alegres.

E n'estes momentos de profunda e reconcentrada desolação, em que elle se dobrava todo sobre si, escutando attentamente todas as palpitações dolorosas da sua alma, parecia-lhe que dos olhos cahia um veu, atravez do qual até então só vira falho e falso; Adelina representava-se-lhe, toda desnudada dos atavios, dos prestigios e das superioridades que lhe attribuira e que o fascinaram, agora via apenas uma mulher sem a minima delicadeza de coração, uma creatura estragada, com o espirito enfermo e transviado, simples encarnação da mais requintada sensualidade, e a paixão que o vencera convertia-se em odio para si e para ella.

Tinha promettido a Adelina voltar ao -- pequeno Trianon -- como ella dizia pomposamente, mas não, nunca mais, não iria. Ah! agora sim, positivamente estava tudo acabado, bem acabado, e sentia um grande lenitivo em se aferrar inabalavelmente a esta resolução. Tinham sido uns escrupulos estupidos, de uma ingenuidade tola, que lá o arrastaram! Mas agora que viesse demovel-o da sua resolução, e comprazia-se com uma satisfação muito intima e consoladora, em tomar uma attitude forte de resistencia, assim elle podesse lavar aquella nodoa que estava sempre a apparecer-lhe e a tirar-lhe toda a esperança de serenidade !

E fazia projectos de queimar todos os moveis, todos os objectos que estavam dentro da casinhola que fora theatro dos desvairamentos, que ameaçavam devorar-lhe a verdadeira felicidade, e vinha-lhe a ideia de a arrazar, de a queimar, apagar todos os vestigios d'este passado repugnante, como um criminoso que procura aniquillar todos os signaes do crime.

-- Se o dr. Barreiros viesse a saber! Era horrivel! E tremia só de o pensar, a imagem severa do amigo apparecia-lhe como uma censura viva e causticante, como uma personificação imponente de um remorso implacavel, sentia uma vermelhidão nas faces, como se o esbofeteassem; ideias loucas, presagas, fervilhavam-lhe na cabeça, esvoaçavam, embatiam-se desvairadas, como um bando de corujas, espavoridas de noute, batendo as azas pelas paredes escuras de uma Igreja abandonada, e de noute, na cama, appareciam-lhe visões que lhe agitavam o somno.

Sentia-se cercado de um nevoeiro húmido, e além, diante de si, um foco luminoso, uma serenidade fulgurante que fascinava e attrahia, tinha uma aspiração vehemente, mortificante, para essa luz de tão suave scintillação, fazia um estorço desesperado para romper a nevoa que o envolvia e penetrava de uma humidade gélida até á medulla dos ossos, e aquelie horisonte limpido affastava-se como uma miragem. Outras vezes era o vulto suave de Margarida que lhe apparecia, tentava abraçal-a e a imagem de Adelina interpunha-se lúbrica e irónica, e o corpo de Margarida, áquelle contacto dissolvente, transformavase em uma sombra alvacenta, que se evaporava no ar como uma nuvem.

Fernando despertava apavorado sob a impressão d'estes sonhos afflictivos, e ao acordar, como atravez de um véo que lhe dava apenas uma percepção confusa das cousas, a vida apparecialhe de uma desconsolação medonha, e o futuro negro, cheio de horríveis pressentimentos.

No dia aprazado Adelina foi ao -- pequeno Trianon -- esperou debalde por Fernando, voltou a casa desesperada, despeitada, humilhada, com vontade de se vingar, de desaffogar toda a peçonha, toda a raiva que a suffocava.

Depois Luiz, quando veio de fora, disse-lhe com um grande allivio expansivo:

-- Safa! Livrei-me hoje de bôa, consegui reformar uma letra, que se vencia. O desalmado estava de pedra e cal, cedeu por fim, mas custou caro, um horror! D'esta estamos livres, mas qualquer dia o raio estala, não sei como ha-de ser, Adelina, nao sei como na de ser, a corda rebenta, isto não pode continuar assim.

As lamentações de Luiz ainda mais a irritaram, a vida assim era um inferno! Constantemente a aspirar a um estado feliz, e a felicidade a escapar-se-lhe, todas as espectativas anciosamente apetecidas a mallograrem-se cada vez mais!

Era atroz! Que má sina a sua! Era muito infeliz, muito desgraçada!.

E absorvia-se em cogitações de ura sentimentalismo enervante, em lamentações fatalistas e acirrantes, que não remediavam nada, sem pensar um instante sequer em tentar qualquer esforço para um estado melhor, limitando-se a dispender todas as suas energias, em se insurgir contra as contrariedades, que se oppunham ás suas phantasias, e todo o seu organismo se inflamava de irritações muito nervosas, exasperava-se, soffria, tudo eram infelicidades, tudo se conspirava contra ella, a mais pequena contrariedade da vida era uma injustiça atroz, uma desventura, queria que todos os atrritos se desviassem de per si, se desfizessem espontaneamente para ella passar sem ser molestada, que a vida se applanasse submissa e complacentemente, juncando-se de flôres, desdobrando-se em tapete macio que ella pisasse brandamente, que, finalmente, a existência se lhe accommodasse docilmente aos seus caprichos, e que em cousa nenhuma ella houvesse de se mallear aos incommodos da vida. E era assim que o espirito e o corpo se lhe enfermavam cada vez mais.

Mas n'aquella noute havia theatro lyrico, tinha assignatura em uma frisa, era a sua récita e a ideia do espectaculo fez uma diversão estouvada ao curso das suas ideias. Pegou no jornal, foi com a vista ao lugar dos annuncios, ia o -- Baile de mascares -- pela primeira vez.

Para não estar só no camarote escreveu um bilhetinho amavel a D. Guiomar, que se tinha feito muito intima de Adelina, principalmente desde que montara trem.

Ultimamente davam-se muito, D. Guiomar insinuara-se facilmente na intimidade de Adelina, fazia-lhe visitinhas amiudadas, muito cordeaes, era uma sympathia--dizia--que sempre a attrahira, logo desde que a conhecera, affagava-a muito com palavras unctuosas, macias, felinas, e até para a lisongear chegara a deixar cahir uns remoquesinhos picantes, umas picuadinhas, quando se fallava de Margarida.

Estava-se em pleno inverno. Adelina dentro do trem via os bicos de gaz torcerem-se nos candieiros com as lufadas do sul; nos cafés cheios de ruido, saturados de um ambiente quente, enfumarado, que ennevoava as luzes de uma transparencia azulada; o gaz scintillava atravez das portas envidraçadas, que transpiravam por dentro; as vitrines das lojas luxuosas, fartamente allumiadas, resudadas, semelhando vidro fosco, escorriam bagas de humidade, como lagrimas que sulcassem umas faces, e projectavam largas claridades que faiscavam nas calçadas, e a esta luz via-se o lageado dos passeios a reçumar de uma humidade reluzente; o trem rodava surdamente, escorregando com um som abafado, de uma doçura triste, sobre o mac-adam, crasso de lama.

Adelina olhava aquellas fulgurações sumptuosas que dardejavam luz sobre a lama das calçadas; aquellas radiações, como reflexos coriscantes das existencias superiores no meio dos requintes do luxo, iam fazer uma mistura contradictoria com o cisco lamacento das ruas, e ella via n'aquellas scintillações outras tantas promessas acariciadoras de conforto e bem-estar, que cahem sobre os ricos, como um manto, acolchoado e acalentador, em quanto sobre o pobre desce a mortalha humida do inverno. Lembrava-se do dia em que chegara ao Porto approximadamente á mesma hora, via as mesmas cousas, os mesmos reverberos do gaz, o mesmo luxo das jojas demodas, a mesma animação ruidosa, a mesma massa de transeuntes que se cruzavam, uns vagarosos, outros apressados, que paravam diante das vitrines em grupos de pasmada admiração, e que mergulhavam vistas curiosas para dentro do trem, e no entanto para ella que differença de situação, de sensações, de pensamentos! É que nem queria pensar n'isso! Que abysmo! Oito mezes apenas, e parecia-lhe que a separavam annos d'aquelle dia; viera toda radiosa, alvoroçada de viventissimos enthusiasmos, como quem caminhava para um mundo superior de gloriosas venturas, e hoje, até tremia de o pensar! -- Affigurava-se-lhe a vida ainda mais miserável do que no tempo em que se estiolava na sua aldeia!

Mas o trem inclinando para um lado, e roçando duramente com as rodas pela pedra do passeio, parava á porta de D. Guiomar. Já estava prorapta, desceu logo com o papá, todo desmantelado em cumprimentos e muito radiante na gloria dos seus perpetuos sorrisos aduladores. O corpinho de D. Guiomar, franzino, com um aspecto implicativo de dureza ossea, repimpou-se com deleite na molleza algodoada do coupé, e, conchegando-se com um estremecimento entre friorento e regalado, sumiu-se ao fundo, a um dos cantos. Luiz, em frente de sua mulher, encolhiase para evitara pressão suffocante da rotundidade anafada do snr. Fabião.

-- Que bem se vai aqui! Não ha nada como o confortosinho de ura coupé.

E mentalmente D. Guiomar accrescentava:

-- N'este andar eu quero ver onde vão parar as economias do Antunes, grandissima estabanada!...

O trem parou á porta do theatro. O trintanario, com o chapéo meio levantado, abriu a portinhola e Adelina, pondo a descoberto o pé pequenino, apertado em uma botinha de verniz, descia com um saltinho airoso, a cauda prendia-se no estribo e o snr. Fabião, muito pressuroso, tomava a mão ao lacaio na tarefa de desembaraçar o vestido.

Á entrada chapéos cortejaram-na largamente; havia grandes inclinações de cabeça e sorrisos mellicos, ella arrastava pelo lageado do vestibulo, muito porejado de humidade que adivinhava copiosas chuvas, a cauda do seu vestido, côr de lilaz; sentia atraz de si o sussurrar da seda, que lhe dava uma sensação grande de contentamento e importancia, e n'aquelle momento evaporavamse todos os pensamentos maus, que ainda pouco antes a tinham mortificado; de repente via tudo vestido de luz, sentia-se bem n'aquelle meio, esquecida de amofinações; caminhava com desempeno atravez dos grupos, embrulhada na sua capa branca acolchoada, guarnecida de larga fita de seda moire, com a sua cabecinha de odalisca, alta, e envolta, como se fôra um turbante, nas dobras assetinadas de um tulle vaporoso.

Quando entraram no camarote, estremeciam na orchestra os primeiros accordes instrumentaes, esfiavam-se delicadezas de violinos. Adelina accommodava-se no seu lugar com grande espalhafato, fallava alto, arrastava a cadeira ruidosamente, e depois de sentada debruçava-se, torciase para todos os lados, assestava o binoculo, fazia muitas mesuras de cabeça, com repetidos movimentos perpendiculares e refinamentos de amabilidade.

Na plateia as attenções voltavam-se para o camarote d'ella, os binoculos apontavam-se, havia sorrisos maliciosos, o Sepulveda cochichava ao ouvido do visinho, e depois os dous fitavam-se com os olhos accesos, as faces illuminadas de sorrisos patuscos.

D. Guiomar enumerava as pessosas conhecidas, Adelina lamentava não saber quem estava nos camarotes de cima, do seu lado, Fabião da Rocha promettia obsequiosamente informar-se logo, no primeiro entre-acto.

-- Está alli no 8 da primeira a viscondessa de Gondofins, somos muito amigas, ainda não me viu -- E com os olhos fixos avidamente, contrariada por não ser vista pela viscondessa, esperava com impaciencia o momento de trocar com ella um comprimento de intimidade amavel.

O theatro tinha a enchente de uma primeira representação. A animação e o sussurro esvoaçavam, algum assignante retardatario chegava, os camarotes enchiam-se, cabeças com penteados artificiosos moviam-se, dando a scintillação rapida de algum laço de setim ou o colorido de uma camelia, os vidros dos binoculos faiscavam á luz do gaz como prismas, na plateia chapeus altos ondulavam com reflexos assetinados, como um largo manto de moire preto em que uma luz viva se espreguiçasse.

O panno subia, a luz jorrava do palco, e a sonoridade do côro dos cortezãos punha uma vibração alegre no theatro. O tenor resplandecente, pansudinho, muito branco de pó de arroz, media o palco com passadas largas, e atirando com importancia parlapatonaapernade uma plastica muito rebolida, a estalar dentro da malha, entumecia o peito com ar senhoril e fanfarrão, lançando a tonalidade penetrante da sua romanza.

Mas houve na sala um sussurro, os binoculos assestaram-se para o palco, cochichava-se nos camarotes, havia risinhos á socapa. O pagem muito louro, vestido de azul, com ares gaiatos, de uma travessura muito picante, descia o palco com passos miudinhos de uma nudez esculptural, e cantava a sua bailada cheia de brio e desafinações.

-- Está mesmo galante, mas o pé é que é pena... um horror!

-- E Adelina sentia formigueiros nos seus pés pequeninos, agitava-os impacientemente, e uma ponta da botinha apparecia, com uma garridice presumpçosa, fóra da orla do vestido.

-- Mas canta muito mal, tem uma voz de canna rachada, é uma gallinha a cacarejar... E eu que já ouvi isto cantado na perfeição!.. -- E Fabião da Rocha citava os pagens que tinha visto, os nomes, as epochas em que tinham cantado.

D. Guiomar achava pudicamente que havia uma nudez exaggerada e desnecessaria, podia vir mais decente.

Mas Luiz contestava triumphantemente:

-- E as bailarinas?. . As bailarinas ainda é peior e ninguém se escandalisava. Hoje quem faz caso d'isso?.. A gente habitua-se -- E, com olhares coruscantes e uma impaciencia timida, procurava a primeira aberta para apanhar o binoculo, que Adelina monopolisava.

As ultimas notas da bailada estalavam no agro estridor da desafinação. Nas cadeiras da plateia superior romperam palmas enthusiasticas, a estralada dos applausos foi cortada por alguns -- psius -- disparados irreverentemente da ultima ordem, chegou se a ouvir confusarnente o ruido de um tacão impaciente; nas cadeiras cabeças voltavam-se para traz, mostrando caras iracundas, ameaçadoras; as palmas estrondearam mais freneticas.

O panno descia. Os espectadores levantavamse, da plateia superior sugeitos sahiam fallando com vivacidade, outros perfilavam-se encostados ás cadeiras, procuravam attitudes de uma superioridade desconstrangida, percorriam os camarotes com os binoculos, havia na sala um murmurio de conversação animada, de discussão, que se casava com o arfar dos leques e o resonar do gaz.

O ambiente ia-se amornando, impregnava-se de um cheiro a gaz extravasado e fumo do tabaco, que embaciava as luzes.

No camarote de Adelina discutia-se o incidente, Luiz explicava que havia intriga de bastidores, mas tudo o que era gente fina era do partido do pagem.

-- Palpita-me que vamos ter mosquitos por corda.

-- E eu que nunca assisti a uma pateada!

Quem me dera ver!--Dizia Adelina dilatando os olhos com um esgazeamento.

-- Credo! Nem digas isso, então eu que tenho um medo de pateadas! Póde haver desordens, ferimentos, não posso ver d'essas scenas, com este meu genio de--boa serás--fico toda nervosa...

E Fabião da Rocha explicava, que hoje já não havia pateadas que prestassem, como em outros tempos, e com movimentos de muita vivacidade, o rosto animado, os olhinhos faiscantes, citava factos, datas, nomes.

-- Isso sim, é que eram pateadas, partiam-se cadeiras, saltava se ao palco, havia caras esmurraçadas, a guarda andava em um sarilho, havia gritos de susto, fanicos... -- E tomando folego, estacou atarantado, estalara um botão do colete, repuxado pela redondeza abundante do ventre. E apertando prudentemente o casaco, para se não ver a camisa enxovalhada, seguiu a direcção do botão que saltava, e depois com disfarce, quando as attenções estavam voltadas para outra parte, abaixou-se e metteu surrateiramente o botão na algibeira.

D. Guiomar, apercebendo-se d'este movimento imprudente, dardejou-lhe um olhar reprehensivo.

A animação na sala tinha cahido, sentia-se uma prostração somnolenta; boccas bocejavam, o gaz sussurrava com uma modorra dormente; o fumo do tabaco, insinuando-se cada vez mais, espalhava efluvios narcotisadores; sugeitos recostavam-se nas cadeiras com ares indolentes e familiares; na geral um homem gordo dormitava cabeceando ao lado de uma senhora que se sentava muito aprumada, com um chapeu verde, em que se arrebitava uma aza inorme de passaro.

Dentro do palco a sineta rouquejou duas badaladas. Os músicos iam surdindo debaixo do palco, as cadeiras rareadas occupavam-se.

D. Guiomar observava baixinho, inclinandose para Adelina, que Margarida ainda não tinha olhado para elles.

-- Tambem aquillo está alli que parece estar mesmo a pedir um andor. Não que aquillo tem-se lá n'uma alturas !..

Adelina sorria com um sorriso agro.

Luiz entrava no camarote annunciando, que lá fóra os ares estavam turvos.

O panno estava em cima. A feiticeira, com um trajo de cigana a himpar de vermelho, sarapintado de signaes cabalisticos, pintalgado de cobras e pequenos diabos reluzentes, fazia a mysteriosa invocação junto do caldeirão, com aguela aberta da sua fornalha esbrazeada na promiscuidade de uma côr alaranjada e vermelhão.

O Sepulveda entrava na plateia com arreganho, uma camélia enorme, a flamejar no casaco, o rosto alto, o olhar fito nos camarotes, batendo os tacões. Um--psiu--sibilou do alto. Mas elle occupava o seu lugar imperturbavelmente, tirando o chapéo lentamente, cofiando o cabello, relanceando um olhar de superioridade desdenhosa, refastelando-se na cadeira com importância dominadora.

A mulher de Rennato apparece mysteriosamente velada de negro, a carnação das pernas gordinhas do tenor destaca ao fundo, Adelina interessa-se pela romantica aventura que se desenrola na scena, Fabião explicava o enredo, reproduzia o libreto, eminaranhava-se na exposição da intriga.

-- Depois o Rennato... o marido. .. o barytono... vem, apanha-os com a bocca na botija, o caso embrulha-se, ha uma historia de espadas... e agora é que são ellas.. .

-- Oh! papá, deixe ouvir.

O tenor vibrava a sua melodiosa canção napolitana, e dava á voz uns arremessos de bravata hilariante, acompanhados de sacudidellas joviaes e patuscas do braço, motejando dos prognosticos sinistros da feiticeira, com grandes passadas, gestos largos de parlapatice, e um geito chasqueador e fanfarrão do corpo refeitinho.

Adelina não despregava os olhos do pagem.

-- É mesmo uma perfeição!...

Fabião da Rocha opinava que o tenor era dos melhores que tinham vindo ao Porto, elle podia dizer alguma cousa, conhecia o theatro lyrico como as suas mãos, e com um contentamento intimo, muito feliz, saboreava a melodia, trauteando a musica, baixinho, com deleite, ao compasso da orchestra.

Os pescadores e mulheres do povo entravam em scena. A sonoridade da instrumentação e as vozes do quinteto enchiam a sala, os baixos rouquejavam notas sinistras com uma accentuação lugubre e conspiradora, e atravez d'esta soturnidade cantante arremessava-se o canto vibratil do tenor e do pagem.

Adelina sentia uma commoçãosinha, a instrumentação harmoniosa do quinteto sacudia-lhe os nervos com uma vibração electrica, e o panno descia sobre o côro dos pescadores, que entoavam prostrados, um hymno solutatorio, e contemplavam, extaticos, as pernas papudas do governador britannico, recebendo muito empavezado n'esta posição frescalhona o incenso adulador.

Fabião da Rocha sahiu, ia saber quem estava nos camarotes de cima--disse. Luiz pegava tambem no chapéo, mas entrou o Sepulveda, radiante, comprimentando com muitas quebras de cintura.

Fallou da opera, discutiu Verdi; a eschola italiana agradava-lhe sobretudo por causa da melodia--Ah! a patria do bel-canto! Mas já estava enfadado de Verdi, Donizetti, Bellini; queria musica mais energica, menos comprehensivel, precisava de um tonico para os nervos, e com a voz aguda, no diapasão do enthusiasmo, reclamava Huguenotes, Africana, o D. João, a estatua do Commendador, commoções, ideias mais largas, qualquer cousa que levantasse os espritos acima da rotina chata e estúpida. E logo com um impeto:

-- E que lhes pareceu o desaforo ha pouco?. . . Não está má, hein? Uns typos que ninguem conhece quererem dar as cartas!--E com gesto energico da mão, que segurava o chapéo, affirmava o seu desdem.

-- Mas, verdade, verdade, ella canta muito mal--objectava D. Guiomar.

-- Para segunda dama serve. E se nós gostamos, ora é boa! Então quem manda aqui? É a gente do bom tom ou são os bigorrilhas?... Ora não está mau o descaro!...

D. Guiomar contestava que era melhor não applaudir.

Adelina partilhava a opinião e a indignação do Sepulveda.

-- É isto, ou não é uma sala onde se reune o que ha de mais chie na sociedade elegante? -- E Arthur respondia a si mesmo, descendo do agudo da indignação para o grave triumphante de quem mata a questão em duas palavras -- É. Pois então que não tenham a petulância de abrir o bico, aqui só faz lei a nossa opinião. E depois... depois é bonita. O bello foi creado para ser admirado... -- E as faces franziam-se-lhe em rugasinhas da pelle magrinha, e engelhada de sorrisos maganões, cofiando ao mesmo tempo o bigodinho arrebitado com a mao entalada em uma luva gris perle, que estalava pelas costuras.

Adelina sorria, e D. Guiomar contrahia o rosto com severidade offendida da irreverencia ao seu pudor de menina solteira.

Mas Luiz, para fazer uma diversão ao incidente, perguntava:

-- Então diz que a Silva Leitão dá uma soirée?

-- E verdade e ha muitos convites. V. exc.as vão?

-- Eu!... Não é minha relação, conheço lá isso!.. -- E D. Guiomar dizia isto com uma expressão de tédio, muito enjoada da qualidade burgueza da pessoa.

Mas o panno subia e o Sepulveda sahia contente de si, dizendo--E vai ter logo uma ovação, cahe ahi o theatro com palmas. Um criado de vocencias. E ao ouvido de Luiz--Anda d'ahi ao camarim, está divina.

A prima dona cantava correctamente a sua aria, as palmas estalaram na terceira ordem e na geral, nas cadeiras caras, raros applaudiram, a superior por birra, abstinha-se de se manifestar.

O tenor descia a scena e dizia na sentimentalidade do canto a exaltação do seu amor, a voz tinha vibrações apaixonadas, extasis ardentes, fremitos delirantes, acompanhados de requebros langurosos, posturas de mãos trementes, acariciadoras. Amelia debatia-se, resistia, soluçava, mas Ricardo redobra nos arroubos da sua paixão supplicante, os instrumentos de corda teem soluços que despedaçam de commoção, ella cede, estremece vencida de amor, a situação chega ao paroxysmo, o canto dilata-se vaporoso, no hysterisrao de um arroubo melodioso.

A alma de Adelina palpitava aos affagos macios d'aquelle dueto apaixonado, a sua alma evaporava-se para as alturas, enleando-se nas espiraes da melodia, que subia em delicadezas de requintado enlevo para umas regiões ridentes, suspensas nas nuvens, para um mundo ignoto de amor. Era assim que desejaria ser amada, era assim que seria bom ser embalada, affagada, envolvida no fluido magnético de uma paixão, a um tempo fogosa e avelludada, como aquelle canto que a penetrava de uma sensação voluptuosa e ardente.

E a imagem de Fernando apparecia-lhe mesquinha e desbotada á luz viva d'aquelle ideal fascinante, que agora lhe esvoaçava na imaginação sobreex citada, o peito arfava lhe em uma ondulação suave de volupia, e, com um suspiro flebil, a alma perdia-se dolorosamente no vago de uma aspiração intensa.

Mas a scena desenrolava-se no palco, redobrando de interesse, complicando-se, carregandose de cores romanescas, que avivam a commoção, e o lance pathetico chega ao paroxysmo da expressão entre os effeitos, de um colorido vigoroso, dos contrastes musicaes.

No canto de Rennato e de Amelia as notas precipitara-se com expressão de sobresalto e terror; ao longe na escuridão regougam, como uma tempestade que se approxima, as vozes soturnas dos conspiradores; pairam efluvios de morte; a escuridão e a penumbra da sala, com o gaz diminuído, augmentam a comraoção oppressiva de Adelina; os baixos approximam-se em um crescendo trovejante, a respiração suspende-se no peito de Adelina.

Durindanas flamejam, os ferros cruzam-se, Amelia no auge da desesperação interpõe-se entre os combatentes, a espada cahe das mãos de Rennato attonito, entre o espanto dos personagens.

Um reflexo de luar, de uma cor azulada de phosphoro, alumia a scena com a sua luz ironica; quebram o silencio estupefacto umas phrases de sarcastica surpreza, muito arrastadas no tom de uma requintada zombaria, e logo a hilaridade chocarreira dos baixos e do coro chasqueador vibra no ar com uma accentuação muito irritante, açuladora. Rennato, em passo melodramático, vai arrastando a esposa infiel ao som da cascalhada zombeteira, que expira ao longe em um echo de satanica mofa.

Adelina sentia uma vibração violenta nos nervos, interessava-se por Amelia, aquellas casquinadas escarninhas exasperavam-na. O panno cahia, a luz mortiça do gaz avivava-se, acclarando de repente a sala, e Adelina experimentava a sensação de quem desperta de um sonho.

Uma lassidão quebrantava-lhe o corpo, levantou-se e foi recostar-se ao fundo do camarote, muito prostrada, com uma seriedade muito scismadora no semblante.

D. Guiomar tinha ido com o papá fazer uma visitinha á viscondessa de Gondofins.

Entretanto Adelina absorvia-se em vaporosos devaneios, a sua phantasia sempre errante, sempre abrazada em uma actividade devoradora, perdia-se em desejos soífregos, sem fim, em vagos anceios de amores ideaes, de felicidades impossiveis. A fascinação, que Fernando exercera sobre o seu espirito, desvanecia-se, o seu amor parecia-lhe agora insípido como uma agua morna, e ella aspirava ás sensações fortes que queimam, era incapaz das grandes commoções aquelle homem, perdia para ella todo o prestigio, não era aquillo que phantasiara, nao era assim que queria ser amada. Como era infeliz! Não ser comprehendida. Arremessar-se para um- ideal que a seduzia e encontrar sempre o mal-estar em vez do goso que se anhela!

Aspirar e nunca sentir-se bem, caminhar sempre com fadiga em um vasto areal, onde os passos não adiantam terreno, e a miragem a recuar sempre na profundeza do horisonte! Ah!

como era infeliz, muito infeliz!

As scenas romanescas, que se desenrolaram no palco, passavam-lhe pela phantasia em uma successão de deslumbramentos, sacudiam-na de fortes commoções e transportavam-na a regiões ideaes, em que meigos luares alumiam magicamente os bardos, os menestreis e os pagens formosos, em que as capas românticas esvoaçam, e as espadas cavalleirosas flamejam, cruzando-se entre bellos gentis-homens e doairosos trovadores.

D. Guiomar veio interromper-lhe as suas imaginações, entrou gloriosa, já o panno estava em cima, trazia novidades grandes e escândalos pequeninos. Cochichou muito com Adelina, abafando risinhos.

-- E que lhe parece a Margarida ? Ainda não olhou para cá nem uma unica vez, agora já é de mais, nem de proposito! Também mais exquisita ainda nao vi...

No semblante de Adelina accentuou-se uma pallidez, os beiços, descorando, tiveram uma leve e rapida tremura; uma colerasinha roia-a surdamente.

Mas o allegro crystallino, saltitante do pagem destacava-se no quinteto final com uma agudeza desafinada.

As palmas e os bravos estrugiram na plateia superior, e logo um sapatear de tacões misturouse á estralada sonora das palmas, um assobio cortou finamente o ruido dos applausos; as palmas e os brados rodobraram de frenesi.

O panno descia, vozes roucas, furiosas bradavam pelo pagem, houve ruido maior de tacões, silvos de apitos vibraram agudamente, erguia-se uma poeira fina que embaciava o ar, e uma corôa de atomos, de uma scintillação dourada, cercava os lumes do gaz; sugeitos lividos, agrupados, com os braços levantados batiam o ar com movimentos desesperados; o Sepulveda enfiado, com tons biliosos e terreos no rosto, em cima de uma cadeira, debruçado sobre a orchestra, desengonçava-se a dar palmas, esfalfava-se a berrar pelo pagem com bravos esganiçados.

Por traz d'elle tres sugeitos pateavam.

-- Fóra pulhas -- Uivou o Sepulveda, mas acto continuo, derribado por um cachação, bateu com o nariz no violoncello.

Houve reboliço, sugeitos engalfinhados precepitaram-se em tropel pela portinha da superior.

Adelina sentia uma titillaçao nervosa, estava sobre brazas, seguira com apaixonado interesse o partido das palmas, Luiz, com a physionomia aberta em um sorriso regalado, gosava com egoismo da sua posição de espectador. Adelina exasperava-se com esta impassibilidade -- Um homem de lama! -- pensava.

Alguns camarotes desoccuparam-se, o tumulto serenou, mas o resto do espectaculo correu agitado.

Á sahida, em quanto esperavam na saleta pela carroagem, Margarida entrou, e, trocando comprimentos com as suas conhecidas, evitou passar perto de Adelina, fazendo um largo desvio, que feriu as attenções.

Mas Luiz fez sginal a Adelina, tinha chegado a vez ao seu trem d'elles, deu o braço a D.

Guiomar, entraram na carroagem e Adelina atirouse para o fundo do coupê exasperada, enraivecida.

Pelo caminho fallou pouco com D. Guiomar, justificava o seu mau humor com uma dor de cabeça, a pateada, a algazarra tinham-lhe feito um abalo nos nervos.

Chegou a casa suffocada de colera, desatinada, com o coração a extravasar azedumes e rancores vingativos.

Despiu-se com arremesso, passou ao corpo um roupão, arremessou-se para uma poltrona a ruminar era silencio o despeito e a colera que a devoravam; sentia uma necessidade de dar expansão ao fel, que parecia estillar de todos os tecidos do seu organismo, e inundal-a em ondas de amarissimo travor.

A impressão ainda palpitante da musica, a promiscuidade de sensações e commoções d'aquella noute tinha levado a sua sensibilidade ao paroxysmo da exaltação nervosa. Tinha a testa quente, os pés frios, e uma pontinha de febre ateavalhe o sangue.

Dentro, na alcova, as botas de Luiz, ao descalçarem-se, faziam um ruido abafado cahindo no tapete, a cama rangia.

-- Não te deitas?

-- Não, não tenho somno.

-- É tarde, e como tens dôres de cabeça. . .

-- Não te importes commigo.

-- Boas noutes.

Pouco depois Luiz adormecia, e Adelina, muito concentrada em si, com uma sisudez muito meditativa no semblante, o olhar fixo, revolvia na cabeça um turbilhão de ideias confusas, a que ella forcejava dar alguma ordem.

Havia no quarto um silencio dormente, e muito calada, no meio d'aquelle quietismo, sentia e escutava todas as palpitações alvoroçadas do seu ser convulsivamente perturbado, havia dentro d'ella um excesso de vida que contrastava com a prostração exterior, tinha no cerebro uma lava, e todo aquelle organismo vibratil, excitável, tinha uma exacerbação superabundante, como uma lamina metallica estremecendo nos fluidos de uma electricidade. Estava immovel, os olhos pregados na parede com uma expressão torva, e na physionomia accentuavam-se umas linhas duras, como quem revolve pensamentos ruins. De repente passou-lhe no olhar um lampejo negro, como se a vista se lhe alumiara á luz de uma ideia má.

Permanecia na sua immobilidade silenciosa, mas no olhar revelava-se uma contensão de espirito ainda maior. O seu cerebro era como um ovo em incubação; na apparencia um silencio completo, mas realmente uma grande actividade n'aquella immobilidade calada e mysteriosa, com a differença, porém, de que n'aquelle trabalho lento do ovo--uma das maravilhas da creação -- ao inverso do que se passava no cerebro de Adelina, labora-se muito em segredo uma obra bôa -- a vida.

De repente Adelina quebrou a sua immobilidade e curvou-se sobre a secretária.

O ruido dos últimos trens, que vinham dos theatros, expiravam no largo silencio da noute, que ia rolando os seus mysterios no,intimo recato do seu seio tenebroso; dos beiraes dos telhados pingavam uns restos de aguaceiro, que faziam uma estralada de um chapinhar melancolico no lageado dos passeios; o vento sul -- o trovador negro do inverno, que dedilha com mão cadaverica as estrophes dolorosas das chuvas nas ondulações atmosphericas, como em cordas de harpas invisiveis -- gemia uns uivos tristes.

Eram os unicos rumores que cortavam o silencio amodorroado da noute.

XXV Margarida experimentava uma dupla sensação de bem-estar -- a da saude que voltava e a da serenidade feliz que pouco a pouco a ia penetrando de uma sensação dulcificante. A sua vida perturbara-se profundamente, deslocaram-na violentamente do meio a que se tinha accommodado com uma placidez feliz, vagueara desatinadamente, consternada, como ave espavorida que esvoaça em volta do ninho destruído. Tivera uma desconsolação muito pungente, como se em volta de si só houvera ruinas; mas agora a sua existência desordenada recompunha-se, já não a opprimia aquelle mal estar que ameaçava desorganisar-lhe a vida irremediavelmente para todo o sempre, e a sua alma despedaçada, que só vira de redor tudo vestido de negro, arremessava-se de novo para o espaço luminoso das aspirações bôas.

Não lhe restava a menor duvida, Fernando desprendera-se completamente de Adelina; era como que a reapparição do bom tempo depois de uma longa temporada de invernia que opprime o espirito.

Ás vezes via o marido com uma desconsolação triste no rosto; mas elle explicava que era ainda uma recordação penosa, que de quando o magoava e lhe sombreava a alma, um desgosto de si que o entristecia, e então era ella que com alegrias de creança, com expansões sadias de bom humor, procurava apagar todas as impressões d'aquelle passado doloroso.

E o piano, por muito tempo silencioso, mostrava de novo as alegrias sorridentes dos seus dentes de marfim, e havia camelias por toda a parte e aromas de violetas.

Dous dias depois da noute do theatro conversavam alegremente á mesa, tinham acabado de almoçar.

O criado tinha posto em cima da mesa, ao lado de Fernando, uma bandeja com o correio, jornaes, uma carta para Margarida.

O dia estava chuvoso, a atmosphera carregada de um nevoeiro espesso, e dentro de casa o ar crasso saturava-se de humidade, as cortinas pendiam muito escorridas, amollentadas da humidade, os moveis tinham um embaciamento pegajoso, a luz do dia baça e crepuscular coava-se soturnamente atravez do sudario merencorio do nevoeiro, e o ruido da cidade parecia abafar-se melancolicamente n'esta espessura brumosa, como se o ambiente estivesse acolchoado de algodão em rama molhado. Mas Fernando e Margarida n'aquelle momento estavam inaccessiveis á influencia do tempo; Margarida, sobretudo, sentia dentro de si alguma cousa de bom que a vivificava, que lhe substituía o alegre azul que faltava no Armamento, que a illuminava lá por dentro de uma luz mais intensa, e lhe levantava a alma a outro azul mais vivido. A vida e a alegria começavam de novo a fervilhar n'ella, como um formigueiro.

Faziam projectos alegres, logo que melhorasse o tempo dariam juntos grandes passeios, ella, coitadinha! precisava muito de passear, fortalecer-se no movimento sadio e no bom ar lavado; andava ainda abatida, magrita, era preciso enrijar o corpo, restaurar a saude, nutrir; d'ahi a dous mezes, pouco mais, haveria o grande acontecimento. Ainda lhe parecia um sonho, a ella! -- o halito suave, o sorriso adoravel de um ente pequenino a dar frescura e alegria á casa, como uma aragem perfumada e um raio de sol tépido de Abril, e aquillo era mais um interesse a dirigir-lhe a existencia com um redobramento de felicidade!

E todas as suas ternuras latentes despertavam no ante-gosto de futuras felicidades, imaginava-se cora o filhinho nos braços a embalal-o no conchego do seio acalentador, via o primeiro -- nem por isso muito bonito -- com uma côr muito carregada de tijolo, mas depois branquear pouco a pouco, cahindo na doçura uniforme dos tons lacteos, rosando-se nas maçãsinhas do rosto, muito rijas, carnudinhas; os olhos vasios, opacos, avivavam-se, começavam a ter a percepção alegre e clara das cousas, e então o primeiro sorriso despontava na bocca pequenina, vermelha, gulosa de leite, entre-aberta na admiração do mundo que se lhe revelava. E só de pensar em tudo isto percorria-lhe o corpo um estremecimento delicioso, vinham-lhe uns Ímpetos soffregos de impaciência pelo momento em que podcsse devorar com beijos aquella bocca de uma frescura vermelha, de se debruçar sobre o seu filhinho, escutando todas as palpitações, surprehendendo todas as impressões mysteriosas d'aquella existencia tenra que desabrocha.

-- E se eu podesse crial-o?

-- Isso é o que nós veremos, o Barreiros é que ha-de dizel-o. Mas qual! Podes lá!...

-- Bem sabes qual é a sua opinião. Não ha como o leite da própria mãe para criar o filho.

-- Mas esqueces-te de accrescentar -- quando tem condiçoes de saude e robustez, para esse encargo da maternidade sem o seu proprio sacrifício. Mas veremos isso. . . mais tarde, agora o que se trata é de fazer provisão de saude -- E pegando nos jornaes e nas cartas -- Está aqui uma carta para ti -- E passou-lha sem grande reparo na lettra.

-- De quem será? Já vi esta lettra, mas não me lembra de quem isto seja.

E com indifferença ia rasgando o enveloppe, desdobrou a carta lentamente.

-- Ih! Que perfume! -- E sorria com descuidado abandono.

Mas logo ás primeiras linhas empallideceu, um tremor apossou-se-lhe de todo o corpo, a carta tremia-lhe nas mãos, e com os olhos muito abertos devorava-a; lia, porém, com difficuldade, as lettras bailavam, a vista obscurecia-se, um suor frio humedecia-lhe o corpo e com um esforço leu até ao fim. Mas deixou cahir o papel, levantou-se afílicta, como se o ar lhe faltasse, sentiu no ventre umas fisgadas dolorosas que lhe deram uma vertigem, os ouvidos zumbiam, levou as mãos á cabeça, sentia alli uma dor, como se um ferro em braza lhe atravessasse o cerebro e cahiu na cadeira, desfallecida, branca como a toalha da mesa.

-- Mas o que é?... O que tens?... Pelo amor de Deus, Margarida!...

E Fernando aterrado correu para sua mulher a tempo de evitar que rolasse ao chão, amparando-a nos braços, e atarantado, gritando desvairado, foi arrastando a cadeira perto da parede e lançando a mão ao cordão de uma campainha, puxou-o violentamente.

Um criado appareceu. Fernando bradou:

-- A Ignez, que venha a Ignez. O Antonio que vá chamar o dr. Barreiros... ao consultorio... depressa... um medico qualquer.

Margarida foi transportada ao leito. Havia no quarto um frasco de saes, de que ella usava desde que começara a andar adoentada. Fernando procurou-o, desatinado, na atrapalhação quebrou uma jarra no toucador, em quanto a criada, toda trémula, enfiada, desapertava o vestido.

Por fim o frasco appareceu, Fernando borrifou o rosto de Margarida, fez-lhe respirar os saes.

Ella recobrou os sentidos, fitava um olhar attonito, imbecil, e de repente, encobrindo o rosto nas mãos, com uma explosão de dôr desatou a soluçar arquejante no spasmo de um choro convulso.

Ainda ha pouco a sua alma arrojava-se a luminosas altifras, o seu espirito, tocado d'este viventissimo raio do sol da felicidade e da alegria, illuminava-se, resplandecia dentro de si como um clarao de um forte a intensidade luminosa, e de repente apagava-se bruscamente, como uma luz que alumia vigorosamente uma sala, repentinamente soprada por uma rajada, que irrompe violentamente despedaçando uma janella.

Fernando olhava-a desvairado, passava-lhe a mão pela cintura, muito nervoso afagava-a com ternura, fazia perguntas, balbuciava phrases estúpidas, disparatadas.

Mas de repente correu á sala de jantar, apanhou a carta, e com o peito a estalar na oppressão de um anceio allucinante leu:

Exc.ma snr.a «Tractou-me no theatro com um desdem realmente bem humilhante! Mas eu serei mais generosa do que v. exc.a Ainda, dias antes da ultima noute de theatro, tive a meus pés seu marido, rendido, apaixonado, bem seguro no meu poder, mas eu restituolho, minha senhora, não lhe disputo a posse preciosa do seu pobre marido, que só me inspira dó.

Em troca da minha generosidade só lhe peço a cortezia amavel de um comprimento, quando nos encontrarmos De v. exc.a admiradora obrigada, Adelina.»

Fernando, livido, com os dentes cerrados, os olhos faiscantes como carvões accesos, amarrotando a carta na crispação de um desespero obcecante, ficara petrificado no idiotismo de uma raiva que o congestionava.

-- Dias antes !... Eu aos pés d'ella !.. Como mente... esta barregã!..

Mas a criada veio, esbaforida chamal-o -- a senhora estava muito mal, tinha umas afflicções... Fernando arrancou se ao estupor da raiva que o dementava, e como que acordando de um pezadello medonho, allucinado, correu ao quarto.

Ia cambaleante como um ebrio, um zumbido enchia-lhe os ouvidos, fazendo um echo grosso no cerebro, como em uma cavidade ôcca, passavamlhe faíscas pelos olhos, parecia-lhe que o soalho oscillava como o tombadilho de um navio, e que tudo de redor fazia largos discos giratorios.

Margarida estava encostada ás largas almofadas, os cabellos cahiam em desalinho, vestia um chambre branco bordado em abertos, um arripio intenso dava-lhe uma sensação muito desconsoladora de frio, os seus grandes olhos garços, muito dilatados, tinham, como os de uma gazella amedrontada, uma expressão vaga de susto, o semblante passava da côr livida, como de cêra amarellada, para o afogueado das excitações febris.

Fernando fitava-a com pavor, sentia-se convulsamente sacudido de uma tremura enregelante, tinha as extremidades frias, humedecidas de um suor gelado, a cabeça em braza, e aproximando-se da cama, com muita timidez, murmurava ao ouvido de Margarida, pondo-lhe a mão no hombro carinhosamente.

-- O que sentes, Margarida?.. Escuta...se soubesses... Estava tudo acabado, bem acabado, mentiu... a infame... Juro to... Mas socega. . . tudo aquillo é falso.. . perdoa, mas socega. . . tem dó de mim. . .

E Margarida fitava-o com muita doçura no olhar, e o rosto clareava-se-lhe em um sorriso dolorido entre esperançoso e assustado.

Mas de repente fez-se mais livida, cerrou os olhos que se obscureceram na intensidade de uma dor, e abrindo-os com uma expressão indefinível, mixto de alegria e terror, murmurou encostando a cabeça desfallecida ao hombro de Fernando:

Parece-me que estou com as dôres.

N'este momento o dr. Barreiros entrava sobresaltado, esbofado. Tomou o pulso, fez perguntas, o que fora, o que sentia, Margarida explicava as dores que tinha, cobrindo-se-lhe de pejo e de calor febril a pallidez do semblante.

E logo o medico, dominando-se, fazendo-se sereno, ordenou repouso absoluto, menos luz, roupas largas e que se chamasse a parteira.

-- Antes do tempo ?.. Interrogava Margarida com a voz desfallecida, o olhar sobresaltado.

-- É por precaução apenas, ainda não posso ter a certeza, se as dores são falsas, ou as verdadeiras. Mas creio que serão as verdadeiras. Não importa, nada de sustos, com sete mezes completos não tem duvida. Isso não me dá o menor cuidado. Nada de assustar, socego, presença de espirito é meio caminho andado. -- E com estas e outras phrases, affectando serenidade alegre, procurava levantar o animo da doente.

E, sahindo depois do quarto com Fernando, perguntou o que tinha havido com uma curiosidade muito anciosa.

Fernando informou com palavras desordenadas, que lhe sahiam da bocca em tropel, descosidas, cortados de uma convulsão nervosa, afflicta.

-- Uma carta infame d'ella. . . d'aquella creatura... depois verás. Teve um desmaio, um grande abalo... Mas vou eu mesmo chamar a parteira. Tu ficas, sim ?. .

-- Já não arredo d'aqui.

-- Obrigado--E apertava-lhe a mão -- Oh !

Barreiros haverá perigo? Estará muito mal?

-- Não... mas vai-te, não percas tempo.

-- Até logo... Olha. Se fazes favor, escreves duas linhas a meu pai, e elle que previna em casa de meu sogro.

O dr. Barreiros, inquieto, apprehensivo, voltou ao quarto, examinou a doente deticlamente, com mais cuidado ainda. Margarida estava raais socegada, mas muito pallida, os labios descorados, o olhar luzente, e passou todo o dia mais tranquillamente; apenas de quando em quando contracções dolorosas agitavam-na.

Comtudo ao cahir da tarde sentiu-se mais incommodada.

Á noute Fernando passeava agitado, na saleta contigua ao quarto da cama, mordendo a ponta do bigode. O dr. Barreiros repoltreava-se em uma cadeira de braços, com a perna traçada passava distrahidamente os olhos pelas colurnnas de um jornal.

Tinha um ar grave, uma leve rugasinha annuviava-lhe a fronte limpida.

O relogio, em cima do fogão, bateu dez horas com um toque pequenino e agudo, como um estalar de vidro, e o seu tic-tcic delicado cah;a monotonamente no silencio.

De vez em quando, lá fóra, uma rajada de vento uivava, íazia na chaminé nm ronco cavo, roufenho, a chuva rufava nas vidraças, soluçando depois, ao cahir no lageado do passeio. O fogão flamejava na forte intensidade de uma labareda muito ateada; fazendo um ruido forte, resonante, absorvia a humidade que reçumava da atmosphera penetrando por toda a parte, e espalhava sobre o tapete clarões sanguineos, tremelicantes, pondo nos ferros polidos scintillações esbrazeadas.

Um canzarrão da Terra-Nova, o predilecto -- Black--agachado perto do fogão, piscava os olhos, abria de quando em quando a bocca com largos bocejos melancholicos, e depois, pousando o focinho sobre as patas dianteiras estendidas, cerrava e abria os olhos inquietamente, com ar triste, fitava-os com expressão sentida em Fernando, seguindo-lhe os movimentos com uma preocupação intelligente.

Já ha muito tempo que durava o silencio n'aquella sala, onde o fogão deixava cahir um resonar modorrento, que fazia contraste com a emoção e actividade cerebral dos personagens.

-- A que horas calculas estar tudo acabado -- Interrogou Fernando, torturando sempre o bigode.

-- Eu sei.. . mais logo o poderei dizer, mas talvez á meia noute. ..

Ouviu-se um gemido no aposento contiguo.

Fernando estremeceu, fez-se mais pallido; tinha os cabellos annelados em grande desalinho, a barba crescida, que não fizera n'aquelle dia, dava-lhe ao rosto uns tons que o avelhentavam.

Approximou-se do dr. Barreiros e apertando-lhe a mão com phrenesi:

-- Falla-me com franqueza, não receias nada? ... Tudo vai bem? A verdade, só a verdade, não me occultes nada.

-- Já te disse que por emquanto tudo vai bem. Mas socega, homem! estás-te a fazer sana, que diabo!.. . Olha lá, se tivesses por ahi uns sapatos largos, tu dás licença ao meu pé burguez? Não é exactamentee correcto... não, bem sei, mas como tenho de passar a noute...

-- Mas tudo o que tu quizeres, e não precisas de mais nada? Vê lá, tudo o que tu quizeres, não queres tomar alguma cousa?... Mas manda, com os demonios, dispõe de tudo como se estivesses em tua casa.

E Fernando sentia pelo seu amigo uma ternura desusada e irresistivel, tinha vontade de o abraçar, de o beijar, o coração dilatava-se-lhe nas expansões de um affecto, como nunca sentira pelo Barreiros. E comtudo sempre fora bem amigo d'elle, oh, se era!

-- Queres tomar um calix de vinho, uma sandwich?

-- Por em quanto nada, depois veremos... mais tarde talvez se pestique alguma cousa. Por agora os sapatinhos, se fazes favor, umas barças, se fôr possível. Mas não me estejas para ahi succumbido, como uma creanya, é preciso ser homem, que diabo!.. . Tudo ha-de correr bem...

-- Ah! meu caro Barreiros, meu bom amigo! se a vejo livre de perigo, e o meu filho cheio de saude!... Estalo de alegria... e juro-te que hade ser feliz... -- E enterrava os dedos no cabello, os olhos entumeciam-se-lhe com uma vermelhidão lacrimosa, e passeava na sala mais excitado.

Antonio de Azevedo e Leonardo da Cunha entraram, informaratn-se do estado de Margarida, interrogaram particularmente o medico, e sentaram-se com um ar grave e preoccupado.

Ouviram se gemidos mais cortantes. Fernando apertou nervosamente a mao do medico. Entraram no quarto.

- Margarida estava encostada ás almofadas em attitude agitada, constrangida, com uma contracção dolorosa na physionomia, o cabello apanhava-se em uma touca muito rufada na frente, com rendas encanudadas, em que sobresahiam decorativamente laços azues; um roupão branco de fustão com entremeios bordados envolvia o corpo largamente, os olhos pareciam mais rasgados no semblante pallido e emagrecido, que tinha uma expressão de resignação dolorida, e, fitando-os em Fernando com muita doçura, forcejava por suavisar a contracção magoada do semblante.

A morbidez pallida do seu rosto destacava fortemente na brancura das almofadas e no fundo da cretonne do cortinado de fundo azul com florinhas brancas.

Perto da cama, em cima de uma mesa redonda, estavam dous cestinhos, onde se dobravam com muita ordem as peças de um enxoval de creança, eram forrados de cassa, com uma transparencia rosada, e guarnecidos de fitas cor de rosa. A criada punha em ordem, promptas a servir, as primeiras peças necessárias. A mãe de Fernando compunha brandamente as almofadas, ageitava o corpo de Margarida; com uma expressão de magoada sympathia beijava-a carinhosamente na testa. E depois lidava, arranjava, investigava que não faltasse alguma cousa. A parteira, de pé, desenrolava o seu aranzel de consolações estupidas e mercenarias.

Fernando approximava-se do leito affectando sorrisos, e com o coração afogado em lagrimas forcejava por reprimir-se.

Margarida estendeu para elle a sua mão emagrecida, de uma transparência pallida, em que fazia maior destaque o azulado das veias; apertou vigorosamente a mão de Fernando, com um estremecimento, e attrahindo-o a si segredou-lhe ao ouvido:

Se eu não morrer, nem elle... ainda havemos de ser muito felizes, sim?... -- Fernando beijou-lhe a mão com adoração, com fervor; desviou a vista para dissimular uma commoção violenta.

De repente ella cerrou os olhos, apertou a mão de Fernando com mais energia, confrangeuse toda para dominar a sensação dolorosa; mas vencida largou-a, com um desfallecimento, e um gemido de muita dôr exhalou-se na frouxidão de um ai resignado.

Houve um movimento mais inquieto nos circumstantes, o dr. Barreiros abeirou-se do leito, tomou-lhe o pulso, cravou olhos intelligentes, com muita penetração, n'aquelle pobre rosto aniquilado pela dôr.

Pegou em uma garrafa de crystal, encheu uma colher de vinho do Porto, muito velho, introduziu-lha na bocca. Fez signal á parteira que se approximasse de Margarida. Ella contorcia-se mais, crispando na mão o linho alvissimo dos lençoes.

O dr. Barreiros deu o braço a Fernando e sahiram todos do quarto.

-- Mas decididamente és uma creança, estragas tudo com as tuas visagens. Não tornas a entrar alli sem minha ordem, hoje sou eu quem man9 da aqui. Es uma creança.

-- O que eu sou é um mise.

Mas o medico com um gesto expressivo, indicando-lhe os dous velhos, fel-o calar.

Fernando sentou-se em um sophá, com um ar esmagado, fincando os cotovelos nos joelhos, com a cara enterrada nas mãos espalmadas.

Ficou assim absorto, o pensamento errante. -- Ah! que se elle visse Margarida, a sua boa Margarida, livre de perigo, movendo-se alegre, a fervilhar de saude! Como elle resgataria o mal que lhe fez, pobre d'ella! Havia de adoral-a de joelhos, sim, de joelhos, e ainda haviam de ser muito felizes... Felicidade!... Mas como se atrevia elle a fallar de felicidade?!... E que duvida se ella, tão boa, perdoou tudo!... porque ella perdoou-me... não tem duvida nenhuma...

E a sua Margarida, tão bondosa, tão linda, apparecia-lhe a refazer-se de saude, as côres sadias avivavam-se-lhe nas faces, uma nutriçaosinha amaciava-lhe a magreza, coitadinha! Fazia-se linda, transfigurava-se a trasbordar de frescura e alegria, iam para a quinta de Campanhã com o pequeno muito gordito, vivificarem-se, regalarem-se de saude nas marulhosas vegetações da aldeia, banhados nos ares lavados dos campos. E via o pequeno Fernando nos braços da ama, com a carita fresca e collada á redondeza branca do seio abundante, a saciar-se dc leite, como um gato guloso, até escorrer pelos cantos da bocca pequenina e vermelha como uma cereja, apertando com as pequeninas mãos cheias de covinhas o seio túrgido, na innocencia de uma instinctiva sensualidade, reclanecandu depois, dc esguelha, olhares espertos entre sorrisos candidamente ladinos.

Mas de repente um grito mais agudo cortou o silencio. Fernando levantou-se de salto, fitou os olhos na porta do quarto com uma fixidez esgazeada, todo elle tremia em um calafrio que lhe subia pelo corpo até á raiz dos eabellos, a pelle encrespava-se em um arripio e na testa porejavalhe uma humidade.

Houve um silencio curto, cortado, pouco depois, de outro grito, de um timbre diverso, sem a vibração da dôr. Era um vagido. Aguilhoou-o uma tentação irresistivel de entrar no quarto, mas conteve-se, lembrou-se da prohibição do medico; a perturbação que o agitava podia prejudicar a doente. E passeava na sala phrenetico, torcendo o bigode, mordendo o labio inferior. Depois abriu-se a porta do quarto. O dr. Barreiros trazia nos braços, com muito geito, o recem-nascido, vinha muito embrulhado em uma capa de alpaca, orlada do fita azul, na cabeça uma touca branca bordada, era uma rapariga, tinha o rosto vermelho como um camarão, os olhos estavam abertos, sem brilho, embaciados, vagos c inertes. Teve um desapontamento, esperava que o seu filho fosse uma cousa mais linda, não viu o cherubinsinho branco e rosado dos seus sonhos, e no entanto passava-se n'elle alguma cousa de extraordinário e ainda superior ao que esperava de si; uma sensação nova, de uma perturbação ineffavel, inundava-o, sentia que todo o seu ser se transformava, era a sua filha--amava-a. E recebendo-a nos braços, com muitas delicadezas e mil precauções para não molestar aquelle entesinho tão frágil, olhava-o com um olhar demorado, profundo, em que ia toda a sua alma, sentia desdobrar-selhe a existência, e todo o seu ser se prendia em fios magnéticos e indissoluveis aquelle corpinho tenro, que mal sentia nos braços, e parecia-lhe que o seu coração se bipartia nos latejos de um duplo arfar.

Esteve momentos silencioso, revendo-se no seu filho, absorvido em si, com os olhos humedeeidos, todo embevecido n'aquella impressão tão nova que o penetrava, e como que o purificava e fazia bom.

Antonio de Azevedo e Leonardo da Cunha acercavam-se de Fernando; contemplavam em silencio a netinha; os lenços ramalhudos de seda da índia sahiam dos bolsos, e os dous velhos assoavam-se, fazendo aquelle forte ruído, que é indicio de uma grande commoção.

Fernando inquiria:

-- É bem constituida, viavel?

O medico respondeu affirmativamente.

Mas de repente trespassou-o uma ideia dolorosa, o seu pensamento cahiu de subito, como uma andorinha ferida, do nitido azul, para onde se evolara.

-- E ella?. . .

Olhou pela porta entre-aberta, o quarto estava immerso na vaga sombra de uma luz mortiça, Margarida com os olhos cerrados, a cabeça cahida para traz em um abandono cansado, reclinava-se nas almofadas com muita prostração, os cabellos sahiam desordenados da touca descomposta, torcida em um amarrotamento para um lado, os braços cahia n inertes, uma maceração livida no semblante alterava-lhe as feições; tinha um aspecto de moribunda.

Fernando teve uma sensação inenarravel de agonia e pavor, sentia alguma cousa de horrivel que lhe revolvia todo o ser, que o apertava na garganta, que o suffocava. Com um esforço enérgico arrancou-se ao torpor angustioso que o paralysava, e como allucinado arremessava-se para a porta do quarto.

Mas o dr. Barreiros deteve-o, e com expressão severa, muito triste, mas imperiosa:

-- Precisa de muito socego.

XXVI Margarida passou a noute excitada, com o somno sobresaltado de sonhos afflictivos. Pela manha o pulso estava accelerado, e o corpo dolorido, opprimido de um abatimento esmagador, moia-se na agitação de um mal-estar indefinivel; as faces encovadas deprimiam-se em uma magreza livida, que viera de repente e dava uma sensação afflictiva a quem a via.

Fernando passara a noute em claro, revolvera-se na cama sem poder conciliar o somno, assalteado de terrores, fechava os olhos com grande esforço para dormir, esquecer; mas a insomnia não o largava, sentia formigueiros no sangue, revolvia-se procurando sempre a parte mais fresca da cama, visões pavorosas sarabandeavam na penumbra do quarto. E deitando-se de costas abria muito os olhos, com esforço, para apanhar a realidade das cousas e dos moveis que o cercavam, e escapar-se ás imaginações allucinadoras que o atormentavam.

A lamparina dava uma claridade frouxa, espalhando sombras melancholisadoras, e aquella luz dubia projectava-se no tecto em um largo disco de um luminoso amarallento e trémulo. Elle fitava aquelle circulo de tibia luz, a imagem de Margarida apparecia-lhe alli moldurada com uma pallidez mortal, e ella, na sua magreza pungente, olhava-o com um confrangimento afíiictivo no rosto, o disco começava a girar, a girar cada vez mais phrenetico, e aquelle redopio dava-lhe vertigens mortificantes, a imagem de Margarida era impeilida também no redemoinho e desapparecia absorvendo-se no desvario d'aquella voragem.

Sentia uma afflicção que o abafava, como se a alma quizera arrancar-se-lhe e fugir do corpo; levantou-se meio suffocado, accendeu duas velas, queria luz, ar, abriu uma janella, uma baforada crassa e humida fustigou-lhe o rosto, fechou-a parecia-lhe que aquella bafagem morna e nevoenta era um halito pestilencial de morte que lhe roçava pelas faces.

Abriu um livro, os olhos seguiam as linhas sem as entender, o espirito vagueava errante e desatinado, levantou-se passeando inquieto, impaciente pelo dia, devorado de cuidados de terrores, ia, pé ante pé, até ao quarto de Margarida, escutava reprimindo a respiração, dominando tentações que o estimulavam para entrar, receando acordal-a, se dormisse.

Mas logo pela manhã, muito cedo, entrou mansamente, na ponta dos pés; ficou aterrado diante do aspecto das siias feições decompostas; dormitava com uma somnolencia sobresaltada.

Interrogou a criada; tinha passado mal a noute, agitada, febril, com interrupções constantes na modorra somnolenta, murmurando palavras inintelligiveis, perguntando pela filhinha, por Fernando, tinha sede, bebeu muito anrudadas vezes.

Fernando sahiu devorado de inquietações, foi acordar o dr. Barreiros, já o achara a vestirse e logo vieram juntos ao quarto de Margarida.

Tinha despertado do seu torpor. O medico interrogou-a, tomou-lhe o pulso, fitava-a com olhares agudos, disfarçando mal a sua inquietação.

Elia queixava-se de uma dor de cabeça, sentia uma prostração muito penosa, uma sensação de um abatimento muito desconsolador. Tinha muita sede, um gosto amargo na bocca, respondia ás perguntas com uma lentidão indifferente, no espirito uma abstracção preguiçosa, e no corpo uma lassidão apathica.

E logo depois sentiu um arripio, que lhe deu um estremecimento violento, e queixou-se de uma vertigem.

Conchegaram-na sobre as almofadas, com recommendação do dr. Barreiros para ter a parte superior do corpo bem levantada.

Mas de repente emergiu do abatimento que a esmagava, e com uma excitação nervosa, o olhar brilhante, desvairado, as faces accesas, perguntou com uma exaltação vibrante na phrase, que lhe dava ao timbre vocal uma accentuação desusada e impressionadora :

-- Estou muito mal, perigosamente doente, não é verdade?.. Digam-me, digam-me a verdade, quero sabel-a.

E levantando o corpo das almofadas apertava nervosamente, com as suas bellas mãos magrinhas, a mão robusta e sanguínea do dr. Barreiros.

-- Que ideia!.. Está simplesmente abatida, fatigada, isso é naturalissimo, não podia deixar de ser. Mas nada de commoções, isso é que nos póde fazer muito mal, vamos... socego, um repouso absoluto, então !..

-- Mas não importa, quero vêr a minha filhinha, como está ella?.. Quero vel-a. Como está ella? Vão buscal-a, não a deviam ter tirado d'aqui, o seu lugar é ao meu lado, por isso passei mal a noute. E eu sei lá se essa ama de emprestimo a tracta bem. Não, não, já disse quero-a aqui, vão buscal-a. E o leite será bom?. . -- E fallava com uma exaltação impetuosa, o rosto afogueado, e a phrase tinha um tom de aspereza imperativa, urgente, que contrastava com a sua habitual doçura.

Fernando e o dr. Bárreiros procuravam acalmai-a; mas a agitação recrudescia, as contrariedades azedavam-na, exasperavam-na ainda mais.

Foi inabalavel, de uma dureza impaciente, irritavel, nas suas exigencias. E a creança veio.

Margarida beijou-a muito excitada, febril; fitava-a com exaltado enlevo; os olhos tinham um brilho, como de um metal prateado muito luzente. E depois attrahindo Fernando a si com phrenesi, com um desvairamento no olhar:

-- Se eu morrer, ama-a muito, sim?..

-- Oh, Margarida, que loucura !.. Mas tu não estás assim doente para teres d'esses pensamentos! -- E elle empallidecia medonhamente, e forçando um sorriso, conseguia apenas franzir a bocca na mais pungente das amarguras.

Mas as ideias de Margarida mudavam logo de rumo, e voltando-se para o medico, com o olhar muito dilatado, perscrutador, entre esperançoso e assustado, interrogava:

-- Diga-me, doutor, não estou em perigo de vida, não? A saude ha-de voltar não é verdade?

Sim, diga que sim, porque eu preciso de viver.

Ah, como a saude é boa, como é bom viver para ella, para ti.. .

E, com a vontade retesada no esforço de uma larga aspiração vehementissima, parecia-lhe que a saude a invadia como uma onda acariciadora, que lhe refrescava o sangue, que lhe dilatava o corpo deliciosamente, que a enchia de uma nutrição consoladora, deleitando-a no illusorio goso de posse satisfeita de um bem-estar saudavel.

Mas esta sensação inebriante cahiu de repente, como uma vela enfunada a que falta o vento.

Os calafrios repetiam-se, a febre ateava-se, a dor de cabeça era mais aguda, cortada de vertigens e zumbidos nos ouvidos, logo depois um entorpecimento muito pezado esmagava-a, e conservou-se durante todo o dia em uma apathia somnolenta.

O dr. Barreiros, á cabeceira da doente, amiudava as suas observações, receitava, andava abstracto, com uma expressão cuidadosa e funeraria, que mal podia dissimular. Foi a casa, folheou muitos livros, e voltou logo fazendo um exame da enferma ainda mais minucioso. Formulava de proposito muitas perguntas, mas ella respondia com vagar preguiçoso, indifferente, de uma monotonia inconsciente, como que imbecil.

E queixava-se de dores nas regiões dorso-lombares; lingua branca e espessa parecia coberta de uma camada de gesso, o nariz estava secco, afilado, e vinha-lhe, de quando em quando, uma tosse, acompanhada de uma leve titillação na garganta.

O dr. Barreiros sahia do quarto, pensativo, anediando repetidas vezes o farto bigode preto com a mão espalmada.

Fernando observava-o com uma anciedade angustiosa.

-- Está muito doente, não está? Que é que tem? É doença de perigo? Falla-rae franco, por tudo o que tens mais sagrado, supplico-to.

-- Está gravemente doente está, perigosamente. .. creio que não. .. Era todo o caso seria conveniente que viesse outro medico. . . Não é que o seu estado sej a tal. .. mas não confio em mim.. . assim fico mais tranquillo.

-- Oh, Barreiros, que me matas!.. Então sempre ella está muito mal!.. -- E fazia-se de uma lividez de muribundo, abraçando convulsivamente o amigo.

Ao cahir da tarde Margarida sahiu do estado de torpôr que a adormentara todo o dia; agitava-se, tinha sobresaltos nervosos, electricos, os musculos da face contrahiam-se em vibrações galvanicas,os dentes entrechocavam-se rangendo. Proferia palavras incoherentes, que denunciavam uma forte perturbação de ideias, confundia as noçoes de tempo e lugares. Ao mesmo tempo tinha ainda a clara percepção d'estes desarranjos da memoria, e a consciencia d'este estado, este sentimento penoso, ainda mais a affligia, e aggravava-lhe a sua perturbação, o mal-estar roedor em que se debatia. Depois os primeiros symptomas de desvario appareciam entre palavras rosnadas incoherenteinente, como um delirio suave, de uma mansidão monotona e tranquilla.

E ella via-se a caminhar em uma rua grandiosa, muito comprida, em que os edifícios tinham um aspecto magestoso de cathedraes gothicas, de unia grandeza sobrenatural, banhada de um frio luar intensissimo e azulejado, e as sombras, que se esbatiam em prolongaçòes immensas, eram muito mais carregadas e tinham um aspecto mais duro do que o usual. Sentia-se leve, volátil, imponderável; n'aquella atmosphera a um tempo luminosa e sombria; ouvia-se o som bronzeo e imponente de um relogio que dava horas, sahindo de uma soberba cathedral, que lançava no ar, arrojadamente, a uma altura infindável as agulhas rendilhadas das suas torres, refulgentes ao luar, e ella queria contar aquellas horas, a que attribuia uma influencia mysteriosa, incomprehensivel na sua vida, mas confundia-se, embrulhavase, perdia a noção dos numeros, não sabia se nao contar até dous, e repetia-se, repetia-se com uma impaciencia afflictiva, em quanto que as badaladas iam cahindo lentamente, sem descontinuar, no silencio d'aquella noute gelada com um som lugubre, gravemente choroso.

Mas ella caminhava sempre para a grande cathedral suavemente, como que impellida de um sopro fagueiro, as portas abriam se de par em par, e ella entrava em um recinto resplandecente de uma luz celestial, no centro ardiam grandes tocheiros, no meio havia um largo divam coberto de um manto de setim bordado, e uma figura esbelta, vestida de branco, conduzia a pela mão até áquelle leito sumptuoso. Sentia-se attrahida, fascinada pelo rosto meigo e radiante d'aquelle vulto, elle dizia-lhe--dorme--e Margarida obedecia com uma seducçao deleitosa, deitava-se a dormitar na doçura de um extasi, embalada em uma modorra de uma delicia muito serena.

Um trem parou á porta. O dr. Veiga entrou alegre, radioso, rosado. Tinha muita voga, era insinuante, jovial, conversava com muita vivacidade, tinha sempre uma historia faceta, um dito humoristico, que levantava o moral do doente e desanuviava todas as caras funerarias que lhe appareciam. Ao doente, quando se lhe approximava da cabeceira, fazia o effeito de um raio de sol que entrasse no quarto com a vida e a saude.

Deixava sempre atraz de si a esperança e a confiança.

Logo que entrou no quarto comprehendeu a gravidade da moléstia, mas nem um musculo da face, contrahindo se-lhe, trahiu o pensamento, examinou a doente, e tomou conhecimento dos symptomas mais aterradores, sempre com ar frescalhão.

Quando elle veio, Margarida tinha a lingua ainda mais sêcca, e barrada, ao centro, de uma brancura amarellada, cercada de uma vermelhidão muito viva; pelo corpo havia manchas de uma cor de lama.

Os dous medicos foram conferenciar.

-- É um typho cerebro-espinhal?

-- Parece que sim. A invasão brusca da molestia, a prostração excessiva e abatimento precoce da doente, o instantâneo desenvolvimento do delirio, tudo o está indicando--E o dr. Barreiros proseguindo fez o diagnostico, expondo rapidamente a marcha da molestia, em traços lucidos, e expoz o tratamento applicado--vinho velho do Porto, dieta restaurante, extracto de quina, um cordial com mistura de aguardente, e lembrava-se de applicar as abluçoes de agua fria com vinagre aromatico.

-- É verdade que ha o inconveniente de excitar a diaphorese e debilitar a doente ainda mais, mas em caso desesperado. . . Comtudo podem-se suspender logo á mais leve manifestação do primeiro suor.

-- E seria tambem conveniente recorrer ás ventosas. .. Mas agora é rezar-lhe por alma. São febres fulminantes que matam entre o terceiro e o oitavo dia. É tudo inutil.

-- Mas o nosso dever é esgotar todos os recursos -- Continuou o dr. Barreiros com severidade triste.

O dr. Veiga curvou-se com gravidade em signal de assentimento.

Fernando esperava com agonia o resultado da conferencia; com os olhos entumecidos fitava nos medicos a vista supplicante, aterrada, de uma afflicção anciosa, e, acompanhando o dr. Veiga até ao patamar, procurava descobrir a verdade, apertando o com perguntas insidiosas e affectando muita serenidade.

-- Então, doutor?. . . Póde dizer a verdade.

Estou preparado, bem vê, está em perigo, não está?

-- Qual! Ora essa, nem fallemos n'isso, a sciencia tem grandes recursos. Veremos ámanhã como está, até ámanhã. Adeus, até ámanhã...-- E raspando um phosphoro accendia prazenteiramente um charuto.

Fernando, voltando alvoroçado, offegante, abordou o dr. Barreiros cora effusão, o olhar chamejante de esperança.

-- Então ha esperanças, não ha? O dr. Veiga diz que de perigo não era. ..

-- Ah! elle disse isso! -- E a physionomia contrahia-se-lhe com severidade.

-- Parece que duvidas, hein?!... -- E de repente o semblante carregou-se-lhe de agonia e pavor.

-- Isso sim, eu duvido lá!... Foi também essa sempre a minha opinião... Mas deixemonos de palavriado, tratemos d'ella. Olha, é preciso um oleado grande, e uma esponja. Vamos darlhe banhos frios. Vamos a isso.

De noute o delirio declarou-se com mais violência. As faces purpureavam-se-lhe na calorificação ardentíssima de uma febre aguda, os olhos de um brilho diamantino, ora fixados com uma dureza espantada, ora rolando em contracçoesde strahismo,. davam-lhe um aspecto de allucinação bravia. Gritava com brados afflictivos, debatia-se com desespero, ora intireiçando os braços com uma expressão de horror hirto, ora levando as mãos á cabeça em um paroxysmo de dôr.

E aquelle semblante, sempre avelludado de uma meiguice resignada, em que a pureza de uma alma boa e amoravel, e os affectos de um coração dedicado, fadado para o sacrifício, transpareciam na limpidez de um olhar suave e tranquillo, tinha agora o aspecto bravio, selvático, das paixões desordenadas e da loucura furiosa.

De repente retesava-se toda na contracção de uina rigidez epiléptica, e cora os olhos demasiadamente dilatados, a pupilla fixa medonhamente, gritava que lhe tirassem d'alli -- aquella mulher -- bradava com desespero pela filha, por Fernando, e, com um esforço desesperado, desprendeu-se dos braços que a seguravam, fazia o gesto de attrahir a si alguma cousa, de conchegar, acalentar alguém ao seio, relanceando de revez olhares aterrados, murmurando palavras inintelligiveis, e a voz com um som cavo, enrouquecia e extinguia se em um gemido prolongado, como um resmonear modorrento.

Fernando assistira a este primeiro accesso de furor delirante, aniquillado, petrificado de uma estupefacção idiota. Seria possivel! Era realmente aquella a sua Margarida!. . .

Mas a excitação delirante acalmava, o semblante reassumia uma expressão boa, sorria com doçura, ciciava phrases affectuosas com uma inflexão de suavidade terna na voz, cruzava no seio os braços, e dava-lhe o brando movimento de quem embala uma creança com requintes de carinhosa delicadeza, e no rosto tinha a vaga expressão pungente de uma loucura mansa; depois em phrases entrecortadas fallava do ar sadio do campo, de convalescença, de felicidades tranquillas no silencio refrigerante da aldeia.

O dr. Barreiros levava Fernando para fóra do quarto.

-- Não deves estar aqui, vai para o teu quarto, eu lá te levarei noticias.

-- Eu posso lá estar sem a ver! Mas que é isto? Que é o que ella tem?. .. Pela nossa amisade que é o que ella tem?!... Tu enganas-me... fazem-me doudo...

-- É uma crise... veremos... logo... ámanhã...

E Fernando errava, devorado de anciedades agonisantes, do seu quarto para o de Margarida; andava por toda a casa desatinado, como que agitado de uma loucura, opprimido de um malestar esmagador, assalteado de terrores que o desvairavam. Umas vezes, ao presencear um d'aquelles accessos de violento delirio, sahia em um impeto doido de angustia do quarto de Margarida, atirava-se sobre a cama a soluçar na convulsão de uma agonia aniquilladora, insondável; outras vezes, com os olhos fitos duramente no chão, deixava se cahir em uma cadeira, esmagado na immobilidade de um desalento infindável, concentrado na morna apathia de uma desesperação que o roia surdamente, com uma crueza inexorável, como uma peçonha dilacerante.

Olhava em volta de si, e vendo toda a sua casa revolvida de repente nas convulsões de uma desordem aterradora, a vida apparecia-lhe como um aby3mo sem fundo, affigurava-se-lhe que todo o seu ser, toda a sua existencia se desmoronava aos pedaços, como um bello edificio que desaba de repente. E no meio d'aquellas ruinas sentia todas as pungentes sensações, que se experimentam no meio dos silêncios lugubres das cidades arrazadas, e dos cemitérios abandonados, devorados de plantas parasitas e damninhas.

Os delirios succederam-se durante toda a noute com oscillações várias. Mas pela manhã o accesso attingiu o ponto agudo e culminante da violência, afogando-se depois em um choro convulso, como uma lavareda que se apaga na abundancia de um jorro que brota de súbito.

Tinham parado com as abluções, manifestaram-se suores abundantes; a seccura da lingua tinha agora uma apparencia de queimadura fuliginosa; nos beiços e nas gengivas havia o aspecto denegrido do sangue pisado.

D. Guiomar, Fabião da Rocha, o Sepulveda e outros vieram informar-se do estado da doente.

Foi o dr. Barreiros quem lhes recebeu a visita.

D. Guiomar desculpava-se de não ter vindo mais cedo, só ha pouco o soubera; mas estava alli prompta para o. que fosse preciso, para velar á cabeceira da doente, servir-lhe de enfermeira, para tudo emfira que fosse necessário. Poderá, não que ella era amiga, verdadeira amiga de Margarida, um anjo. .. uma perola, como hoje raras apparecem.

-- Também, uma cousa assim! Tão de repente! O que é a vida!... -- Interrompia o snr. Fabião, abanando a cabeça e dando á cara apopletica uma expressão de pungimento meditativo.

-- Então está muito mal? em perigo de vida?

-- Sim, minha senhora, perigosamente doente... irremediavelmente perdida.. .

-- Que fatalidade!.. . São sempre os bons que vão adiante!. ..--E o snr. Fabião continuava a menear a cabeça lugubremente, coçando o joelho gordalhudo com a concavidade da palma da mão.

-- E o Fernando?. . . Pobre amigo, ha-deestar inconsolavel. Desejava abraçal-o, os amigos são para as oceasiões--Intervinha o Sepulveda, e com o elástico da luneta, enrolado no dedo indicador, entretinha-se a imprimir ao vidro movimentos giratorios.

-- E já se confessou?. . . Muito desejava vêl-a, despedir-me d'ella... da minha boa amiga, pobre amiga!... -- Ainda vou fazer um promessa -- Dizia D. Guiomar com a voz dolente, muito quebrada de unia commoçao, mas os seus olhinhos inquietos tinham impaciencias, curiosidades devoradoras, desejos imperiosos de se intrometter, de farejar, de observar, de mexericar.

-- Não é possivel, minha senhora, a doente precisa do mais rigoroso repouso, e nestes casos de typhos e de typhos fulminantes, não póde haver no quarto agglomeração de gente.

-- Ah, é um typho!.. . Tinham-me dito outra cousa. .. -- E D. Guiomar, empallidecendo, sentiu-se de repente sentada sobre brazas, e levantando-sé:

-- Bem, então como não posso vêl-a.. . Mas se eu for precisa, é só mandarem um recadinho.

-- Peço o favor de apresentar ao meu bom amigo Fernando as sinceras manifestações da minha magoa -- E o snr. Fabião curvava-se muito compungido.

Os tres sahiram da sala galgando as escadas apressadamente. D. Guiomar levava azas nos pés, Fabião da Rocha voltava-se pela ultima vez para cortejar pesadamente o dr. Barreiros, que tinha desapparecido descortezmente, e o Sepulveda sahia com uma vaga distracção no olhar, protestando não voltar, mas ruminando no cerebro, em compensação, um projecto de necrologio.

A febre ateava-se com uma violência ascendente, de uma imperturbabilidade destruidora, implacavel; mas á irritabilidade do delirio tinha succedido ura constante torpor somnolento, ao declinar da tarde a excitabilidade do cerebro diminuia, como que abafando-se em uma asphyxia intellectual, e Margarida, extenuada, consumida pela febre, que adquiria uma elevação fulminante que suffocava a vida na sua ascenção progressiva, cahia no estado comatoso. O rosto estava mirrado, com uma magreza de esqueleto, a pelle macia tinha uma cor de cera, os cabellos negros, ensopados em agua, cahindo empastados, escorridos, ao lado das faces, davam-lhe um destaque medonho á immobilidade cadaverica d'aquella physionomia livida.

Sentiam-se no quarto uns aromas penetrantes a vinagre; havia um desarranjo allucinado; um panno escuro, como um crepe mortuario, cobria um grande espelho para lhe abafar os reflexos, e uma unica vela accesa, com um pequeno abat-jour, espalhava uns reflexos de uma lugubridade bruxuleante.

Fernando entrou no quarto com requintes de precauçao, estava desfigurado, com os cabellos desgrenhados, as faces emagrecidas, os olhos inchados. Estacou aparovado, relanceou a vista do leito para o dr. Barreiros com um desvairamento interrogador, que dava arripios.

Andava-se na ponta dos pés, abafando-se os passos, fallava-se baixinho, com precauções lúgubres, que davam ao quarto um mutismo sepulchral.

O dr. Barreiros afflicto correu para Fernando, apertou-o nos braços.

-- Não, não está morta.

Fernando atirou-se aos pés da cama com uma explosão de chôro convulso.

Antonio de Azevedo, com os olhos roxos de lagrimas, assoava-se ruidosamente; a mãe de Fernando ajoelhava diante de um crucifixo de marfim, pousado sobre a commoda, e com um rosario na mão ciciava umas rezas, Leonardo da Cunha, curvado sobre o leito, suffocado de soluços, abraçava-se a Fernando e com a voz despedaçada lamentava-se:

-- A minha filha, a minha querida filha. .. O que Deus me reservou para o fim da vida! onde está a nossa felicidade, Fernando, nós não a mereciamos, meu Fernando.. .

Mas elle ao contacto d'aquelle abraço, sacudiu-se de um estremeção violento, os braços do sogro suffocavam-no, as palavras d'elle queimavam-no.

E Fernando tremia, entontecido, na febre de um calafrio.

O dr. Barreiros approximou-se d'elles, separou-os e brandamente foi arrastando Fernando.

Pouco depois ouviu-se o retinir de uma campainha na rua, ao longe, e a toada do -- Bemdito -- soou cantado em côro. Aquelles sons tristes vieram despertar no quarto um ruido sobresaltado, que cortou o silencio mortuario em que tudo se tinha abysmado em volta do leito de Margarida.

A rua enchia-se de ruidos e de luzes. Tinha cessado a chuva, a noute acclarava-se com uma frialdade fina; as nuvens esfarrapavam-se, adelgaçavam-se, como se o firmamento se desfizesse aos rasgões; corriam no firmamento aos pedaços; a lua apparecia velada entre massas algodoadas, de um esbranquiçado enfumarado, como um globo prateado que rolasse maciamente entre gazes muito transparentes. O gaz nos lampeões amarellava-se, contorcendo-se ao vento, e o luar escorregava pela humidade das calçadas em brancuras scintillantes.

No quarto de Margarida, sobre a commoda, diante do crucifixo, seis vellas ardiam em castiçaes de prata, espalhando uma claridade amarellada sobre a brancura da toalha de rendas; o padre murmurava umas rezas soturnas, que se misturavam ao arquejar dos soluços, fazia as uncções com o dedo pollegar, em quanto que a mãe de Fernando segurava a vellasinha, applicada á mão de Margarida, transparente, e de uma inercia moribunda.

Fernando estava estirado sobre a extremidade da cama na prostração de uma dôr atroz, que o fazia idiota.

Pouco depois a campain ha tilintava outra vez na rua, soava de novo o cantico triste, depois o Bemdito--perdia-se ao longe, como um pranto doloroso que se extingue nas convulções dos últimos soluços, prolongados na repercussão de um echo funebre.

No silencio desolado do quarto cahia o arquejar de algum soluço e o crepitar doce das vellas Fernando levantou a cabeça de cima da cama, olhou Margarida. Fila tinha no rosto uma serenidade macerada, de uma suavidade muito dolorida; os olhos cerrados sumiam-se nas orbitas; no nariz afilado a pelle adheria, muito repuxada, ás cartilagens; a bocca entre-aberta, com os beiços muito adelgaçados, sem cor, semelhava apenas um buraco escuro, sem a graça do desenho das linhas labiaes, a pelle esmaecia-se em um empallidecimento gradual manchando o rosto em tons macilentos, o corpo estremecia em vibrações titilantes dos tendões; nos musculos da face passavam rapidas contracções nervosas, todas aquellas feições delicadas, diminuindo em uma contracção decomposta, davam áquelle rosto um aspecto que gelava de afflicção. Os braços estendiam-se com uma molleza inerte sobre a cama, e as mãos mimosas confundiam-se com a alvura da coberta.

Fernando, em um impeto de dôr, apossou-se de uma das mãos e beijava-a com uma adoração delirante. Mas de repente o corpo de Margarida estremeceu como que trespassado de uma corrente electrica; uma contracção nervosa sacudiu-a; nos musculos da cara passaram vibrações subtis; os olhos abriram-se muito dilatados; relanceou a vista espantada pelo quarto; viu as luzes, que ardiam ainda com apparato funerario, viu Fernan- do cahido sobre a cama em uma prostração agonisante. N'este momento ouviu-se um vagido flebil. No cerebro entorpecido de Margarida passou um lampejo, nos olhos chamejou-lhe um raio de intelligencia, apertou a mão de Fernando com 4 uma contracção nervosa, envolvendo-o nos fluidos de um olhar indizivel.

Mas logo uma convulsão mais violenta agitou-a, cerrou os# olhos, e, contorcendo-se muito dolorosamente, abriu-os outra vez, rolando-os nas orbitas como dous globos de vidro branco gelado.

Ouviu-se uma suffocação esterturosa, arqueou o peito, esticando levemente o corpo na rigidez de uma contracção, e logo cahiu sobre as almofadas inerte, inanime.

Fernando levantou-se com um impeto allucinado de pavor, um grito rouco estrangulou-selhe na garganta, levou as mãos á cabeça com um gesto de agonia suprema, como se a alma, fugindo de um impeto, íhe despedaçasse na passagem violenta todo o seu ser, e cambaleando cahiu nos braços do dr. Barreiros.

A mãe de Fernando cerrava piedosamente os olhos de Margarida, e cobriu com um lenço branco aquelle rosto meigo, ainda tépido do calor da vida que fugia, e em cuja diaphaneidade livida transpareciam ainda depois da-morte, todas as suavidades de uma alma boa.

Quandç se recobrou da vertigem, que o estonteou, como se o tivessem abatido com uma forte martellada, estava no seu quarto; relanceou um olhar de uma inconsciência idiota, teve um accesso de desesperação doida, e n'esta explosão de dor allucinada teve vontade, como um ebrio enfurecido, de esmigalhar a cabeça contra uma parede.

Mas logo depois cahia extenuado, suffocado em soluços, e atirou-se sobre a cama, embrutecido, prostrado n'aquelle torpor imbecil que succede ás grandes angustias, e cahira na profundidade de ura sorano bestial, era que a matéria despedaçada, esmagada ao peso brutal de ura cançasso immenso suffoca o espirito, afogando-se nos abysmos de um total esquecimento de todas as cousas.

O rosto entumecido, amarfanhado, avelhentara-se em tres dias, com os olhos inflamados do choro, sumidos no negrume das olheiras, tinha na physionomia a expressão de uma dureza angustiosa; havia, no seu aspecto a quietação desoladora de uma agonia mansa, como a immobilidade de urna atmosphera pesada, carregada de uma electricidade medonha, que opprime e suffoca.

Com os olhos paralysados na fixidez de um brilho de metal escandecido estava horas sentado, entorpecido, devorado interiormente de uma dôr intensa e calada, que o roia e queimava, como um fogo lento e latente, que mina e destroe surdamente.

A porta do quarto ficara entre-aberta e vira passar o caixão forrado de preto, agaloado de ouro; sentira ruidos insolitos, um movimento desordenado; ouviam-se, de quando em quando, rumores de soluços; a Ignez era doida por Margarida, andava pela casa como que aparvalhada, chorava por todos os cantos, Fernando experimentava a sensação de quem respira um ambiente amargo, saturado de lagrimas; ouvia resoar umas pequenas martelladas seccas, repetidas, que lhe faziam no cerebro um echo fúnebre, e punham nos nervos uma impressionabilidade dolorosa, e doia-se ao som d'aquellas pancadas, como se lhe cravassem no coração prégos batidos a martello.

Mas nem uma lagrima lhe humedecia o brilho sinistro e calcinado do olhar, parecia petrificado na fulminação da dôr; sómente por vezes um estremeção lhe arripiava as carnes e dava uma vibração muito trémula aos nervos da cara, e moviase pela casa com rigidez automatica, com uma allucinação sombria no olhar.

Dous dias depois foi ao quarto de Margarida. Tinha guardado a chave, exigindo que ninguém tocasse nas cousas que lá estavam, depois que o corpo sahiu.

Quando entrou achou ainda tudo no desalinho da doença e da toilette da morte; depois de amortalhado, o corpo fôra transportado para outra sala, e, na perturbação desatinada de todos, ninguem se lembrara de arrumar. As gavetas abertas, remexidas, indicavam movimentos desordenados, o ultimo chambre, que Margarida vestira, estava cahido no chão, estirado, uma manga para cada lado, com aspecto de esmagado; sentiam-se ainda no desarranjo das cousas as palpitações do desvairamento doloroso.

Fernando relanceava para tudo longos olhares, e a vista vagueava-lhe d'aquelle chambre, alli espapado, para o leito, onde a vira ainda ha pouco feliz em vida, e depois debatendo-se nas convulsões da morte.

Todos aquelles objectos eram outras tantas recordações expiadoras; na disposição das almofadas havia ainda vestígios d'aquelle pobre corpo; via-se na depressão do travesseiro uma cóvinha a modelar o formato da sua cabeça inanime, e, com os olhos cravados iTaquellas cousas, que dardejavam sobre elle efluvios lancinantes, com uma forte contensão do espirito, electrisado nas febres de pungentissimas reminiscências, reconstruía as formas d'aquelle corpo emagrecido, definhado, devastado pela doença, como'se realmente o tivera alli diante de si, e via-o em todo o horror da verdade do soffrimento e da morte, como uma expiação horrivel, que o lacerava. Approximou-se da cama, sentiu uma tentação de beijar aquellas almofadas, como se a beijara a ella mesma, ainda pouco antes da sua lividez cadaverica; tremia, vacillava, sentia um vago terror. Mas julgava ver n'aqu'elle vulto, que tinha alli diante de si cahido em uma immobilidade hirta, a bocca sorrir, os olhos abrirem-se lentamente e as pupillas apagadas reaccenderem-se no lampejo de um perdão, e elle avançava, beijava, com adoração respeitosa a almofada, corno se beijasse a mesma brancura assetinada d'aquella testa amiga, que já não podia apertar contra o peito, e aquelles olhos que, na fulguração do seu candido olhar,já não podiam dizer-lhe que o amavam.

E ficava longo tempo absorvido na contemplação d'aquelle leito, onde fella tantas vezes lhe sorrira feliz e radiosa de saude; afferrava-se a todas as recordações para atear o incendio da sua dor, sentindo um prazer voluptuoso em se revolver no esbrazeamento da sua agonia; retesava-se violentamente no esforço da vontade e da imaginação para reter aquella imagem. Mas ella escapava-se-lhe pouco a pouco, apparecia-lhe primeiro decomposta pelo soffrimento, depois moribunda e por ultimo macilenta, petrificada na rigidez cadavérica. E aquelle rosto, já immobilisado na morte, mas ainda sereno e de uma suavidade linda, ia-se decompondo e desfazendo; os olhos sumiam-se nas cavidades, e as longas pestanas, sedosas, faziam uma sombra ainda mais escura sobre as olheiras cavadas; o nariz afilava-se, a pelle, de uma côr de cera amarellada, repuxavase, collando-se á saliencia ossea das faces que sobresahiam; os labios retrahiam-se, desappareciam refrangendo a bocca entre-aberta em um pequeno hiato negro e com a cabeça inertemente pendida, a pelle arrepanhada deixava ver os dentes n'aquelle sorriso da morte, forçado e doloroso, que dá arripios.

Aquelle semblante demudado decompunhase cada vez mais em tons cadavericos, macilentos, desfazia-se em podridão, reduzia-se ao nada... E Fernando, angustiosamente allucinado pelas suas visões, cahia de joelhos aos pés da cama, escondia a cabeça nos lençoes, abysmando-se na sua dôr. Olhava desolado para dentro de.si, sentia todas as suas fibras despedaçadas, como um instrumento sem harmonias, cujas cordas foram violentamente quebradas, parecia-lhe que lá por dentro tudo lhe cahia aos pedaços, vinha-lhe a sensação pungente de que todo elle era uma ruina, que viera de repente na vertigem de um cataclysmo.

O que era agora para elle a vida que lhe alvorecera tão ridente?... Tudo solidão, aridez, desamparo. Nenhum dos affectos que o cercavam podia encher-lhe o immenso vacuo, que se lhe abria na existencia e que lhe fazia sentir todo o peso esmagador da sua miséria. Que ficava elle agora a fazer na vida? Que razão tinha, o que lhe restava para lhe valer a pena viver? Onde estava a luz que o arrancasse áquella treva que o asphyxiava? Que ideal iria agora dirigir-lhe a existencia? .. .

Mas de repente, como uma resposta a todas estas interrogações, apparecia-lhe a imagem da filhinha, era o vulto de Margarida como que a desdobrar-se lhe em uma miniatura seductora, e esta ideia bafejava-o como um sopro reanimador que lhe reaccendia no seu ser todo desorganisado uma centelha de vida, ouvia dentro de si uma voz que o mandava consagrar-se ao destino d'aquella creança, que era, a um tempo, a sua filha, e a encarnação reviviscente de Margarida.

Mas as suas ideias confundiam-se em um vago atordoamento, como um mar que se agita batido de ventos contrarios, e via, acabrunhado, estarrecido, todas as suas aspirações, todas as suas esperanças jubilosas do passado sumirem-se na escuridão de um horisonte que se recuava infindavelmente; enxergava muito ao longe os clarões scintillantes, as visões esplendidas da sua mocidade e via cahirem sobre cilas umas sombras muito negras, que lhe escondiam as passadas perspectivas para todo o sempre.

Erguia-se, relanceava olhares espantados, de uma imbecilidade desvairada, para os objectos que o cercavam e seguiam o movimento desordenado e vertiginoso das ideias, rodopiando em volta do quarto.

Depois, calmando-se mais, olhava tudo com uma attenção demorada, pensativa, como se quizera abraçar-se com voluptuosidade dolorosa a todas aquellas reminiscencias mortificadoras, e via, na sua immobilidade silenciosa, funeraria, as velas apagadas meio derretidas, o pallido Christo de marfim, dentro da bacia a grande esponja ainda molhada, que roçara por aquelle corpo emaciado, que ardera e se consumira nas labaredas da febre, o chambre estirado no chão, como um simulacro de sudário, o panno pardacento que velava o espelho -- aquelle espelho diante do qual tantas vezes se alindara para elle!... Insensivelmente sentia-se attrahido para aquelle vidro, em que a imagem de Margarida como que se estereotypara, e que exercia sobre elle uma fascinação dolorosa, como se esperasse ver ressurgir alli o seu retrato; levou a mão ao panno, arrancou-o e viu-se esguedelhado, desfigurado, envelhecido com as feições decompostas. Achouse repugnante, com uma expressão repellente que o horrorisava, como se aquella physionomia angustiosamente contrahida, devastada pelo soffrimento, fora um reflexo da sua consciencia sobresaltada, accusando-o pela morte de Margarida.

Recuou espavorido, sahiu d'alli allucinado, ia refugiar-se no seu quarto, o dr. Barreiros subia a escada, entraram em uma sala, Fernando abraçou-se a elle com desespero.

-- Oh! Barreiros, que expiação a minha! Que horrorosa vida! -- Então... coragem, meu pobre amigo!. . .

A vida ainda não é muito má, quando pela nossa parte alguma cousa fazemos para a tornar boa. A vida pode estar na familia, quando tem por direcção um interesse bom e honesto, que nos dá a paz da consciência, ou em outro ideal elevado pelo qual valha a pena viver e até soffrer.

-- Mas agora, agora, a mim.. . que me importa viver? O que me resta?!. ..

-- A minha amisade, e sobretudo, que largo horisonte! a tua filha. ..

XXVII Alguns mezes depois o Antunes chegava ao Porto precipitadarnente.

As afflicções dé dinheiro tinham, tocado o ponto agudo em casa de Luiz. Apertado pelos credores, atormentado, impellido até ao ultimo reducto, appellara, no auge da sua afflicção, como recurso extremo, para o sogro, com grandes promessas de emenda, e declinando para Adelina as responsabilidades dos apuros a que tinha chegado.

Azedado de cólera e inquietações o Antunes nao teve mão em si que não abalasse para o Porto.

Queria elle mesmo, por seus proprios olhos, inteirar-se da situação, providenciar energicamente, cortar o mal pela raiz.

As dividas, com os juros accumulados, ascendiam a uma quantia enorme, veio a urh ace ordo com os credores, mas, sem embargo, viu com terror que se lhe escoava n'aquella voragem de dissipações uma bôa parte da modesta fortuna, que tanto lhe custara enceleirar. Enfureceu-se, teve explosões de dor colérica, pagaria, sim, não havia remedio, também a culpa era sua, para que largara' elle os vôos áquelles dous estorninhos?

Mas também agora seria energico, cortar-lhe-hia as azas, chamal-os-hia ao rego, em quanto era tempo.

E exigiu que sahissem do Porto, que voltassem para a província, sem isso não pagaria nada; Adelina ainda quiz revoltar-se, mas o Antunes estava desenganado, de pedra e cal, e depois vinham-lhe vagos terrores pelo futuro.

-- Não, lá isso agora arrumou e depois d'elle metter os pés á parede. . . Tinham-lhe cahido as cataratas dos olhos, já não tinha teias de aranha no miolo, não que dinheiro é sangue e então elle que o cavara com o suor do seu rosto, e n'aquelle andar. . . E que nem queria pensar n'isso.

Adelina arrepellou-se de prantos, afogueavase nos rubores do pejo, zombariam d'ella, escarnecel-a-hiam, quando a vissem cahida das suas grandezas, e depois as perspectivas da aldeia atterravam-na, aquella subita privação da vida que phantasiara dava-lhe todas as exasperações da dôr e da raiva, e sobreexcitada, estimulada por multiplas causas que ha tanto tempo actuavam sobre ella, no auge de uma irritabilidade convulsiva, cahia em prantos convulsos, nervosos.

Mas o Antunes foi inflexível, sómente annuio, para salvaguarda das apparencias, ao alvitre de passar algum tempo em Lisboa. Mas iriam todos juntos, debaixo da sua vigilância; fariam com disfarce uma diversão pela capital, apparentando uma mudança de residencia para desnortear os mexericos.

Dias depois da chegada de Luiz e Adelina o boticario eo juiz de paz conversavam sobre o caso do inesperado regresso, caminhando de passeio pela estrada ao declinar da tarde.

-- Então, snr. Casimiro, que me diz á filha do Antunes e mais ao marido?... Aquillo pelos modos ia de vento em popa, olhe se eu me enganei com a serigaita. Mas foi bem feito, é para lhe abater a prôa, ora ahi está no que deram aquellas chanças, a gente sempre vê cousas!... E tinha trem, e trem de luxo!... Ora o diabo! -- E cascalhava umas risadinhas seccas, muito chocarreiras.

-- Hum... trabalhos do mundo. Sabe o que lhe digo, snr. Balthazar, mau fado das creaturas. É como é. E olhe que tenho pena do Antunes... Não que nem parece o mesmo, anda com a espinhela cahida, que parece lhe deu mau olhado...

É verdade, um cousa assim!... -- E estacava pesadamente, arrastando a voz soturnamente, olhando o boticario por cima dos oculos, dando á cabeça oscillações graves, pensadoras, com ar funebre.

-- E quem o mandou sahir da sua criação?...

Ora não está má -- bradou o boticário com um arremesso do corpo esguio, traçando as mãos atraz das costas -- Metteram-lhe umas fumaças na cachimonia, deram-lhe o pendrucalho; uma injustiça, quando ha por ahi outros homens mais habilitados, e ahi está o sapo concho mettido em andanças... Ora o paspalhão!... -- E, com o nariz arrebitado muito no ar, dava ao rosto encarquilhado uma expressão de desprezo muito enjoado e azedo.

-- Vamos lá, snr. Balthazar, olhe que o Antunes é boa pessoa, amigo do seu amigo, e homem para as occasiões. A mim já elle me fez um servição. E a você também, então não foi elle que lhe livrou o filho?... E olhe que essa foi calva, oh, compadre!... E lá foi o pobre do José da Anna do Portello em lugar do seu rapazola.

-- Sim ... eu tambem não digo que o Antunes seja mau homem... Elle alguma cousa influiu para livrar o rapaz... não digo que não. ..

Mas o administrador já me tinha promettido, e graças a Deus, se não temos crachás, ainda ha cá por casa um bocadito de influencia.

-- Pois tenho pena do Antunes, tenho pena do homem...

-- Também, oh! compadre, para você tudo vai bem. Mas, santa paciência... que o juizo lhe deu volta no miolo, lá isso é que deu... Se não diga-me cá, que lhe parece a resposta que elle deu ao Manoel da Quintella, um lavrador cheio como um ovo, quando lhe fallou no casamento do filho com a pequena?... -- Deixe-se d'isso, snr. Manoel, é muito bom rapaz o seu filho, mas não é homem para a minha Adelina, não foi para isso que a eduquei -- E que me diz a isto, hein? Oh! snr. Casimiro, olhe que esta não lembra ao diabo.

E de facto o pai de Adelina não parecia o mesmo; a saude e o caracter alteravam-se-lhe visivelmente; um pensamento fixa, amargurante, desolador, amarrotava-lhe o resto da vida. A filha revelava-se-lhe agora em todos os aspectos da sua alma estragada, já não eram possiveis illusões de amor paternal, tremia pelo futuro, e sentia todos os pungimentos das desillusões cruéis, vendo a filha a esta nova luz.

Agora via claro, a fortuna dera-lhe vertigens, tinha culpas, muitas culpas, reconhecia-o, penitenciava-se. Ah, que se ainda podesse haver remedio!... Se elle soubera!... Mas não, era tarde, muito tarde, e vinha-lhe uma dolorosa desconsolação que o acabrunhava.

Ruminava as amarguras d'este pesar, d'este pensamento fixo e doloroso, que lhe apressava a velhice, que lhe dava um desgosto da vida e um remorso do passado, e á medida que o espirito cahia no abatimento desconsolado, o corpo prostrava-se no depauperamento de todas as energias do temperamento; o esmorecimento do espirito consumia-lhe o principio vital na asphyxia de um deperecimento orgânico.

Adelina sentia-se, ainda mais do que o pai, convulsionada até ás profundezas do seu.ser, a sua existência, condemnada de novo ás monotonias suffocantes da aldeia, apparecia-lhe como uma injustiça e como a maior das desgraças. Aquelle monotono ruminar aldeão irritava-lhe o temperamento, intoxicava-lhe o caracter de azedumes irasciveis.

A principio enchia aquelle grande vacuo da vida provinciana com as recordações acres do seu viver vertiginoso no Porto, mas estas reminiscencias ainda mais a exacerbavam; depois recuavamse progressivamente no fundo de um horisonte longinquo, e quanto mais se affastavam, mais mortificante e anciosa era a sua aspiração para essas perspectivas seductoras, que se iam-sumindo na confusão das cousas passadas. Entre ellas e a sua vida presente estabelecia-se um abysmo enorme e a sua alma sentia ura desejo soffrego, pungente e irrealisavel, de as abraçar atravez d'aquelle espaço insondavel, insuperavel.

E este sentimento de impotencia ainda mais lhe avivava a sede insaciada de gosos, punha em constante irritabilidade todos os seus centros nervosos, enevoava-lhe a alma de melancolias, e a existência apparecia-lhe, como uma vasta solidão gelada, onde apenas sobresahia a sua alma mirrada nos gelos do tédio, como um viajante entorpecido na vastidão de uma steppe siberiana.

Começava um bordado que nunca se acabava, pegava em um romance e passava uma noute em claro a lêl-o de um folego com frenesi, com febre, mas outras vezes os olhos fitavam-se no livro sem o lêr, vasiamente fixos na mesma pagina, e depois os braços pendiam inertes e ella ficava immovel, por largo tempo esmagada na prostração de um desalento atroz. Ou então sentavase ao piano, os dedos corriam 0 teclado com ruido estouvado, mas logo arrastava-os languidamente na dilatação muito estirada de um extasi melodico, e de repente fechava o instrumento bruscamente, toda nervosa, de muito mau humor, chorava, rasgava o lenço.

Depois o piano ficava fechado por muitos dias; encerrava-se no quarto sombria, muito abatida, surdamente minada de um desespero roedor; não queria ver ninguém, não queria ar, luz, não vinha á sala de jantar, levavam-lhe algum alimento ao quarto, havia dias até em que quasi não comia, passava todo o dia reclinada em um sophá, vestida de roupão, com os cabellos soltos, bebendo chá forte.

Ora vinham estas longas prostrações morbibas, torpores melancolicos, nostalgias perturbadoras, outras vezes então eram fortes accessos de irascibilidade, de irritações exasperantes que lhe alteravam as forças reguladoras da economia, que lhe desorganisavam todo o systema nervoso, e sempre um mal-estar continuo que a ralava, que lhe empeçonhava a vida.

Comtudo, de quando em quando, no meio d'estas perturbações apparecia-lhe a scintillação de uma esperança, olhava com avidez o futuro e esquadrinhava n'elle perspectivas de melhor vida.

Esta existencia havia de ter um fim, herdaria, talvez breve, quem sabe?. . . E n'estas excitações, que lhe estragavam cada vez mais a alma, depravavam o coração e gangrenavam todo o seu ser, attentava no rapido definhamento de seu pai, vinha-lhe a ideia da herança com o seu proximo passamento, e sobresaltada, sem ter a força de repellir este pensamento atroz, despedaçava-se na contradicção de sentimentos oppostos, e insensivelmente iam-se revolvendo nos mysteriosos recessos do seu organismo os lodos do egoismo, que lhe apagavam todo o vestígio de sentimento moral, e traziam á sua existência attribulada, desorganisada, um accrescimo de miseria.

E tinha emagrecido muito, a carnação quente do rosto desmaiara na transparencia baça de um colorido insipido, como o de uma rosa-chá; os tecidos rijos tinham-se amollentado, assumido as suavidades flaccidas das creoulas; exhalava-se de toda a sua pessoa uma morbidez molle; a vermelhidão dos beiços esmaecera; o nariz adelgaçara-se fazendo-se mais proeminente; os olhos rasgaram-se mais, cavando-se em olheiras fundas.

E no meio das aberrações do seu espirito, os seus habitos e gostos mudavam a cada instante.

Já lhe aborreciam os romances; depois de ter devaneado com Alfred de Musset, chorou com Chateaubriand, estremeceu com Lamartine, exaltouse nos lyrismos das -- Contemplações -- vagueou sentimentalmente pelas ruinas do Oriente, melancolisou-se nas solidões silenciosas, aspirou a mystica poesia das peregrinações á sagrada Jerusalem.

E estas leituras abriram um parenthesis de uma contradicçao extravagante nas exaltações do seu espirito. Chegou a ter arroubos religiosos, apaixonou-se pela cruz, pelo doce Jesus, começou a condoer-se dos pobres, dava esmolas, demorava-se na Igreja, e quando o templo estava vasio, prostrado no frio silencio, que é apenas cortado pelo ciciamento de rezas beatas, comprazia-se em se impregnar d'aquelle mysticismo devoto. E usava penteados simples, vestuarios singelos, todo o seu trajo tinha uma compostura modesta.

Mas o equilíbrio harmonico do seu systema nervoso rompia-se cada vez mais; as emoções ultimas da sua vida, as suas decepções, a ideia fixa do seu sestro infeliz, das infelicidades suppostas e exaggeradas na excitação do seu cerebro, o desgosto do marido, e sobretudo a mesquinhez da sua posição actual, cm irritante desaccordo com os sonhos da sua imaginação e com a situação anterior bruscamente despedaçada, iam desordenando cada vez o seu organismo; enfraquecendo-selhe a vontade e as faculdades cerebraes superiores, concentrava-se-lhe a actividade nos centros nervosos e nas espheras inferiores da animalidade.

E os symptomas de extravagancia continuavam a apparecer. Algumas vezes chegou a voltar as suas attenções para o vestuario; primava na toilette, esmerava-se em penteados vaporosos; as faces reanimavam-se; mas cahia logo em languidos torpores, andava todo o dia de roupão, os cabellos em desalinho. Para que se havia de arrebicar alli n'aquelle embrutecimento da vida provinciana e burgueza. .. Para quem?. . .

E as suas impressionabilidades exageravamse cada vez mais, havia nas excitações do seu temperamento reacções cada vez mais vibrantes, as transições da alegria para a tristeza eram cada vez mais bruscas, as desordens do seu organismo recrudesciam, tinha palpitações frequentes, formigueiros pelo corpo, estremecimentos subitos, com uma forte suffocaçao thoracica, que lhe dava a sensação de uma plenitude incommoda, asphixiante, vinham-lhe bocejos muito fastidiosos, cansaços oppressivos em todo o corpo, uma sensaçao penosa e pesada ao andar, e uma vez sentiu uma forte constricção no peito que ascendia debaixo para a laringe, como se do estomago subisse uma bola que a suffocava na garganta, levou as mãos ao pescoço como para arrancar aquelle obstaculo, e com gritos de afflicção cahiu nas convulsões do seu primeiro ataque de nervos.

Quando voltou a si rompeu no desafogo de um choro abundante, succedido de um accesso de alegria doida, forçada, dolorosamente fatigante, que a deixou extenuada.

Outras vezes o ataque hysterico manifestava-se em uma syncope, e Adelina cahia no torpor de um estado spasmodico, que simulava a morte, ficava como prostrada em uma catalepsia.

E ella emagrecia gradualmente, a sua nutrição tornava-se mais eslanguescente, transformava se desordenadamente em todo o seu ser, e cahia em um estado marasinatico cada vez mais pronunciado. Os accessos nervosos repetiam-se sob differentes aspectos, soffria muito, o Antunes andava acabrunhado, mas ultimamente Adelina experimentara um allivio que melhorara muito o seu estado geral.

O delegado da comarca foi transferido e substituiu-o um bacharel de formatura ainda recente.

O dr. Abranches fazia a sua iniciação na carreira judicial; era filho de um juiz da Relação de Lisboa, promovido ao Supremo Tribunal de Justiça; educado em Lisboa ahi passara a maior parte da sua vida.

Era baixo, franzino, tinha um pequeno bigode castanho claro, destacando mal na pallidez tristonha, que lhe dava uns ares de se aborrecer mortalmente com o seu novo viver de funccionario publico. E Adelina começava a interessar-se por aquelle rapaz sympathico, de olhar melancolico, que a fitava ternamente atravez dos vidros da sua luneta com aro fino de ouro.

A sua estatura, pequena sim, mas airosa, e o ser fato correcto, liso, muito repuxado, adherente ao busto, sobresahia no meio da abundancia das corporaturas provincianas e da fartura das fatiotas burguezas; reparava-lhe na pequenez do pé ponteagudo, como o bico de um ferro de engommar, sumido na largueza espalmada da calça, nas mâos brancas bem tratadas, onde destacava um graúdo anel amoriado, e na boquilha do seu charuto, lisa, de uma simplicidade distincta, onde não se espapavam figuras grotescas, nem se retorciam Venus lubricas.

Mauricio de Abranches passava todos os dias por casa de Adelina, caminho do tribunal, e ao cahir da tarde, quando recolhia do passeio. Ella estava sentada á janella, os seus raios visuaes cruzavam-se, elle cortejava-a com elegancia. Adelina tinha um livro na mão, deixava-o cahir no regaço depois do delegado passar, ficava em uma attitude muito prostrada, com o olhar eianguescido, fluctuando em uma vaga melancolia, o seio emagrecido arfava com largas e levantadas ondulações.

Estava-se no pino do verão, o sol no poente enfrestava-se nas massas dos arvoredos em scintillações de finíssimas flechas douradas; as folhas nas coroas das arvores recortavam-se delicadamente no fundo do horisonte decorado de purpura e ouro; trasbordava por toda a parte uma placidez invasora e amoravel; só as ultimas ramagens, na mais alta orla dos arvoredos, estremeciam aos affagos de uma brisa muito acariciante; por cima havia no céo tons afogueados que rosavam as nuvens, o resto do céo tinha a pallidez azulejada de uma aguarella muito esbatida, e a calma do dia cahia na doçura de uma tarde temperada, que na sua luz diffusa dava tons suaves á melancolia do scenario aldeão; poucos ruidos se ouviam, a chilreada dos passaros ou a voz aguda do rapazito, interpellando a melancolia meditabunda dos bois que passam magestosamente, cahiam na immensidade da limpidez serena.

Adelina seguia com a vista as evoluções das nuvens, e o pensamento como que se deliciava, em requintes de sensualidade, rolando maciamente sobre aquelles enovellamentos algodoados.

Pouco depois as nuvens esbatiam-se em tons grisalhos, as collinas ao longe, no lado opposto ao poente, escurentavam-se na diaphaneidade de uma nevoa pardacenta; da torre proxima da Igreja matriz sahia a primeira badalada das -- Ave-Marias -- e aquella toada metallica, de um vigor vibrante, cahia no ar calado, como uma grande pedra echoando sonoramente na estagnação de um lago dormente; mais além respondiam melancolicamente outras vozes aereas, volateis, que se amorteciam na distancia; os passaros tinham calado a sua garrulice cantante, apenas um ou outro, como soldado retardario, acudindo ao toque de recolher, cortava o ar apressadamente, soffrego de se acolher ao conchego da sua casinha de verdura; á estúrdia galhofeira que os pardaes, estes estróinas alados, faziam nas ramagens, succedia-se o cri-cri dos grillos e o canto das cigarras de um estridor arrastado.

Adelina absorvia-se cada vez mais nas suas imaginações, sorria de quando em quando aos seus pensamentos íntimos, levantava o seio suspirando.

-- Mauricio era um nome bonito. E aborrecia-se talvez, o pobre rapaz, como ella!... Habituado á vida de Lisboa!... com certeza enfastiavase mortalmente. Como eram identicas as suas situações!... E era solteiro... Oh! casados não, nunca mais...

E este pensamento coincidia com a toada do sino que convidava á oração.

Luiz, esse quando deixou o Porto, andava escaveirado, mas começava a anediar-se outra vez; livre de cuidados respirava agora livremente, ageitava-se na posição mais commoda de que era susceptivel o seu novo viver; ruminava a vida acommodaticiamente, sem frenesis de temperamento, com um estoicismo pachorrento; dispendiase nos cavacos da botica e do botequim da terra, continuava a beberricar licor de canella e cognac relles, e, organisando patuscadas tresnoitadas com a rapaziada de bôa feição, passava a vida, ao som da choradeira relaxada dos fados suspirados na guitarra, na bambochata de uma despreoccupação ditosa.

A doença de Adelina causara sensação pela novidade, preoccupava as attenções, havia espantos e largos comraentarios.

O bonacheirão do snr. Casimiro, nas suas intimas cavaqueiras com o boticário, dizia-lhe:

-- Então muita lide lá pela botica?... Só a casa do Antunes agora dá que fazer... Coitada! aquillo faz pena, pobre rapariga!...

O snr. Balthazar encolhia os hombros, sorria com um risinho velhaco.

-- Não, lá que ella está mal, isso está -- confirmava o juiz de paz -- Quem a viu, quem a vê, uma rapariga que vendia saude... Até parece cousa ruim...

-- Qual cousa ruim, nem qual diabo. Nós cá, eu e o dr. Taveira, é que nos entendemos... Sabe que mais, compadre... O que ella precisava era uma boa trabalheira ás costas, e um bando de filhos agarrados ás saias, lá como as nossas santas. Olhe lá se ellas teem flatos, não tenha medo.

Janeiro de 1879 -- Janeiro de 1880.


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TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). Margarida: Edição para o ELTeC. Margarida: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.11113/0000-000F-FAEE-C